Por Asian Labour Review

Nota dos Editores de Asian Labour Review:

Histórias e imagens de trabalhadores escapando e indo embora a pé da fábrica da Foxconn em Zhengzhou, na Província de Henan, na China, circulam nas redes sociais chinesas. A mega fábrica emprega mais de 200.000 trabalhadores e é um importante fornecedor da Apple e de outras marcas de produtos eletrônicos.

Para manter os trabalhadores no local e evitar paradas devido à Covid-19, a Foxconn recentemente os colocou sob um sistema de circuito fechado, que tem sido usado em outros lugares, incluindo a Tesla e a Huawei, para impedir infecções dentro do circuito. Dentro desse sistema, os trabalhadores só podem deslocar-se entre os dormitórios e os locais de trabalho e não podem deixar o complexo da fábrica sem autorização.

Nas últimas semanas [novembro de 2022], no entanto, os trabalhadores da fábrica da Foxconn começaram a apresentar resultados positivos para Covid. Mas, segundo os trabalhadores, os infectados, às vezes, continuam a trabalhar. Com medo de serem infectados devido à proximidade nos locais de trabalho e desconfiados da forma como a empresa lidou com o surto, os trabalhadores entraram em pânico e muitos fugiram para casa. Finalmente, a Foxconn foi pressionada a deixar os trabalhadores saírem, e os governos locais organizaram ônibus de viagem para levar os trabalhadores para casa.

Traduzimos um depoimento de uma trabalhadora de uma conta em língua chinesa do aplicativo WeChat. Ela explica por que e como fugiu. O relato foi ligeiramente editado para maior clareza e devido à extensão.

A minha família é do Condado de Yushi, na cidade de Kaifeng, em Henan (uma província central na China, para onde a Foxconn e outros fabricantes se deslocaram após se instalarem nas regiões costeiras). Parei de estudar antes de me formar no ensino médio. Aí comecei uma família. O meu marido está desempregado. Temos dois filhos. Fiquei sabendo do trabalho na Foxconn em Zhengzhou (capital de Henan).

A Foxconn tem duas épocas de pico todos os anos, de fevereiro a maio e de julho a outubro (mas às vezes de agosto a novembro). Durante essas épocas de pico, a Foxconn precisa de um grande número de trabalhadores e paga um bônus elevado. Ou seja, se um funcionário estiver no trabalho por 90 dias e trabalhar 55 dias, ele recebe um bônus de 8.000 a 10.000 yuans (US$ 1.095,00 a US$ 1.370,00).

Nos últimos anos, na época de pico, eu ia para a Foxconn. O salário-base mensal da Foxconn é de 2.000 yuans (US$ 274,00), calculado de acordo com o turno de 8 horas todos os dias. Para ganhar mais dinheiro, todos nós trabalhamos horas extras desesperadamente e podemos receber um salário de 3.500 a 4.000 yuans por mês.

Embora o salário-base não seja alto, continuo muito satisfeita com o trabalho, porque posso receber um bônus elevado quando terminar. Por isso, sou grata à Foxconn por trazer rendimentos estáveis para famílias rurais como nós.

Após o surto de Covid-19 em Zhengzhou em outubro deste ano [2022], toda a fábrica da Foxconn entrou em pânico à medida que o vírus se espalhou. As pessoas infectadas eram afastadas dos locais de trabalho todos os dias, especialmente agora.

Mas o que as pessoas não entendem é que, embora a pandemia possa silenciar uma cidade ou uma aldeia (“silêncio” refere-se aos lockdowns e restrições), a Foxconn pode continuar a funcionar normalmente, concentrando os trabalhadores e até mantendo pessoas infectadas trabalhando nas fábricas.

Isso deixou todos muito assustados e com medo. Os trabalhadores perguntavam por que não podiam tirar dois dias de folga. Mas era inútil, porque colocam sempre a quantidade (de produtos) em primeiro lugar e a vida humana em segundo lugar. A vida humana não significa nada (para eles).

No dia 29 de outubro, voltei ao dormitório vindo do turno da noite e dormi até às 15h. Quando minha família me ligou, me acordaram e disseram para me apressar e voltar para casa. Se eu não fosse agora, não poderia ir depois. Os grupos de rede social dos trabalhadores também explodiram com a discussão. Todo mundo estava discutindo como escapar.

Me levantei e arrumei as malas às pressas. Sem tempo para comer, enfiei os dois pães entregues pela fábrica na minha bolsa de ombro vermelha, desci as escadas, comprei um pacote de macarrão instantâneo, uma caixa de iogurte, uma garrafa de água e um pacote de linguiça no quiosque e olhei em volta, em pânico, procurando uma saída.

O complexo de fábricas da Foxconn é enorme, todo cercado de grades de ferro. As pessoas de fora não podem entrar sem permissão, e as pessoas de dentro não podem sair. Subi na grade, pulei, e procurei em vão por mais de uma hora uma saída que outros trabalhadores mencionaram.

Finalmente, um homem de bom coração me levou ao local onde tinha um grande buraco na cerca. Ele usou o farol de sua moto para iluminar o caminho para mim e disse: corra, corra.

Depois de me ter esgueirado, vi que já tinha muita gente lá fora. Estava usando um par de tênis brancos, jeans azul-escuro e um casaco preto de outono. Preocupada em passar frio à noite, trouxe uma jaqueta extra comigo quando saí.

Não podia usar a navegação [digital] e não sabia a direção de casa, então tive de perguntar se havia pessoas indo para minha cidade natal. Às 19h, segui quatro ou cinco pessoas e parti em direção de casa. Pelo caminho, encontrei muitas pessoas que tinham escapado, e o objetivo de todas era voltar para casa.

Por conta do medo de causar problemas às pessoas nas aldeias ao longo do caminho depois da área infectada, todos nós caminhamos ao longo da estrada, às vezes através das plantações, e tentamos ao máximo escolher os lugares menos povoados para ir.

Antes de fugir, eu estava preocupada com ficar com fome na estrada. Não esperava que houvesse tantas pessoas amáveis ao longo do caminho para fornecer comida e bebida para nós.

Fiquei muito cansada da caminhada e sentei no chão para descansar. Não arriscava dormir, na esperança de chegar em casa mais cedo, e me preocupava com o que poderia acontecer na estrada.

Como eu descansei, várias vezes não conseguia acompanhar os outros trabalhadores. Toda vez eu tinha de procurar trabalhadores que também estavam indo para minha cidade natal. Então passei a noite toda perguntando e correndo. O bom é que muita gente está indo para casa, por isso sempre consegui encontrar pessoas (para seguir); caso contrário, certamente teria me perdido e não conseguiria voltar para casa.

Chegamos ao ponto de prevenção de epidemias no Condado de Yushi às 6h do dia seguinte. Eu estava tão cansada. Sentei e não queria me levantar. A equipe de lá nos registrou e fez o teste de ácido nucleico. Por volta das 9h, fui colocada em um ônibus para nossa cidade natal.

Tinha 40 pessoas no nosso ônibus. Havia muitos ônibus transportando pessoas para cada cidade sem parar.

Quando chegamos ao local de isolamento do município, fizemos mais três testes de ácido nucleico. Houve 6 pessoas com resultados positivos dentro de um ônibus com 40 pessoas, que foram retiradas depois. Eu não estava com medo porque estava acostumada com tudo isso dentro da fábrica.

Fui colocada num quarto com outra mulher. O governo forneceu macarrão com carne e pão. O cheiro de casa era delicioso. Dormi.

Quando acordei hoje, abri o “aplicativo Love Pocket” (nota: um aplicativo criado pela Foxconn para os seus trabalhadores) no meu celular e ele mostrou que eu estava ausente do trabalho. Fui trabalhar na Foxconn em julho e o meu contrato vence no dia 2 de novembro. O contrato diz que, se eu faltasse ao trabalho três dias seguidos, não teria direito ao bônus.

Algumas pessoas me perguntaram por que eu não fiquei na fábrica por mais três dias antes de voltar (para poder receber o bônus). Eu disse que queria a minha saúde, e não dinheiro. Claro, eu espero que possam considerar que se trata de um caso especial e me paguem o bônus.

Não sei quantos dias ainda vou ficar no local de isolamento, mas estou feliz por ter conseguido escapar.

Dentro de alguns dias poderei ver os meus filhos e a minha família.

Quanto à Foxconn, não volto lá porque tenho medo.

Publicado originalmente na Asian Labour Review e traduzido por Marco Tulio Vieira.

A obra em destaque é da autoria de Wang Jianwei. Os créditos da foto no corpo do texto pertencem à VCG (Visual China Group) e à Getty Images.

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