Por José de Sousa Miguel Lopes

 

Introdução

(…) talvez fosse preciso começar a pensar – mas não é fácil do ponto de vista pedagógico – o filme não como objeto, mas como marca final de um processo criativo como arte. Pensar o filme como a marca de um gesto de criação. Não como um objeto de leitura, descodificável, mas, cada plano, como a pincelada do pintor pela qual se pode compreender um pouco seu processo de criação. Trata-se de duas perspectivas bastante diferentes. (BERGALA, 2008, p. 33-34)

A importância do cinema para a educação se justifica, em primeiro lugar porque o cinema é responsável por muito do que pensamos e sonhamos, em termos de projeções de modos de ser, de lugares, de imagens e sons; em segundo lugar, porque as obras do cinema participam da educação visual realizada no mundo contemporâneo; por último, porque a linguagem do cinema tem um potencial poético que orienta o processo de subjetivação em outras direções, mais plurais, mais abertas ao novo.

Sua importância em sala de aula é hoje inquestionável, pelo que seria necessário que o estudo deste fenômeno social, político, artístico que é o cinema, estivesse contido nos currículos escolares de forma disciplinar.

Estudos sobre consumo e recepção constatam que a maioria das crianças e adolescentes preferem filmes de ação e se aborrecem com aqueles filmes que trabalham a subjetividade e com relatos intimistas com grandes planos. É possível afirmar que, ante as dificuldades de saber o que fazer com o passado e com o futuro, as culturas juvenis se consagram ao presente, ao instantâneo. São exemplo dessa cultura do instantâneo as salas de bate-papo simultâneas na internet, videoclips e música no volume máximo nas discotecas, no interior dos carros, na solidão do walkman. As novas salas de cinema são pequenas, não só para otimizar a mercantilização dos espaços de entretenimento, mas para amontoar os espectadores mais perto da tela e tornar mais intensa a violência dos filmes, ampliar a sucessão de momentos em que se atropela a narração. A hiper-realidade do instantâneo, a fugacidade dos discos que precisam ser escutados em cada semana, a velocidade de informação e a comunicação fácil que a audição propicia levaram Zygmunt Bauman a afirmar que hoje “a beleza é uma qualidade do acontecimento, não do objeto (…) a cultura é a habilidade para mudar de tema e posição muito rapidamente” (Costa, 2002). Na mesma direção se posiciona George Steiner quando sustenta que “a nossa, é uma cultura de casino e de azar, onde tudo se aposta e corre perigo; na qual tudo está calculado para gerar um máximo de impacto e uma obsolescência instantânea” (Idem). Tudo se passa tão rápido que para milhões de jovens de classe média e média baixa, o modelo de triunfo social é ser um ex-big brother.

Este “presentismo” não é uma característica peculiar dos jovens, pois é coerente com o modo como as políticas neoliberais reordenam ou “desordenam” as sociedades. O que fazer para reorientar este processo?

Sabemos que a grande maioria dos jovens entra em contato com o cinema e o audiovisual fora da escola, de uma forma empírica, não obstante a unânime importância atribuída por autores e pedagogos a estes meios de expressão e comunicação na efetiva formação dos jovens.

É, portanto, difícil acreditar na formação dos jovens através da escola, aceitando ao mesmo tempo que ela esteja de costas voltada para a realidade, permitindo que, sem instrumentos, porque não foram dados, os nossos jovens sejam condicionados, informados, meros consumidores de quem usa estas linguagens como forma de manipulação. Esta é a vertente mais imediata da implicação sócio-política da ausência do cinema na escola.

Por outro lado, as possibilidades artístico-expressivas do cinema são dificilmente acessíveis às camadas mais jovens da população escolar. A tendência é de secundarização das áreas artístico-expressivas na política do ensino em inúmeros países, inclusive o Brasil.

Assim, faz-se necessário pensar a sala de aula cinematográfica como um espaço que oportunize aos alunos adquiram uma cosmovisão do mundo, da sociedade em que vivem, e entender que as relações de produção de nossa época informam sobre o sentido e significado do nosso presente.

Nesta perspectiva, ao pensar o cinema, a escola pode também refletir sobre a educação que realiza, os métodos, o programa e até mesmo a sua organização. Como os filmes – e com eles a linguagem cinematográfica -, chegam à escola, à sala de aula, aos ambientes educacionais? De que modo o cinema pode, em realidade e magia, penetrar o universo educacional da sala de aula? Como seria uma escola que também pudesse se expressar na língua do cinema e não somente na língua dos livros? Que educação é essa que se está promovendo, no cinema, na televisão, na sala de aula? Essas questões parecem persistir depois de tanto tempo e de tantas experiências.

Será que o olhar cinematográfico enriquece nosso olhar sobre a educação e sobre o processo escolar? O cinema pode ser definido como uma educação informal, que necessita de uma metodologia para melhor aproveitamento na sala de aula. O cinema atua como um elemento de aprimoramento cultural e intelectual dos docentes e dos discentes. E, ao mesmo tempo, problematiza a ciência da história.

Inicialmente, abordaremos a importância do cinema para:

  • a valorização do patrimônio cultural,
  • lidar com a violência das imagens e a violência do mundo,
  • a socialização do indivíduo,
  • a descoberta da diversidade de expressões estéticas e culturais no mundo.

Em seguida, analisaremos alguns exemplos de como trabalhar o cinema na sala de aula, finalizando com algumas reflexões sobre a importância da crítica de cinema como mediação.

A contribuição do cinema para a valorização do patrimônio cultural

O cinema pode e deve debruçar-se sobre o patrimônio cultural das comunidades, reforçando ao mesmo tempo a memória coletiva da população e se afirmando como um potencial recurso para o seu futuro. O desafio hoje é, antes, melhor integrar a proteção e valorização do patrimônio numa abordagem local do desenvolvimento.

Conforme explica Magnani (1986, p.4):

A noção de patrimônio cultural, conceito abstrato, amplo e de difícil delimitação nas sociedades complexas; é, antes, o resultado de uma intervenção política e discricionária. Supõe-se, vulgarmente, que os critérios dessas intervenções — que definem o que é patrimônio e o que deve ser preservado.

Como sabemos, ao patrimônio físico e construído, se junta tudo o que a história transmitiu, a cultura na sua dimensão imaterial: língua e costumes, folclore, tradições musicais e artísticas, danças, produtos caseiros, especialidades culinárias, sem esquecer evidentemente o artesanato, os ofícios e os antigos saber-fazer. Esta diversidade é também territorial: cada cidade e/ou região possui o seu caráter próprio, uma “alma” que faz muitas vezes o orgulho dos habitantes e atrai o visitante exterior.

Os edifícios e monumentos antigos foram construídos para responder às necessidades sociais, econômicas e culturais das gerações que nos precederam. Encarnam o esforço de desenvolvimento de uma época. Representam também um recurso importante e uma fonte de inspiração para aqueles que hoje intervêm nesse mesmo sentido.

O patrimônio é, pois, um recurso a valorizar. E o cinema pode dar uma contribuição valiosa nesse sentido, registrando o orgulho das comunidades, o sentido da continuidade histórica. O cinema pode fazer a sua parte a favor da reabilitação do patrimônio, da redescoberta da sua autenticidade e de um novo respeito pelo passado.

Patrimônio e desenvolvimento local devem funcionar em parceria. Os programas de desenvolvimento precisam integrar na sua abordagem a valorização do patrimônio, travar as ameaças que o põem em perigo e valorizá-lo tanto quanto possível. Ao se defender o patrimônio deve-se ter em conta as necessidades do desenvolvimento local e do aproveitamento de todas as oportunidades que se apresentam para sua preservação e difusão.

Tendo em conta que cada cidade e/ou região tem os seus monumentos, escolas, bibliotecas, costumes, paisagens naturais, contos e lendas, artesãos, gastronomia e que as pessoas que são dessa cidade e/ou região, gostam desses elementos culturais e também gostam de mostrá-los a quem a visita, pode-se imaginar que alguém queira visitar a sua cidade e/ou região, e queira ver e contatar com esse patrimônio. Nesta perspectiva, o professor pode, por exemplo, realizar alguma atividade com os alunos, procurando a incentivá-los a recolher as informações necessárias para realizar um pequeno filme de 5 minutos onde vai procurar resgatar a memória histórica da sua comunidade. O aluno pode escolher um ou vários elementos desse patrimônio de que goste especialmente. Pode discutir com outros colegas, ou pode também trocar ideias com colegas de outras escolas até chegar a uma decisão final. O que ele filmaria (lugares, paisagens, monumentos…)? Entrevistaria personagens da comunidade? Quem seriam essas personagens? Que perguntas lhes faria? Que título daria a seu filme? Introduziria alguma trilha sonora?

Como a educação pelo cinema pode ajudar a lidar com a violência das imagens e a violência do mundo

Devemos criar o mais rápido possível ferramentas técnicas e educacionais para desconstruir imagens que transmitam violência imediata e impressionante. Devemos também continuar e até mesmo aprofundar o trabalho iniciado nos conteúdos da história das artes para marcar a diferença entre essas imagens prejudiciais e as produções artísticas que, também, mostram a morte, mas numa outra perspectiva. Essa nuance é fundamental porque é menos a violência do que é representado que importa do que a forma como é mostrada. A história da pintura, escultura, fotografia reúne uma multiplicidade de imagens de morte e sofrimento. A diferença é que essas proposições permitem uma diversidade de interpretações. Eles não se esgotam no assunto que representam. Quem olha para elas pode ficar à distância e pensar no que vê.

Segundo Duarte (1997, p. 11):

É importante assinalar que a análise crítica de filmes considerados violentos não implica em sugerir que assisti-los ou mesmo gostar deles seja uma atitude em qualquer aspecto condenável. As preferências culturais e a formação do gosto estão diretamente vinculadas à dinâmica de funcionamento do grupo familiar e do grupo social a que pertencem os sujeitos, assim como às suas experiências culturais, ao seu grau de escolaridade e à posição que ocupam (e/ou desejam ocupar) no espaço social pelo qual transitam.

A melhor proteção contra a violência e a nocividade das imagens é o conhecimento da arte. Em segundo lugar, a cultura audiovisual, no seu sentido mais amplo, também deve encontrar o seu lugar na escola. É necessário introduzir, em faculdades, por exemplo, produções contemporâneas feitas a partir de um videogame com meios extremamente básicos e baratos. É necessário mostrar e explicar a riqueza das técnicas atuais de criação de imagens animadas. É imperativo dar aos jovens a oportunidade de abordar com clareza as imagens produzidas hoje, quaisquer que sejam sua natureza: reportagens de televisão, séries, clipes, videogames, etc. Finalmente, nunca devemos permitir que uma imagem violenta circule sem colocar palavras nela. O desconforto que provoca deve ser colocado à distância por palavras, descrevendo situações que ajudem a identificar os processos que utiliza. A observação cuidadosa de sua construção possibilita colocá-la em um contexto ideológico e político, para então entender quais as concepções de mundo de quem fez essa imagem.

A contribuição do cinema para a socialização do indivíduo

O poder público, frequentemente, dá pouco apoio à juventude, sobretudo dos jovens dos bairros mais desfavorecidos, mas também de todos os que não encontraram na escola nem na vida profissional os meios de se estruturarem como sujeitos livres para exercer uma atividade construtiva para a sociedade e reconhecida por ela. Esta juventude é fortemente afetada por um ressentimento em relação aos atores políticos e a toda a sociedade, que acaba por ser para eles uma “falsa democracia”.

Para Cruz e Lohr (2008, p. 08):

O ato de pensar, sentir, argumentar desencadeados pelo filme pode despertar no aluno o compromisso de se envolver com o conhecimento, o desejo de contribuir para a melhora de sua vida e dos demais, a melhora da percepção do mundo em que está inserido e ajudá-lo a olhar a si próprio como parte integrante deste mundo, com potencial para contribuir na transformação da sociedade.

A socialização dessa juventude é, portanto, um desafio real para lidar com os flagelos da doutrinação e da radicalização da imagem. A socialização não se reduz ao sucesso acadêmico e/ou social. É um processo muito mais complexo que envolve a inteligência, mas também os gestos, o jeito de olhar, de falar. A socialização é um jogo de forças e tensões que atravessa os indivíduos sempre em relação aos outros. Os seres não são totalmente livres, sozinhos e desapegados, nem totalmente presos em determinações.

A educação cinematográfica e sua contribuição para a descoberta da diversidade de expressões estéticas e culturais no mundo

É óbvio que uma educação cinematográfica tem o duplo objetivo de descobrir a diversidade de formas e culturas estéticas. No entendimento de Morin (1983, p. 170):

O cinema abriu-se a todas as participações; adaptou-se a todas as necessidades subjetivas. Por isso é, segundo a fórmula de Anzieu, a técnica ideal da satisfação afetiva e o é, efetivamente, a todos os níveis de civilização e em todas as sociedades.

Como referi, é muito importante incluir produções audiovisuais mais contemporâneas, como clipes, séries de TV, etc. porque ajudam a apreender e a distinguir imagens prejudiciais daquelas que nutrem a mente e a sensibilidade. Isso restauraria toda a sua potencialidade para uma educação em imagens em que o cinema ocupa um lugar essencial. Descobrir a diversidade de culturas é também um imperativo da educação cinematográfica. Vivemos em um mundo globalizado, mas de maneira egocêntrica e padronizada. Devemos parar de nos confortarmos com a imagem de nós mesmos e nos voltar para a riqueza do mundo. Uma vez que o contato entre os povos é uma realidade palpável, a compreensão da diversidade cultural não pode ser ignorada, a curiosidade de uns em relação aos outros é necessária. Por exemplo, diante da disseminação de imagens nocivas do grupo chamado “Estado Islâmico”, um melhor conhecimento da cultura árabe-muçulmana evitaria muita confusão. Aprenderíamos que o Egito, a Síria e o Iraque, que hoje são lugares de extremo sofrimento, têm ricas especificidades históricas e culturais. Aprenderíamos que os pontos de ruptura entre o dogmatismo, o poder, o fanatismo e a liberdade de pensar, criar não pertencem apenas ao nosso tempo, que constituem a história de todos os países afetados pelo monoteísmo. Temos acesso a muitas informações, mas não temos cultura.

Devemos, portanto, ter em mente a ideia de que, além das diferenças culturais e geográficas, existem pontes, questões comuns a todos os povos. Em vez de pensarmos a cultura como um espaço de pertença, portanto de diferença e separação, faríamos melhor considerá-la como algo que une todos os homens, sozinhos ou em grupo, em torno das questões fundamentais da vida, da sobrevivência, da ação e da morte.

Da motivação à mobilização intelectual: alguns exemplos de como trabalhar o cinema na sala de aula

Um fato indesmentível é o de que o cinema se tem revelado um meio de suporte cada vez mais trabalhado na escola. Isso requer que o professor prepare seriamente a exibição de um filme para permitir a compreensão de todos os alunos, tentando evitar duas armadilhas: muita preparação, que acaba estragando a curiosidade e o consumo passivo de imagens. Importa, sobretudo, despertar o interesse, dar algumas breves informações sem revelar o essencial para desencadear uma situação mobilizadora, despertando a curiosidade e o desejo de aprender dos alunos.

Não basta seduzir para conquistar o interesse e a mobilização dos alunos na atividade proposta. O filme mais cativante aos olhos do professor pode muito bem revelar-se indiferente ou ser rejeitado por um aluno porque ele não responde às suas preocupações ou porque, ao contrário, ele toca em algo que lhe é sensível.

O trabalho de preparação necessário antes de ver o filme requer uma seleção rigorosa de tarefas, porque algumas delas não geram atividade na medida em que não mobilizam o interesse, outras resultam em uma atividade inútil – fazer para fazer – outras, finalmente, desencadeiam operações mentais propícias à aprendizagem. Tarefas que convocam a atividade intelectual do aluno são aquelas que apresentam um problema para ser resolvido, um problema que vá além do exercício estritamente acadêmico, interagindo com pessoas que têm coisas a dizer e ações para serem realizadas conjuntamente.

Um professor que deseje usar o cinema como parte de seu ensino deve evitar o consumo passivo de imagens pelos alunos. Para eles, é essencial que o professor crie um enigma, não falar demais para preservar algo que precisa ser descoberto, certamente, mas principalmente para provocar uma atividade de questionamento e uma busca dos meios de narrar o que foi percebido. A questão essencial é, realmente, a da atividade do aluno, fazendo com que ele se torne o centro de gravidade da situação de aprendizagem.

Se as salas de cinema têm desvantagens significativas aos olhos de muitos professores – longas sessões fora do tempo escolar, contudo as sessões orientadas podem ser uma solução interessante. Os benefícios do cinema em ambientes fechados são bem conhecidos, especialmente quando combinados com um trabalho cooperativo e baseado em parcerias. Permite que os alunos desenvolvam uma prática cultural: adquiram o hábito de ir ver um filme numa sala de cinema com outras pessoas – o público, os colegas com quem você pode “reagir com entusiasmo”, durante a sessão, com risos, emoções ao contrário do que ocorre de forma solitária, na frente de uma tela de televisão ou do computador. Mas hoje, recusar os dispositivos tecnológicos disponíveis seria impensável, pois o imenso material disponibilizado pela internet cria as condições para que se realize um trabalho mais elaborado e rico, possibilitando, rever uma sequência ou congelar uma imagem específica para analisa-la com mais detalhes utilizando, por exemplo, um DVD.

A semelhança entre a idade do personagem principal do filme e o aluno é um bom motivo para encorajar o encontro entre o aluno e o filme?

A identificação com o personagem principal é eficaz para “entrar” em um filme. No cinema, o espectador está sempre a ser confrontado com o comportamento do outro. Ele pode se colocar em seu lugar, viver indiretamente a situação ficcional do filme. O efeito de projeção do espectador em relação ao personagem permite-lhe imaginar, viver e pensar em si mesmo como outro. Há, portanto, uma extraordinária fonte de aprendizado neste processo de identificação que se abre para possíveis vidas que nunca são, realmente, vividas. No entanto, seria redutor mostrar apenas histórias de crianças, jovens, apenas por este motivo. Há filmes ruins nos quais os papéis principais são desempenhados por crianças. Existem outros critérios a considerar, em particular o da qualidade plástica do filme em relação à questão da substância que ele representa. A diferença de idade é também interessante. Um determinado filme, por exemplo, que conta a história de uma criança para adolescentes de 14 a 17 anos, onde ela conta às crianças de 8 a 10 anos as aventuras de um personagem que é um pouco mais velho. Essa sutil diferença de tempo vivida no cinema com a da vida permite que alguns pensem na infância à luz da sua própria experiência, outros imaginem o futuro próximo através de um alter ego.

Som e imagem

A dissociação do som e da imagem é muitas vezes interessante para facilitar a percepção dos elementos que ligam os canais auditivo e visual. Com efeito, ao se dar uma ênfase maior ao som, e particularmente à atenção concentrada nos diálogos, a atenção à imagem acaba por ser negligenciada; inversamente, incidindo uma maior atenção nas imagens pode acabar por desviar o esforço necessário para entender os diálogos. A metodologia mais adequada é realizar a análise da imagem sem o som para descobrir o personagem principal e seu eventual comportamento incongruente; por outro lado, o trabalho concentrado no som sem a imagem em outro episódio do filme permitirá que o aluno preste mais atenção à conversa e descubra outra situação em paralelo, em um contexto completamente diferente. O déficit de informação assim criado é um poderoso impulsionador da aprendizagem, pois contribui para o desejo de saber mais e para a busca da linguagem e dos meios necessários para poder melhor compreender o filme. A atividade dos alunos é impulsionada através do uso de hipóteses nas duas situações mencionadas, e trazendo e provocando neles o desafio do enfrentamento sobre a dualidade verdadeiro/falso, a partir de suas hipóteses, que serão verificadas durante visualização.

Nota-se que durante um longo período o cinema continuou a ser mudo, o que não o impediu de produzir obras-primas. Então, subtítulos, legendas, eram necessários para a compreensão do filme, para a apresentação mínima de partes dos discursos dos personagens. No início da fala, de acordo com alguns, em muitos filmes tinha-se uma nítida predominância dos barulhos, dos sons em relação ao diálogo.

Observa-se que, frequentemente, o som pós-sincronizado, refaz-se em laboratório e é misturado sabiamente; não é natural, espontâneo. Para os filmes estrangeiros, é necessário ter em atenção que os atores são dublados.

Em relação à imagem fílmica ela pode significar qualquer outra coisa que é mostrada. A realidade da obra fílmica não é o que é mostrado, denotado, mas o que é significado pelo sistema complexo do filme; é necessário ter em conta o contexto. A imagem não constitui, ao contrário da palavra, um sinal fixo, dotado de um sentido único; não corresponde a uma convenção definitiva.

Em outros termos, ou mais simplesmente, as imagens não têm um significado unívoco ou intrínseco, tomam um sentido apenas umas em relação às outras ou colocadas num contexto. Sublinha-se, assim, o papel decisivo do espectador para construir ativamente o sentido do que vê. As imagens, assim como os discursos verbais, os textos literários, são susceptíveis de ser interpretados.

O cenário

Começando a análise pelo cenário também se pode permitir o trabalho de antecipação. Aos alunos são dados diferentes quadros do filme que lhes permitam localizar informações e fazer suposições sobre pessoas, lugares, enredo… Então, eles têm réplicas do cenário que devem associar aos personagens e situações, permitindo-lhes completar a informação, confirmar as hipóteses.

Os aspectos culturais

O trabalho começa com uma rememoração do conhecimento, das representações dos alunos sobre o contexto da trama do filme (país, língua, cultura, etc.), dos recursos que facultam novas informações – uma linha do tempo para situar a evolução histórica desse país na forma de quadrinhos, figuras-chave (área, população, crescimento, orçamento da educação, mortalidade infantil, expectativa de vida, etc.) – necessários para entender o contexto em que a trama ocorre. Mas a informação recebida é apenas informação geral, um ponto de partida, e deve ser transformada pela captura e a transformação dos dados, que devem ser apresentados sob a forma oral e/ou escrita: neste caso, esta apreensão é feita através de uma nota resumindo o conhecimento que a contribuição dos recursos propostos ajudou a apreender. Em seguida, pode-se procurar analisar os principais protagonistas através do roteiro de duas cenas do filme a partir do qual os alunos formulam suposições que eles irão confrontar, informações dadas por essas duas cenas do filme. Isso levará ao desenvolvimento de um cenário hipotético e a perguntas preliminares para ajudar os alunos a visualizar o filme.

Depois de assistir ao filme

A retomada do trabalho em sala de aula acontece em diferentes eixos.

Ao voltarem à sala de aula, os alunos participam de uma discussão a partir de uma série de extratos de críticas coletadas na internet, discutirão vários aspectos do filme. Em termos de linguagem, a interação oral com a presença do professor permite aprofundar o diálogo, mantendo a orientação da tarefa: o professor levanta uma ideia, reformula a questão, fornece vocabulário ou, em caso de falhas de concordância, focaliza o debate, mostra uma contradição ou complementaridade, evitando que a discussão se desvie do objetivo.

O trabalho a partir de uma obra literária

Fato revelador de que, embora literatura e cinema construam sintaxes transitivas, cada linguagem sempre traçará suas específicas rotas de criação artística. Se o cinema está impregnado da literatura, a literatura moderna sorve os ritmos e modos do fazer cinematográfico. Linguagens convergentes, cinema e literatura são linguagens do nosso viver urbano, contemporâneo, que se fixam em nossa memória e nos educam cotidianamente. Obviamente, a arte literária narrativa com séculos de elaboração estilística, constitui-se em uma referência ao cinema. Interessante é notar o caminho inverso: a estética do cinema, aos poucos, invadindo e interagindo com a estética literária.

Ao trabalharmos, por exemplo, sobre o texto de um escritor, especialmente a partir de dois trechos de uma de suas obras, permitirá a apreensão do contexto onde se desenrola a trama.

Um caminho a explorar pode ser o de trabalhar em curtas-metragens que estão mais sintonizadas com os horários escolares. Além de visualizar o curso no tempo, a forma abreviada permite, em particular, escrever atividades em torno do cenário, bem como observar os processos referentes a todo o trabalho.

Um lembrete para o professor

O trabalho com o cinema exige muito investimento do professor. Ele deve pensar cuidadosamente sobre as diferentes fases de seu trabalho.

Há um trabalho a realizar a montante, visando identificar objetos de investimento importantes e específicos para cada filme. Isto requer que o professor assista ao filme várias vezes para selecionar os trechos mais relevantes e procurar os documentos mais adequados para o trabalho dos alunos. Hoje, a internet permite acesso imediato a documentação importante, desde o trailer do filme, passando por extratos, pastas, resenhas…

É significativa a escolha de uma ou duas sequências para trabalhar antes da sessão no cinema, com ou sem som, ou procurando estabelecer um confronto com outros documentos – extratos da obra literária cujo filme foi adaptado, por exemplo. Esta escolha é difícil e importante porque depende do professor – o desejo de ver o filme em sua totalidade, certamente, mas também para testar hipóteses e expectativas nascidas do trabalho – a criação do quebra-cabeça que mobiliza inteligência e energia, desperta desejo.

A escolha de tarefas para colocar os alunos no projeto: prestar atenção ao que vemos – ou ao que ouvimos – e o que nós imaginamos, antecipar mais tarde, imitar as cenas para relacionar duas delas, reconstruir a trilha sonora, etc. É longa a lista de possibilidades disponíveis para o professor, que deve garantir a preservação do enigma, para que o desejo de saber esteja sempre desperto.

Em síntese, qual a questão central que se pretende alcançar ao promover uma sessão de cinema com os alunos: será um movimento que irá mobilizar o aluno a partir de uma postura passiva (consumidor de imagem) ou estritamente emocional (prazer em reconhecer um tema ou um ator favorito) ou mobiliza-lo para uma postura intelectual de questionamento sobre a narrativa ou processos cinematográficos, isto é, sobre a capacidade de fazer perguntas e buscar respostas em vez de esperar que as perguntas sejam feitas?

Depois de assistirem ao filme é importante promover debates, dramatizações, escrita de artigos, trabalhos relativos a vários aspectos técnicos, etc.

Podemos nos alegrar que o cinema esteja cada vez mais presente nas salas de aula. No entanto, não se trata de usá-lo como um suporte apenas sedutor ou motivador para os alunos.

A importância da crítica de cinema como mediação

A crítica de cinema é um dos mecanismos que movimentam a produção cinematográfica no mundo, contribuindo para a formação de público para os filmes. Os primeiros críticos surgiram na década de 1920, numa época em que o cinema passava pelo processo de amadurecimento da forma, ainda sem cores e com execução diferenciada da trilha sonora. Ao promover o debate e fomentar a produção, a crítica se apresenta como importante processo final da indústria cinematográfica.

Mas qual a tarefa do crítico de cinema? É a de situar o filme dentro do seu contexto histórico, bem como os novos rumos da produção cinematográfica, e, concomitantemente, registrar o desenvolvimento do cinema como arte e indústria, analisando os filmes com embasamento nas mais diversas possibilidades cientificas: política, filosofia, psicanálise, sociologia, entre outras. A crítica é um discurso paralelo à obra. Entre os dois, estabelece-se um jogo de aproximação e distanciamento. O crítico precisa fornecer uma leitura fílmica sublinhando os eventuais valores poéticos, tendo a função de intérprete e guia.

Há várias maneiras de abordar um filme.

Pode-se partir de uma cena e buscar ver nela o estilo ou a linguagem do diretor, de que maneira ele enfoca determinado tema ou cria determinada atmosfera.

E pode-se começar contextualizando o filme em sua época, na história do cinema, no seu gênero, etc.

O ideal é que a crítica vá além da mera paráfrase e do mero juízo de valor, que tente descobrir no filme coisas que podiam passar despercebidas a um olhar mais ingênuo e desavisado. Para isso, quanto mais conhecimento o crítico tiver:

  • da linguagem cinematográfica,
  • da história do Cinema,
  • das outras artes e
  • do contexto histórico abordado no filme, melhor.

 

Nos critérios a considerar para se avaliar um filme sem cair no estereótipo de bom e ruim, é sempre bom pensar o filme em várias frentes em sua relação com:

 

  • a história do Cinema,
  • outros filmes do mesmo gênero ou do mesmo contexto de produção;
  • o objeto abordado (momento histórico, personagens, ambientes);
  • o seu manuseio da linguagem específica do Cinema (enquadramento, montagem, iluminação, ritmo, etc.);
  • sua relação com o espectador, ou com um espectador ideal;
  • as artes visuais, com a música, com a literatura.

 

Tudo isso fornece um conjunto de parâmetros que torna menos subjetiva a apreciação de um filme, menos idiossincrática sua avaliação. Com a ressalva de que a subjetividade, e mesmo certo grau de idiossincrasia, nunca serão abolidos. Um filme é um organismo vivo, que mexe com muitas camadas de sensibilidade do espectador, e o crítico não deixa de ser um espectador. Cada um será sensibilizado de uma maneira diferente pelo filme.

Qual, então, o papel da crítica na mediação entre a obra e o espectador? A crítica deve ajudar o espectador a ver melhor um filme, ou seja, de forma menos ingênua e desarmada. E chamar a atenção para aspectos que poderiam passar despercebidos a um olhar menos atento e preparado. Em última instância, a crítica deve ajudar o espectador a apurar e aguçar o seu olhar, a sua percepção.

Considerações finais

Quando acompanhado de um adulto que respeita a emoção da criança, o ato aparentemente minúsculo de rodar um plano envolve não só a maravilhosa humildade que foi a dos irmãos Lumière mas também a sacralidade que uma criança ou adolescente empresta a uma “primeira vez” levada a sério, tomada como uma experiência inaugural decisiva. (BERGALA, 2008, p. 210)

Não é fácil, sem dúvida, desprendermo-nos de um pragmatismo em educação que reinou durante muitos anos nas aulas de nossas escolas, e situou nas aprendizagens instrutivas (conhecimentos) a finalidade, quase exclusiva, do trabalho do professor. É óbvio, que as reformas educativas não se mostram eficazes enquanto não fizerem parte da cultura ou do modo de pensar daqueles que as vão aplicar. Por isso, falar de liberdade, respeito mútuo, solidariedade, etc. como proposta educativa pode significar, todavia, uma ocorrência singular, quando inexoravelmente estamos imersos numa carreira cuja meta desejada, e difícil, é o exercício de uma profissão para a qual somente se nos exigem conhecimentos e destrezas.

Na prática, sem dúvida, não é fácil separar as aprendizagens instrutivas das componentes atitudinais e valorativas. Em qualquer atuação docente estamos filtrando e projetando uma determinada concepção de pessoa, promovendo determinados valores, pelo que não podemos renunciar à nossa condição de humanos que vivem e atuam a partir de valores.

É impossível, portanto, subtrairmo-nos da condição de emissores de mensagens que chegam aos alunos codificadas e interpretadas a partir da nossa ótica pessoal. A escola não só “molda” o pensamento da criança e do adolescente oferecendo-lhes uma quantidade considerável de conhecimentos. Se isso fosse assim, dir-se-ia que a ação instrutiva-educativa ocorreria fora do tempo e do espaço.

Certamente, a experiência do valor será sempre contraditória, quer dizer, existirão sempre experiências de injustiça, intolerância, etc. Por isso, a apropriação o valor representa e exige uma opção-escolha do educando. E o ensino do valor deverá incidir sempre na preparação do educando para que ele possa fazer a melhor escolha. Não faz sentido, portanto, impor os valores num processo educativo. Se não oferecermos, entre muitas outras, as experiências dos valores que desejamos transmitir, a educação nesses valores converte-se numa tarefa impossível. Se não oferecermos a possibilidade de os nossos alunos verem outro tipo de cinema, como romper com os valores inculcados pelo cinema dominante?

Referências

BERGALA, Alain. A hipótese-cinema. Pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Tradução: Mônica Costa Netto, Silvia Pimenta. Rio de Janeiro: Booklink – CINEAD- LISE-FE/UFRJ, 2008.

COSTA, Flávia, entrevista com Zygmunt Bauman: “Lo que queda de la belleza”, Clarin, Suplemento Cultura y Nación, Buenos Aires, 7/12/02.

CRUZ, E. P. da; LOHR, S. S. O cinema como instrumento na Educação da Afetividade: um convite à reflexão e à humanização (2008). Disponível em http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1425-8.pdf. (Acesso em 23/02/2023).

DUARTE, Rosalia. A Violência em Imagens fílmicas. In: Educação e Realidade, 22(2): 133-145, jul/dez, 1997.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Pensar grande o patrimônio cultural. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, v. 3, n. 2, dez. 1986.

MORIN, Edgar. A alma do Cinema. In: XAVIER, Ismail (ORG.). A Experiência do Cinema. Rio de janeiro: Graal: Embrafilmes, 1983.

As imagens que ilustram este artigo são ordenadamente de Meg Boulden, Aneta Pawlik e Vanilla Bear Films.

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