Por Isadora Guerreiro e Luís Jacon

Começamos a experimentar em São Paulo a face técnica da nova barbárie, sob a gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), na ponta de lança da chamada Cracolândia – “fluxo” de pessoas consumindo drogas, especialmente o crack, no espaço público (atualmente no bairro de Campos Elíseos, na região central da cidade). Estávamos acostumados com o PSDB, que geria a situação com operações “sufoco” de muita violência policial espetacular onde o fluxo se concentrava, sem nunca ter conseguido acabar com ele, que sempre retornava em seguida.

Junto a essas ações policiais, combinava ações também espetaculares de intervenção urbana na área, através da primeira Parceria Público-Privada (PPP) de habitação do país e de um Hospital Pérola Byington (também PPP), de referência da mulher. O foco era o desmantelamento de formas de morar populares da região – com muitas pensões, cortiços, ocupações e até aluguel de camas por hora – e sua substituição por empreendimentos em condomínios para uma classe média-baixa (já comentei sobre a forma-condomínio e sua relação com a ascensão fascista).

Alguns condomínios já estão habitados e a construção dos últimos está em andamento. No final do ano passado, a troca dos seus muros por grades indica a tentativa de abertura de seus térreos comerciais – previstos em projeto e até então não implantados por conta das questões de segurança da área. Pouco antes, se deu a abertura do Hospital Pérola Byington. Com isso, uma mudança passou a acontecer na forma de lidar com a Cracolândia, primeiramente ainda na gestão do PSDB.

Primeiramente houve uma alteração de lugar de concentração do fluxo, que foi para a Praça Princesa Isabel – local de maior exposição pública do que o anterior fundo de ruas lindeiras aos trilhos do trem; e, em seguida, as operações policiais dispersaram o fluxo, não o eliminando (o contrário da narrativa que o governo imprimia na mídia), mas o espalhando em diversos núcleos menores em toda a região. A partir deste momento, começam mobilizações de moradores e comerciantes contra os fluxos diante de suas portas, que resultam na crescente contratação de segurança privada, com presença de policiais em folga. Quem não paga, encontra o fluxo na sua porta pela manhã.

Neste cenário, Tarcísio toma posse – após um período durante o segundo turno eleitoral no qual, na verdade, parecia já estar mexendo pauzinhos dentro do governo, principalmente na área da segurança pública, com acompanhamento excessivamente próximo do então governador Rodrigo Garcia. O evento em Paraisópolis durante a campanha o demonstrava: houve tiros enquanto o ainda candidato fazia uma visita de campanha ao local. Associações do bairro disseram que não sabiam da visita do candidato, e há suspeita de que o suposto “tiroteio” foi forjado. Felipe da Silva Lima, de 28 anos, desarmado, foi assassinado e nunca ficou claro de quem partiu o tiro – talvez dos próprios seguranças de Tarcísio. Na comitiva do candidato, estranhamente havia segurança da PM, além de um funcionário licenciado da Abin que disse para o cinegrafista da Jovem Pan apagar as imagens que tinha feito. O caso foi recentemente arquivado pela Polícia Civil, sem nenhuma investigação da comitiva.

Após o evento, Tarcísio corta a narrativa do próprio bolsonarismo que o apoiava (o que já indica um deslocamento seu em relação ao ex-presidente), dizendo que não se tratava de um atentado eleitoral. Segundo ele, “foi um ato de intimidação, um recado claro do crime organizado de que não somos bem-vindos ali. Para mim, foi uma questão territorial, não tem nada a ver com questão eleitoral. (…) Não estou politizando, estou falando que o crime não quer a presença do Estado, quer ter seu território”.

O recado estava claro ali: as negociações do PSDB com o PCC – que são marca da coalizão da Nova República em São Paulo – tinham seus dias contados, ao menos da mesma maneira com que foram conduzidas até aqui. Lembremos que Tarcísio vem do Rio de Janeiro, onde a relação entre Estado e organizações armadas (facções e milícias) é outra. Ali, há controle territorial de grupos armados, uma configuração muito diferente de São Paulo, onde o PCC há muitos anos é hegemônico e não atua por fechamento de territórios – não se vê pessoas armadas na entrada das quebradas controlando a entrada, como no RJ. E o Estado, principalmente as forças policiais, tem papel central na conformação do controle territorial, como já tratei em outras colunas (aqui e aqui). Estado este comandado por Marcelo Crivella durante a última ascensão miliciana carioca (após 2017), do mesmo partido de Tarcísio: o Republicanos que, também não nos esqueçamos, foi criado e é comandado pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), como mostra a pesquisadora Cláudia Cerqueira. E a relação das igrejas neopentecostais com a lógica do domínio territorial é estrutural. Segundo outra pesquisadora, Luiza Chuva Ferrari Leite:

A partir dos anos 1970, se inicia a terceira fase do pentecostalismo brasileiro, conhecida como neopentecostalismo, que afirma a teologia da prosperidade e a teologia do domínio (territorial) como campos ideológicos a partir dos quais se desenvolvem as igrejas neopentecostais.”

Trata-se de uma grande disputa territorial, que agora chega a São Paulo, portanto, sob o braço técnico e armado das bênçãos de Deus.

Uma nova forma de abordagem

Tarcísio inicialmente aventa a possibilidade de extinguir a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, a exemplo do Rio de Janeiro, que deu maior autonomia às polícias – fato central no entendimento da relação delas com a abertura de fronteiras para a ação das milícias. Neste mesmo sentido, também rondou a possibilidade de retirada das câmeras do uniforme dos policiais. Empossado, no entanto, volta atrás nos dois pontos (até agora) e coloca para comandar a pasta o Capitão Derrite (PL), Deputado Federal de SP e policial militar, ex-comandante da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) e da Força Tática, com passagem pelo Corpo de Bombeiros.

No primeiro dia de governo, Tarcísio por fim elege o fim da Cracolândia como vitrine de gestão, colocando o vice-governador Felício Ramuth para coordenar diretamente a questão. Nada mais coerente para um engenheiro do exército brasileiro presente na missão da ONU no Haiti: a guerra social contra pessoas altamente estigmatizadas e consideradas “matáveis” é um ótimo laboratório de disputa de poder. Engenheiro de infraestrutura, consegue costurar em torno de si o consenso da técnica administrativa [1]: foi do governo Bolsonaro e também do de Dilma Rousseff – e conseguiu as bênçãos da hegemonia tucana de décadas em São Paulo.

A mudança de tom é impecável: com todo este palco montado, ao invés de iniciar uma espécie de Armageddon fulminante na Cracolândia, ele passa a adotar a narrativa de excelência técnica, de aparência social limpa e eficiente. Diz que “Talvez a gente esteve abordando esse problema da forma errada”, enquanto Ramuth diz que “Os serviços do estado hoje [em relação à cracolândia] são totalmente desconexos”. Um novo foco é então eleito: a articulação dos serviços de saúde com os policiais – qualquer semelhança com o racismo científico não parece mera coincidência [2].

A dispersão do fluxo desarticulou as mediações éticas do PCC, para além do tráfico de cocaína, crack e maconha, vulnerabilizando ainda mais os usuários, que perderam lideranças. Se antes a grande cena de uso de drogas conformava-se dentro das balizas do regime do “Partido” – o que fazia com que, por exemplo, crianças fossem proibidas de permanecer nos limites da praça –, agora, com a nova estrutura de arquipélago, o Comando volta-se para a distribuição das drogas aos “lagartos”, usuários que passam a comercializar nos fluxos o birico – pequena porção da pedra.

A reestruturação do tráfico de drogas na região, com a disseminação desses pequenos traficantes, abriu margem para as operações que vinham acontecendo até a posse de Tarcísio, batizada Operação Caronte. Com a razão de desarticular o tráfico de drogas na região, a estratégia era pisar no formigueiro, espalhando cada vez mais os pequenos núcleos pelo centro de São Paulo. A dispersão, pulverizando o fluxo, era seguida de constantes re-escalonamentos nas dinâmicas do tráfico, tornando o lagarto figura comum, conjuntura que tornou possível a estratégia do delegado responsável Roberto Monteiro – tirado do cargo na segunda semana da gestão de Tarcísio –, que levava o argumento ao absurdo: o limites entre usuário e traficante não estão certos, portanto a prisão de todo o usuário para averiguação é justificada. Dessa forma, se reativou na delegacia da Polícia Civil o mesmo dispositivo utilizado na ditadura militar pelo DOPS, ao mesmo tempo em que tornou pó a lei de 2006 que instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, que descriminalizou a figura do usuário.

Desmobilizando a porrada, articulando a techné, Tarcísio e Ramuth trocam todo o comando antes responsável pela Operação Caronte. O novo delegado seccional prontamente diz que a força bruta não resolve o problema, Ramuth articula uma reunião para ouvir os diversos coletivos que atuam na região, assumem a historicidade do “problema Cracolândia” e a necessidade de articular diversas frentes, combinando estratégias para abordá-lo. Se até então as operações da polícia eram de enfrentamento direto com os grupos de usuários, prisão e oferecimento de internação voluntária pós-tortura nas salas de carceragem da delegacia, agora o policiamento parece se redimensionar. Antes nucleado na Polícia Civil e Guarda Civil Municipal, desde o início do ano a Polícia Militar vem engrossando a presença na região, com policiamento ostensivo. A nova proposta do governo, chamada de “Justiça Terapêutica”, envolve sempre uma situação inicial de flagrante, competência da PM. O novo programa dispõe ao usuário pego em flagrante-delito de roubos, furtos, etc. a opção de, ao invés de seguir o processo penal comum, internação e tratamento.

Uma das inovações, portanto, é a criação da figura do “usuário-bandido” anteriormente à abordagem, diferente da Operação Caronte, que tentou operacionalizar de forma fracassada a associação usuário-traficante. Com grupos menores de usuários e a instalação de câmeras de reconhecimento facial, as equipes de saúde articuladas com o policiamento ostensivo têm mais facilidade de abordagem, oferecendo internação. Se o “usuário-bandido” não aceitar, responderá pela infração, sendo preso. Aceitando, no entanto, será encaminhado a toda uma cadeia de instituições que deságua nas Comunidades Terapêuticas. É segredo de Polichinelo que, na verdade, a nova estratégia trata-se de internação compulsória mal travestida de “última opção” pelo governo.

As Comunidades Terapêuticas são em grande parte geridas por entidades evangélicas e sua incorporação às políticas públicas ocorre desde o governo Dilma Rousseff, e tiveram, durante o governo Bolsonaro, um aumento de 169% de apoio financeiro com dinheiro público. O atual governo Lula acaba de criar um “Departamento de Apoio às Comunidades Terapêuticas” pelo Ministério do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome, indicando que o consenso em torno delas tem atravessado fronteiras ideológicas – embora haja grande resistência de grupos antimanicomiais e recomendação contrária do próprio Conselho Nacional de Saúde ligado ao Ministério da Saúde. Segundo Cida Bento, tais locais

têm sido alvo de diversas inspeções que apontaram graves violações de direitos humanos. Indícios de tortura, castigos psicológicos e físicos, punições, práticas de revista corporais, violações a liberdade religiosa e à orientação sexual são algumas das violações que constam do relatório de inspeção de 2017, do Conselho Federal de Psicologia, e são destacadas pelo Instituto Amma Psique e Negritude, em nota pública, e por diversos movimentos, tais como o Despatologiza.”

Barbárie nos porões, limpeza na rua, segurança para todos, tudo em nome de Deus. Para coroar, em conjunto com a Prefeitura de São Paulo, são enunciadas várias PPPs de reestruturação urbana na região, com remoção de ocupações de moradia, no intuito de fazer ali a nova Sede do Governo do Estado. Tarcísio, assim, parece ser representante político brilhante de um futuro possível para o bolsonarismo em transe, que deverá se acomodar às negociações da nova institucionalidade em disputa. Os territórios populares serão os primeiros a conhecerem sua real face.

Notas

[1] O Editorial da Folha de 10/02, grande voz tucana, elogia o governador justamente neste ponto: “Tarcísio acerta quando se guia por interesse público em vez de ideologia”. Cabe dizer que o jornal tem dedicado vários editoriais ao tema da Cracolândia no último mês.

[2] Em matéria na mesma Folha no mesmo último dia 10/02: “Tarcísio mantém mesuras ao grupo político que o elegeu, que vão de elogios públicos ao ex-presidente à nomeação dos chamados ‘bolsonaristas raiz’ como a secretária de Política Para Mulheres Sonaira Fernandes (Republicanos) e o titular da pasta de Segurança, Guilherme Derrite (PL). Porém ele tem destoado de Bolsonaro e seu discurso anticientífico. Em busca de investimentos para o estado, por exemplo, Tarcísio defendeu uma agenda verde em Davos, com bandeiras como a transição energética, hidrogênio verde e etanol de segunda geração. (…) ‘Ele [Tarcísio] tem, desde a campanha, mostrado que de certa forma é um pouco permeável a questões sobretudo de evidência científica, que é uma contradição com bolsonarismo raiz’, diz o cientista político Marco Antonio Teixeira, da FGV.” Ainda segundo Teixeira, o desafio seria “se equilibrar entre o bolsonarismo, a Igreja Universal por trás de seu partido, o Republicanos, e o pragmatismo político de Gilberto Kassab”. Talvez a inclinação ao racismo científico resolva a equação, a ver.

6 COMENTÁRIOS

  1. Esse texto é tão ruim, que mal esconde a apologia ao PCC, sem falar das séries de generalizações infundadas. Seria mais fácil assumirem: somos a favor do crime e seu mar de assassinatos silenciosos, torturas, mutilações, decapitações e cemitérios clandestinos.

    É um texto sem pé nem cabeça, que em boa parte fala do que não sabe, ou sabe só parcialmente, ou sabe só externamente. Duvido que alguém aí já morou na rua, conhece mesmo as comunidades terapêuticas – devem conhecer umas poucas – ou tem real conhecimento da dinâmica do crime e sua tão falada “ética”.

    Texto de turista universitário pela “craco”, omite a voz de vários reais interessados, a começar pelo principal, que são as famílias. Eu conseguiria derrubar facilmente esse texto e sua mal disfarçada apologia do PCC abordando a exploração sexual de meninas, que se prostituem por uma pedra de 5 ou até mesmo por um trago. Mas parece que isso aí é tudo bem, tá na ética do PCC. Assim como está na ética os milhares que são assassinados silenciosamente, muitas vezes por causa de 5 reais, e depois desovados pra lá e pra cá.

    Vejamos, se tem entidades religiosas cuidando de moradores de rua e de drogados, é porque não tem outras pessoas. O trabalho de entidades como a Missão Belém, Divina Misericordia, Fazenda da Esperança, Família de Cana, Betânia e várias outras, não pode ser colocado no mesmo julgamento por causa de algumas comunidades terapêuticas irregulares. A generalização é grande demais: tem comunidade evangélica e aí são várias linhas, tem comunidades católicas, também diversas entre si, tem comunidades que seguem a terapêutica dos Narcóticos Anônimos, tem comunidade espírita e até comunidade umbandista que trabalha com ayahuasca e outras mais.

    Vocês não tem ideia do que passam as comunidades terapêuticas. Tantas vezes, com uma verda de 16 mil do governo , um exemplo, acolhem 40, 50 pessoas que chegam feridas, sem roupa, sem cobertor, sem nada, precisando arrancar dente, de remédios, tratar de várias coisas. Sem falar dos perigos que passam os que atuam em tais comunidades: é gente que surta, inimigos que se encontram, fulano que quer matar outro, brigas várias, uma dificuldade enorme.

    Me desculpem, mas vocês precisam se informar melhor. Uma boa vivência prática seja nas ruas, seja nas comunidades terapêuticas, seja junto às quebradas, vai dar pra vocês uma dimensão melhor da coisa.

  2. Pelo visto o Ex usuário e ex morador de rua saiu das ruas após ser aprovado em um concurso para PM. Colega, se você possui informações ou “vivências” que contrariam os relatos desse importante texto, o espaço dos comentários está aqui para suas contribuições e debates. Mas antes por favor releia o texto, pois para ver aqui uma apologia ao PCC é preciso fazer uma leitura bem mal feita.

    À autora, agradeço pelo belo texto. Fiquei com a impressão de que o Tarcísio pode vir a se tornar o próximo representante da direita e extrema direita, pós Bolsonaro.

  3. Esse texto é apologia ao PCC sim. Cadê a voz das famílias no texto? Cadê o ponto de vista das famílias? Simplesmente não existe. O elemento mais importante não existe.

    A cracolandia é um fato, com o seu mar de mortes silenciosas e mocinhas se prostituindo por 5 reais. Para um familiar que tem uma filha, uma irmã, uma mãe nessa situação a ida para uma comunidade terapêutica não é algo benéfico?

    Mas vejamos, o texto critica a ação do governo e critica as comunidades terapêuticas, mas faz apologia ao PCC e sua tão propagada e mentirosa mediação ética. Só turista universitário pela Craco, que não sabe o que ocorre nas barracas, nos quartinhos, nas pensões pra cair no conto da mediação ética do PCC. Um membro do PCC estupra uma garota, mata um rapaz, tortura um inocente: acha que outro membro do PCC vai ficar contra? Vocês não conhecem nada.

    Refaço o convite: morem um mês na rua, passem um tempo nos quartinhos, nos hotéis do crack, nas pensões, passem um tempo na cracolandia à noite, virem umas noites por lá. Se acaso vocês saírem vivos depois de conhecerem o inferno, venham e me corrijam que eu retirarei minhas palavras. Procurem as famílias dos usuários, conheçam as comunidades terapêuticas. Tem tema que, pela característica própria, só com.pesquisa participativa. Olhando da janela do apartamento, lendo pela Folha, ou turistando pela “Craco” em bloquinhos de universitários vocês não vão conseguir saber o que realmente acontece. Não sabem quantos são assassinados silenciosamente naquelas barracas e ao redor, não sabem quantos estão sequestrados, não sabem quantos estupros ocorrem. Enfim, ficam aí, como num remake do filme Tropa de Elite I, acreditando em mediação ética do crime.

    Façam as vossas vivências e retornem daqui um mês pra me dizer o que encontraram, ok?

  4. O comentador que se identifica como “ex-usuário e ex-morador de rua”, na sua argumentação, emprega uma retórica antiuniversitária. A postura deste comentador lembra certos outros comentadores que frequentavam o espaço de comentários deste site há muitos anos. Aqueles comentadores, apesar de pós-graduados, utilizavam a mesma retórica antiuniversitária e consideravam válido apenas o conhecimento validado pela sua própria experiência particular, supostamente baseada em origens “proletárias” e em alguma atividade de ensino em escolas públicas de bairros periféricos. Qualquer outra forma de conhecimento era prontamente denunciada como “coisa de universitários que não conhecem a realidade”. Para reforçar o seu ponto de vista, aqueles comentadores interferiam em qualquer debate de forma pouco construtiva, ora apresentando suas histórias de vida e suas experiências de trabalho como únicas fontes de validação de conhecimento, ora partindo para a agressão gratuita, acusando seus interlocutores de “herdeiros”, “riquinhos” e de nunca terem trabalhado na vida. Por um longo tempo, não se teve notícias daqueles comentadores, com quem o atual comentador “ex-usuário e ex-morador de rua” se assemelha. Tem-se a impressão de que aqueles comentadores sumiram no mundo sem deixar notícias. Apesar disso, espera-se que tanto aqueles comentadores do passado quanto o atual comentador “ex-usuário e ex-morador de rua” estejam bem.

  5. Caro Ex usuário e ex morador de rua,

    É uma pena que, no seu afã de afirmar seu lugar de fala – ou por isso mesmo –, tenhamos perdido a oportunidade de ter um bom debate com suas (tenho certeza) ricas contribuições. Você poderia ter trazido a fala de famílias, de usuários e de trabalhadores das comunidades terapêuticas para dar ainda mais complexidade a esta questão tão importante. Poderíamos juntos ter refletido sobre as contradições e dificuldades disso tudo, pois este é um dos objetivos deste site. Eu adoraria ter te escutado e aprofundado coletivamente a análise.

    Fico triste que o texto não tenha ajudado você a refletir sobre outros aspectos da questão para além do binômio crime x comunidades terapêuticas (CTs). Pois este binômio é o lado da gestão privada da barbárie. Justamente, é o lado que, ao conhecer as famílias e estar mais próximo do cotidiano da vida dessas pessoas, se mistura ao seu desespero, sem que saibamos os limites entre interesses próprios (do PCC ou das CTs), jogos de poder, caridade, solidariedade e por aí vai. Não estamos fazendo apologia ao crime, pois tanto o PCC quanto as CTs são múltiplos (como você mesmo disse, só que olhando apenas para um lado) e incorrem, ambos, seja em atos bárbaros que não podem ser defendidos, seja em genuínas formas de mediação de conflitos. Você diz que as CTs acolhem e existem entidades sérias, o que eu não duvido, mas a questão que colocamos no texto não é essa. É parar para pensar o que está em jogo com a mobilização destas entidades pelo Estado – e então a própria indeterminação entre entidades sérias ou não faz parte deste jogo. Pois as entidades sérias legitimam o escoamento de dinheiro público para entidades com práticas altamente questionáveis, para dizer o mínimo.

    E aí chegamos ao ponto central do texto, o Estado, tema que você, sintomaticamente, deixa de comentar. Digo sintomaticamente, pois, a partir do seu lugar de fala, o Estado deve ser apenas a polícia dando porrada, pois é a face que aparece no território. Estamos convidando você e os demais leitores a pensar o que está por trás desta porrada, das formas de porrada, e o que acontece quando parece que a porrada pública vai acabar (e isso, contraditoriamente, pode ser um cenário ainda pior, como mostramos no texto). Sintomaticamente, você não fala da imensa rede pública de assistência social e de atenção à saúde, além de políticas de habitação, que poderiam ter maior investimento e serem mobilizadas de maneiras mais interessantes do que têm sido. Sintomaticamente, você não fala das possibilidades de auto-organização desta população e de suas famílias para, no mínimo, reivindicar outro tipo de intervenção estatal.

    Claro, o Estado faz parte da barbárie, e nisso eu vou concordar com você. Por isso poderíamos, juntos, analisar melhor, de diversos pontos de vista somados, como esta barbárie se move, para poder atuar sobre ela. Sinceramente, não vejo nem os CTs, nem o PCC como solução desta questão, mas como parte dos jogos de poder que ela mobiliza. Convido você a refletir sobre isso.

  6. A esquerda não tem resposta nenhuma para o problema das drogas quando a droga se torna um problema. Não possui nenhuma. Existe um discurso liberal para a situação de uso recreativo, enquanto o usuário consegue manter a produtividade e a postura social. O discurso é: somos a favor das drogas, mas não nos traga problemas.

    Quem enfrenta o problema de fato são as famílias, em primeiro lugar, e isso inclui o que a família consegue mobilizar da rede pública, os CAPS etc, e há organizações da sociedade, como os Narcóticos Anônimos, Amor Exigente e há as comunidades terapêuticas.

    As comunidades terapêuticas são importantes quando o usuário chega a um ponto em que torna-se risco para si próprio – surtos, suicídios, violências e encrencas várias – e torna-se risco para as famílias e para a sociedade, das mais variadas formas, desde a destruição econômica corriqueira até os casos mais extremos, que inclui violência grave.

    São estas forças sociais que devem ser levadas em consideração quando o assunto é droga porque são elas que realmente enfrentam a questão. Desculpe quem ficou magoado, mas nem a esquerda, nem a universidade atuam sobre a questão. Em ambos os contextos a única resposta é o isolamento e a exclusão. Quem enfrenta o problema das drogas são as famílias, as organizações sociais como os Narcóticos Anônimos e as comunidades terapêuticas, tendo, como já citado, o auxílio suplementar de esferas do Estado como os CAPS ( Centro de Atenção Psico Social).

    A autora e outros não gostaram de minha crítica e apontamentos, mesmo que num espaço de debate, mas se sentem bem livres para tratar de forma leviana as comunidades terapeuticas, sem apontar instituições e casos concretos.

    O texto da autora critica o governo, sem pontuar o que tem de bom em dadas atuações governamentais. Não sabe separar, não sabe discernir. Critica as comunidades terapêuticas de forma bem leviana, jogando na lama o trabalho heroico de tantas entidades por conta do erro de algumas, que não são especificadas. A autora omite as famílias e as entidades sociais que lidam com a questão. Apresenta muito pouco conhecimento sobre o assunto, juntando omissão com as generalizações e leviandades.

    Por fim, como cereja do bolo ou, pra fechar o caixão, me vem com essa de “mediação ética do crime” que é o fim do mundo da irresponsabilidade e do desconhecimento.

    Desculpem se incomodei quem só vive de aplausos, mas o texto é muito ruim e sobre uma questão muito séria. Para o bem dos autores e do conhecimento, é preciso mais leitura e mais pesquisa para se tratar de assunto tão delicado.

    Paz e Bem (São Francisco)
    Graça e Paz (São Paulo)

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