Por Manolo

Na parte anterior, começamos uma digressão linguística para situar mais precisamente o problema de que vamos tratar, indicando que técnica e tecnologia são palavras que só ganharam os sentidos atuais por volta do século XIX. Para chegar até aí, precisaremos voltar mais um pouco no tempo, e também de algum recorte no espaço.

Um parêntese necessário: o cameralismo germânico

No início do século XIX, no Sacro Império Romano-Germânico e na Prússia (estendendo-se à Suécia), Technologie era o nome de uma disciplina científica específica que, junto com a Oeconomie e a Polizei (“polícia administrativa”), compunha a cameralística ou ciência cameral (Kammeralwissenschaft), misto de orientações práticas e produção científica de conhecimento por parte de burocratas de corte desses reinos, impérios, ducados, eleitorados e principados responsáveis, entre outros assuntos, por lidar com a “câmara” (Kammer), nome que então se dava ao tesouro de seus chefes aristocráticos, oriundo da taxação sobre domínios, minas e impostos, mas também pela tributação do clero, das cidades e dos judeus, além de uma grande variedade de impostos indiretos cobrados sobre comércio, bens de consumo e artigos de luxo[1]. Esta nova “esfera secreta” de governança soberana, iniciada após a Paz de Vestfália (1648) e centrada em torno das finanças principescas, criou raízes nas terras alemãs: no século XVII, a maioria dos territórios alemães, grandes e pequenos, havia desenvolvido Kammern para administrar os assuntos íntimos de príncipes, duques, reis e imperadores. Na segunda metade do século XVII, os membros de cada Kammer começaram a ser reconhecidos como um grupo distinto; as pessoas começaram a chamá-los de cameralistas (Kammeralisten)[2]. À prática e à teoria dos cameralistas, certos historiadores do pensamento econômico passaram a chamar de cameralismo (Kameralismus), e é por este nome que a ciência cameral ficou mais conhecida fora de contextos germanófonos.[3] O cameralismo se estabeleceu como uma ciência acadêmica depois de 1727, quando Frederico Guilherme I da Prússia criou cadeiras universitárias sobre Ökonomische-, Polizei- und Kameralwissenschaft (“Ciência Econômica, Policial[4] e Camerária”)[5] nas universidades prussianas em Halle (atual Martin-Luther-Universität Halle-Wittenberg) e Frankfurt an der Oder (a Alma Mater Viadrina, atual Europa-Universität Viadrina Frankfurt (Oder))[6]; ele queria que seus funcionários fiscais (Kammerbedienten) soubessem algo sobre agricultura e manufatura, mineração e silvicultura, contabilidade e comércio[7]. Por razões parecidas, a rainha Maria Teresa da Áustria ordenou em 1763, no curso das reformas que promoveu durante seu reinado, uma reforma no curso de ciências jurídicas da universidade de Viena, quando Joseph von Sonnenfels (1733-1817) foi nomeado professor de Polizei- und Kameralwissenschaft (“Ciência Policial e Camerária”)[8].

Misto aparentemente eclético de economia, veterinária, ciência política, administração pública, demografia, química, arquitetura, física, botânica, metalurgia, zoologia, jurisprudência, matemática pura e aplicada, mineralogia, engenharia civil, contabilidade e engenharia de produção[9], a cameralística, verdadeira “ciência do Estado” associada ao Estado de polícia germânico[10], tem sido tratada como nota de rodapé nos livros de história da Economia e do pensamento econômico, em geral colocada como variante germânica do mercantilismo. Ora, o próprio mercantilismo é categoria usual, mas controversa, pois coloca no “mesmo lugar” filósofos, diplomatas, religiosos, burocratas e juristas tão diferentes quanto Jean Bodin, Antoine de Montchrestien, Gerard Malynnes, Barthélemy de Laffemas e Jean-Baptiste Colbert, na França; Ferdinando Galiani e Antonio Serra, no Reino de Nápoles; Giovanni Botero, no Ducado de Saboia; Thomas Mun e Josiah Child, na Grã-Bretanha; Martín de Azpilcueta, Tomás de Mercado (e outros integrantes da Escola de Salamanca como Juan de Mariana), Luis Ortiz e Pedro Fernández de Navarrete, na Espanha; Luís de Menezes (3º Conde da Ericeira) e Duarte Ribeiro de Macedo, em Portugal. Alguns entre eles influenciaram-se mutuamente (p. ex., Bodin usando a obra de Azpilcueta como base para suas reflexões sobre dinheiro e comércio), mas não se pode dizer que havia entre eles o mesmo tipo de colaboração e circulação de ideias que caracteriza uma verdadeira “escola”. Pode-se, entretanto, adotar a mesma perspectiva de um especialista no assunto, para quem o mercantilismo é um conjunto de práticas formuladas em resposta a situações específicas[11], um sistema de unificação próprio ao absolutismo, de caráter universalista, contraposto ao particularismo das antigas instituições feudais[12]. É só neste sentido que se pode dar alguma “unidade” ao mercantilismo.

Este mesmo especialista, entretanto, separa mercantilistas e cameralistas (com exceção de Johann Joachim Becher (1635-1682), Philipp von Hörnigk (1640-1714) e Wilhelm von Schröder (1743-1815)[13]). Pesou muito, nesta separação, a grande diferença de circunstâncias entre ambos os grupos[14]. A cameralística germânica, e o cameralismo enquanto “movimento”, aproxima-se de certos traços do mercantilismo pela ênfase na substituição de importações; pelo forte dirigismo econômico, pela concepção de um valor intrínseco aos metais preciosos, considerados indicador da capacidade de um país de não depender de países estrangeiros em uma era de conflitos políticos e militares[15], pela obsessão por uma balança comercial positiva e pela concepção do comércio e das finanças como parasitários em relação à agricultura e aos ofícios manuais.

Por outro lado, o cameralismo distancia-se do mercantilismo “típico” pela forma com que os cameralistas lidaram com os problemas próprios à formação do Estado moderno na Europa Central[16]: um mercado de capitais menos desenvolvido, uma presença mais arraigada de elites senhoriais locais e uma gestão mais direta das atividades econômicas por administradores públicos[17]. Sob tais circunstâncias, os cameralistas germânicos encontraram soluções bastante peculiares para fazer funcionar a economia do país e encher os cofres de seus chefes aristocráticos por meio da arrecadação de tributos[18], cofres para cujo controle desenvolveram técnicas contabilísticas diferentes daquelas empregues na contabilidade comercial, e que ainda hoje se estuda e pratica em certos países da Europa Central e do Norte[19]. Ao contrário dos mercantilistas ingleses, por exemplo, os cameralistas privilegiaram a centralização industrial, e não a expansão comercial. Defendiam o aumento da população como forma de incrementar o produto nacional, e estimulavam o mercado interno mediante incentivos ao consumo de produtos locais, visando depender menos das importações. Para os cameralistas, as receitas governamentais eram o mais importante elemento de riqueza das nações[20]. Vejamos algumas das circunstâncias que moldaram as práticas dos cameralistas.

A primeira delas é a necessidade de reconstruir a economia do Sacro Império Romano-Germânico da devastação populacional (e portanto econômica) causada pela Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), e de sustentar as muitas guerras (especialmente dinásticas) que a ela se seguiram. Em certos territórios, a população foi exterminada de tal modo durante a Guerra dos Trinta Anos que chegou a menos da metade do que era antes da guerra. Até mesmo o setor agrícola do império se retraiu. Não é de espantar, nesse contexto, que cameralistas como Johann Joachim Becher, Philipp Wilhelm von Hörnigk e Wilhelm von Schröder defendessem políticas voltadas para a prosperidade da população; um campesinato próspero, diziam, é meio para aumentar os recursos humanos (população) à disposição do monarca, necessários para a força militar e para a autarcia econômica que preconizavam para reconstruir o império[21]. Maximizar os recursos disponíveis, em especial a população, a agricultura e as artes e ofícios manuais, era recomendação constante dos cameralistas aos imperadores[22]. Becher, por exemplo, inspirou a criação de uma Comissão de Comércio (Kommerzkollegium) em Viena em 1666, e na mesma época ajudou a criar uma Oficina de Artes e Ofícios (Kunst- und Werkhaus) em que mestres estrangeiros treinariam artesãos locais que atuavam na informalidade, fora das guildas (Schwarzarbeiter), na produção de bens acabados; além disso, promoveu a construção de um lanifício em Líncia em 1672, e quatro anos depois estabeleceu uma oficina têxtil para “vagabundos” na cidade boêmia de Tabor, que eventualmente contou com 186 trabalhadores sob sua direção (e depois sob a de Wilhelm von Schröder). Tais iniciativas não duraram muito (exceto pelo lanifício de Líncia, que depois veio a se tornar um dos maiores de toda a Europa), pois guerra (especialmente a invasão turca), perseguição religiosa e má gestão afetaram negativamente os projetos[23]. Na Prússia, por sua vez, desde 1685 os cameralistas incentivaram a migração de huguenotes franceses, judeus e todo tipo de outsider, sob a bandeira da tolerância religiosa; o influxo destes migrantes terá contribuído consideravelmente para o desenvolvimento da manufatura e de certas habilidades técnicas na Prússia[24].

A segunda circunstância é a intensa fragmentação territorial do Sacro Império Romano-Germânico, herdada por meio de instituições que remontavam à Idade Média e, em especial, à Bula Dourada de 1356, decreto emitido pela Dieta de Nuremberga sob a presidência do imperador Carlos IV. De então em diante, sob o pálio do electus Romanorum imperator encontravam-se entidades políticas de pequeno porte (Kleinstaaten) governadas por príncipes-eleitores (Kurfürsten), príncipes (Fürst)[25] e outros aristocratas. A estes, o direito à imediatidade imperial (Reichsunmittelbarkeit, ou Reichsfreiheit) assegurava o direito de supremacia territorial (Landeshoheit), o que lhes dava poderes quase soberanos. No século XVIII somente, estes Kleinstaaten variaram entre 294 e 348, com impressionante diversidade de estruturas administrativas, geografia e atividades econômicas: as barreiras alfandegárias entre diferentes Kleinstaaten não foram levantadas antes de 1775, e mesmo assim parcialmente, com total liberdade aduaneira chegando somente em 1827[26]; além disso, cada Kleinstaat tinha sua própria Kammer, sintonizada com os recursos locais de um território ou região[27]. A unidade territorial já conquistada no mesmo período por França, Espanha, Holanda, Grã-Bretanha e outros estados nacionais estava longe de ser alcançada no Sacro Império Romano-Germânico; ainda havia o caso de entidades políticas que se separaram do império para constituir reinos separados, como a Prússia. Por isso, não era incomum que cameralistas se dedicassem a inúmeros assuntos práticos: fundição de chumbo, jardinagem, fabricação de cerveja, criação de porcos, silvicultura e mineração de rochas duras[28], nada disto estava fora de sua atenção. Não se pense, entretanto, que os cameralistas eram simples artífices ou compendiadores; é muito provável que seu “pragmatismo” fosse simplesmente uma resposta às necessidades eminentemente práticas de produzir os mesmos bens sob diferentes jurisdições[29], ou que tal natureza “pragmática” escondesse uma orientação estatístico-indutiva[30].

Nos países da Europa Ocidental onde vigeu o mercantilismo “típico” (França, mas também Espanha, Holanda e Grã-Bretanha), havia fácil acesso ao Oceano Atlântico, e de lá às Américas, África e Ásia. Vastas áreas do globo externas a seu território original já haviam sido submetidas à sua dominação colonial. A espoliação das colônias garantia suprimento de matérias-primas e de certos produtos da agricultura e do extrativismo que se considerava, à época, “infinitos” e “ilimitados”, como também o eram as minas de prata e ouro descobertas nas Américas. Entre os países da Europa Central e do Norte, somente a Suécia tentou entrar na partição colonial, como parte da afirmação de seu status de potência europeia posteriormente ao tratado de Vestfália; mas entrou tardiamente, tendo sido quase totalmente perdidas para outros países ainda no fim do século XVIII e início do século XIX suas colônias na África (cinco pequenas fortificações povoadas, na atual Gana), Ásia (Parangipettai, atual Índia) e América (Nova Suécia, às margens do rio Delaware, atual Estados Unidos; e os arquipélagos de São Bartolomeu e Guadalupe, no Caribe). Neste contexto, o que os cameralistas propunham era focar o desenvolvimento econômico no mercado interno, por diversos meios — eis onde começa a participação da Technologie nessa história.

A Technologie em meio ao cameralismo germânico

Para a história da Technologie germânica, em vez de olhar para precursores ou grandes figuras da Kammerwissenschaft como Kaspar Klock (1583-1655), Veit Ludwig von Seckerndorff (1626-1692), Samuel Pufendorf (1632-1694), Wilhelm von Schroeder (1640-1688), Christian Julius Schierl von Schierendorff (1661-1726), Christian Wolff (1679-1754), Carlos Lineu (1707-1778)[31], Georg Heinrich Zinke (1692-1768), Johann Heinrich Gottlob Justi (1717-1771), Jens Schielderup Sneedorff (1724-1764), Andreas Schytte (1726-1777), Joseph von Sonnenfels (1732-1817), Johan Christian Fabricious (1745-1808) ou Franz Xaver Moshammer (1756-1826), deve-se olhar com certa atenção para a vida e obra — modesta a primeira, prolífica a última — de um pupilo de Lineu chamado Johann Beckmann (1739-1811). No que interessa ao assunto, Beckmann, nasceu em Hoya, no Eleitorado de Hanôver, nos tempos da união pessoal deste Estado com a Grã-Bretanha e Irlanda. Tendo estudado sob a direção de Lineu por algum tempo, e com ele aprendido aquela ciência descritiva e classificatória que o tornara mundialmente famoso, pretendeu dar aulas de Botânica na Universidade de Gotinga, mas foi vetado por professores da faculdade de Medicina; como “prêmio de consolação”, foi autorizado em 1767 a dar aulas de Ökonomie[32]. Beckmann aplicou a uma ambiciosa obra de catalogação e ordenação de técnicas agrícolas e artesanais todos os princípios científicos aprendidos com Lineu; defendeu por toda a vida que um bom administrador deveria ter algum conhecimento de ciências naturais, que considerava propedêuticos para a ciência camerária[33]. Sua obra Anleitung zur Technologie (“Introdução à Tecnologia”)[34], de 1777, faz parte da tentativa de Beckmann de separar a ciência cameralística em três disciplinas distintas — agricultura, manufatura e comércio — que servissem como uma espécie de ordenação da interação humana com a natureza, permitindo assim a extensão da classificação científica do domínio natural ao humano[35]. A esta altura, Beckmann já era famoso: estudantes de todo o império vinham a Gotinga assistir suas aulas, que inspiraram imitadores como Friedrich Kasimir Medicus, fundador da Kameral Hohe Schule (“escola secundária cameral”) incorporada em 1784 à Universidade de Heidelberga e considerada a mais exitosa instituição de ensino cameralístico do século XVIII[36]. Além disso, sua Anleitung zur Technologie era lida e usada como material didático nas escolas comerciais (Realschule) de Halle, Berlim, Magdeburgo e Brunsvique.

Os esforços classificatórios de Beckmann, entretanto, foram infrutíferos. No fim das contas, Beckmann recolheu práticas profissionais relativas a 324 ofícios, classificados em 51 categorias baseadas nos processos de trabalho de cada uma delas (p. ex., tecelagem, tinturaria, cerâmica, metalurgia, refino, etc.); a Anleitung zur Technologie apresenta mais detalhadamente os processos de trabalho de 32 desses ofícios[37]. Este monumento classificatório, entretanto, resultou somente na tentativa posterior de Beckmann de construir classificações ainda mais abstratas, tentando passar de uma “tecnologia especial” dedicada aos processos para uma “tecnologia geral” capaz de descrever e classificar processos mediante os quais a substância das matérias-primas era transformada (p. ex., “separar”, “folgar”, “unir”, “condensar”, “moldar”, etc.)[38]. Classificar, somente, leva a bons compêndios do que já existe, mas dificilmente permite perceber tendências e mudanças. Não é de espantar que Beckmann tenha importância enquanto compendiador de técnicas artesanais de produção, mas que não tenha conseguido incluir em seu sistema algum lugar para a aplicação industrial das máquinas inovadoras de seu tempo. Menos conhecido que Beckmann, mas igualmente interessante para nosso assunto, é um discípulo de Beckmann: Johann Heinrich Moritz von Poppe (1776-1854), professor de Technologie na Universidade de Tubinga a partir de 1818. Poppe interessa porque tentou levar ainda mais adiante as tendências enciclopedistas de Beckmann: seguindo os passos da Beyträge zur Geschichte der Erfindungen (“Contribuição para a história das invenções”) do mestre, compendiou uma volumosa e muito difundida Geschichte der Technologie (“História da tecnologia”), à qual depois retornaremos.

A Technologie, portanto, enquanto estudo das técnicas produtivas, foi um produto tardio do cameralismo germânico. Tinha caráter sistemático, característico do enciclopedismo iluminista, muito por força das idiossincrasias de seu fundador Beckmann, mas em total convergência com as necessidades da Polizeiwissenschaft cameralística. Beckmann, por exemplo, se dedicou a compendiar um sem-número de instrumentos de trabalho, relatando sua história, os meios de usá-los, seu emprego em processos produtivos, etc. Era isto a Technologie germânica de então, assim definida por Beckmann:

A tecnologia é a ciência que ensina o processamento de materiais naturais ou o conhecimento do artesanato. Em vez de os locais de trabalho apenas instruírem como seguir as regras e os hábitos do mestre para a produção de bens, a tecnologia fornece instruções sistemáticas e completas sobre como encontrar os meios para esse fim a partir de princípios verdadeiros e experiência confiável, e como explicar e usar os fenômenos que ocorrem durante o processamento[39].

Beckmann, nas entrelinhas, evidencia como a Technologie estava vocacionada a quebrar a transmissão tradicional de conhecimento técnico prático pelo sistema mestre-aprendiz[40]. No resto de sua obra, fica evidente o procedimento necessário a este combate. Primeiro, a prática técnica deveria ser rigorosamente compendiada, sistematizada e organizada pelos cameralistas e demais cientistas. Depois, cada prática técnica deveria ser submetida ao escrutínio da crítica científica, isto é, ao que houvesse de mais avançado nas ditas “ciências naturais” de seu tempo (Química, Física, Zoologia, Botânica, etc.). Em seguida, num estágio mais avançado, os cientistas camerais elaborariam reflexões em torno de cada prática técnica, visando integrá-la num quadro científico mais amplo, e usariam tais reflexões no ensino profissional.

Vai na mesma linha seu discípulo Johann Heinrich Moritz von Poppe:

O conhecimento de artesanato, manufaturas e fábricas deu origem a uma ciência própria, que é ensinada em universidades e outras escolas de ensino médio. Em 1772, o conselheiro Beckmann, em Gottinga, chamou-a pela primeira vez de tecnologia, já que, de outra forma, era incorretamente chamada de história da arte. Na tecnologia, não apenas a história do artesanato é ensinada, mas todos os trabalhos, suas consequências e razões são explicados de forma clara e organizada. Ela difere da arte propriamente dita, assim como o conhecimento difere da habilidade, ou como a teoria difere da prática.[41]

Vendo muito superficialmente a reflexão dos cameralistas quanto à Technologie, pode-se fazer uma reflexão inicial sobre os sentidos da palavra tecnologia.

É notável entre os cameralistas a ausência de estudos sobre técnicas de produção industrial. É que a industrialização moderna, tal como já se via no final do século XVIII e início do século XIX na Inglaterra e, parcialmente, na França, só veio a chegar aos países da Europa Central e do Norte muito mais tarde. A própria Technologie, enquanto ciência, foi uma tentativa de estimular o desenvolvimento das técnicas produtivas rumo à industrialização[42]. Vê-se aqui, entretanto, os primeiros contornos do sentido atual da tecnologia como um sistema de técnicas, uma sistematização de técnicas. Voltaremos a este significado mais à frente.

Na parte seguinte, além de ver rapidamente o espraiamento da Technologie germânica pela Europa, veremos outras implicações dela e de suas similares na França e na Grã-Bretanha, até chegar a alguém bastante conhecido, que até o momento não foi chamado a se manifestar sobre o assunto.

Notas

[1] HOLBORN, Hajo. A history of Modern Germany, 1648-1840. Princeton: Princeton University Press, 1964, p. 186.

[2] WAKEFIELD, Andrew. Cameralism: a German alternative to mercantilism. Em: STERN, Philip J.; WENNERLIND, Carl (orgs.). Mercantilism reimagined: political economy in Early Modern Britain and its Empire. Nova Iorque: Oxford University Press, 2014, p. 135.

[3] Sobre Kameralismus e Kameralwissenschaft, cf. WAKEFIELD, Andre. The disordered police state: German cameralism as science and practice. Chicago/Londres: University of Chicago Press, 2009.

[4] Polícia, neste contexto, e por influência da politia ordinata da escolástica medieval, é “a boa ordem (interna) da comunidade política; ela visa ao bem-estar do súdito. Para alcançar esse objetivo, no entanto, o bem-estar do príncipe e do Estado também deve ser cuidado.” SCHIERA, Pierangelo. Cameralismo. Enciclopedia Trecanni delle scienze sociali. Disponível na internet: <https://www.treccani.it/enciclopedia/cameralismo_(Enciclopedia-delle-scienze-sociali)/>. Acesso em 21 maio 2023; no mesmo sentido, SCHIERA, Pierangelo. Estado de Polícia. Em: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11ª ed. Brasília: EdUnB, 1988, pp. 409-413.

[5] Para uma discussão mais aprofundada das “três fontes e três partes constitutivas” do cameralismo, cf. LINDENFELD, David F. The practical imagination: the German sciences of State in the Nineteenth Century. Chicago: University of Chicago Press, 1997, pp. 14-20.

[6] Pierangelo SCHIERA apresenta estes fatos como “a data de nascimento do cameralismo propriamente dito” (Cameralismo. Em: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11ª ed. Brasília: EdUnB, 1988, p. 139); já Andrew WAKEFIELD (Mercantilism reimagined…, passim; The disordered police state…, passim) incorpora ao cameralismo figuras que SCHIERA considera como “precursores” (como Seckendorff), ou ainda outras que SCHIERA qualifica como “mercantilistas” (como Becher, Hornigk e Schröder). Adotamos a posição mais elástica de WAKEFIELD pois, para os fins deste ensaio, interessa mais a presença destas figuras na formação do Estado germânico e na direção da vida econômica na Europa Central que considerações de cunho mais teórico, de filiação intelectual.

[7] WAKEFIELD, Andrew. Cameralism: a German alternative to mercantilism. Em: STERN, Philip J.; WENNERLIND, Carl (orgs.). Mercantilism reimagined: political economy in Early Modern Britain and its Empire. Nova Iorque: Oxford University Press, 2014, p. 136.

[8] HOLBORN, Hajo. A history of Modern Germany, 1648-1840. Princeton: Princeton University Press, 1964, p. 224.

[9] Para uma rápida apresentação e discussão do currículo das academias camerárias de Estugarda, Mainz, Ingolstadt, Giessen e Kaiserslautern, cf. LINDENFELD, David F. The practical imagination: the German sciences of State in the Nineteenth Century. Chicago: University of Chicago Press, 1997, p. 33-45. Na mesma obra, discute-se a todo tempo a influência do cameralismo sobre os currículos universitários em todos os países germânicos durante o século XIX.

[10] “As características típicas do Cameralismo podem substancialmente resumir-se numa só, da qual dependem todas as outras: globalidade na abordagem dos diversos temas da experiência política, dos quaís se tenta uma reconstrução teórica unitária, em consonância não casual com a coerência e unidade da forma de Estado que se impôs em alguns territórios da Alemanha: o Estado de polícia. Elementos da ciência da administração, bem como da economia, da ciência das finanças, da técnica agrária ou manufatureíra concorrem juntamente, em sua unidade, para constituir o núcleo do pensamento cameralista, no qual não são simples soma ou achega, mas fusão articulada que lhe apoia a pretensão a transformar-se em nova ciência do Estado.” SCHIERA, Pierangelo. Cameralismo. Em: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11ª ed. Brasília: EdUnB, 1988, p. 137.

[11] LINDENFELD, David F. The practical imagination: the German sciences of State in the Nineteenth Century. Chicago: University of Chicago Press, 1997, p. 12.

[12] HECKSCHER, Eli F. Mercantilism. Vol. 1. Londres/Nova Iorque: Routledge, 2007, pp. 33-44.

[13] HECKSCHER, Eli F. Mercantilism. Vol. 2. Londres/Nova Iorque: Allen & Unwin/MacMillan, 1955, p. 263. A posição deste autor sobre o assunto é rigorosamente a mesma de Pierangello SCHIERA, destacando inclusive as mesmas figuras do seio do cameralismo para qualificá-las como mercantilistas (cf. nota 6).

[14] “Os cameralistas alemães, entretanto, estavam imbuídos de um espírito próprio. Em termos gerais, eles tinham pouco em comum com os escritores da Europa Ocidental, que viviam em um mundo de comércio privado, transporte e crédito e estavam imersos nele, por mais que não conseguissem entender seu significado mais profundo. Forçar esses dois grupos de autores a entrar na mesma categoria é obscurecer os fatos.” HECKSCHER, Eli F., op. cit., p. 263, tradução minha. No mesmo sentido, mas por outras razões, cf. WAKEFIELD, Andrew. Cameralism: a German alternative to mercantilism. Em: STERN, Philip J.; WENNERLIND, Carl (orgs.). Mercantilism reimagined: political economy in Early Modern Britain and its Empire. Nova Iorque: Oxford University Press, 2014, p. 147, em tradução minha: “Poderíamos, portanto, terminar onde começamos, concluindo que o cameralismo alemão representava uma forma de mercantilismo hartlibiano [ligado ao polímata britânico Samuel Hartlib]. Mas isso seria um erro. O mercantilismo hartlibiano não tinha as estruturas acadêmicas e fiscais que sustentavam o cameralismo alemão. Por esse motivo, as duas doutrinas, escritas com propósitos diferentes e destinadas a públicos diferentes, tinham significados diferentes. Não devemos deixar que as semelhanças superficiais obscureçam essas distinções essenciais.”

[15] CONCA MESSINA, Silvia A. Profitti del potere: Stato ed economia nell’Europa moderna. Roma: Laterza, 2016.

[16] SCHIERA, Pierangelo. Cameralismo. Em: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11ª ed. Brasília: EdUnB, 1988, p. 136.

[17] CONCA MESSINA, op. cit.

[18] “De fato, a tarefa dos cameralistas consistia em preencher a ‘câmara’ do príncipe, ou, em outras palavras, assegurar que as fontes de renda não secassem. Wilhelm vom Schrotter (Schroder) […] escreveu: ‘Portanto, um príncipe deve buscar para seus súditos bons meios de vida se pretende tomar qualquer coisa deles’. A segunda coisa era a razão para a primeira”. HECKSCHER, Eli F., op. cit., pp. 20-21. Tradução minha.

[19] MONSEN, Norvald. The case for cameral accounting. Financial Accountability & Management, vol. 18, nº 1, fev. 2002, pp. 39-72. Disponível na internet: <https://sci-hub.se/https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/1468-0408.00145>. Acesso em 21 maio 2023. Nos debates em língua alemã, a cameralística é considerada seja como técnica contábil (uma forma de contabilidade em quatro colunas, ligeiramente diferente da contabilidade por partida dobrada, que até recentemente era preferida pela administração pública na Alemanha e na Áustria frente a esta última), seja como a execução orçamentária vinculada a um programa político, ou seja, a ação do setor público acordo com o programa político vencedor das eleições, contrastada com a “liberdade de planejamento” dos empresários privados.

[20] SANDRONI, Paulo. Novíssimo dicionário de economia. São Paulo: Bestseller, 1999, p. 76.

[21] BELLER, Steven. A concise history of Austria. Cambridge: Cambridge University Press, 2007, p. 81-85.

[22] BELLER, op. cit., p. 92.

[23] INGRAO, Charles W. The Habsburg monarchy, 1618-1815. Cambridge: Cambridge University Press, 2012, p. 93.

[24] CONCA MESSINA, op. cit.

[25] Fürsten também poderiam ser duques (Herzog), marqueses (Markgraf), landegraves (Landgraf), condes palatinos (Pfalzgraf), príncipes-bispo (Fürstbischof), príncipes-abades (Fürstabt), príncipes-prebostes (Fürstpropst), entre outras gradações de uma hierarquia complexa demais para ser aqui exposta sem desviar demais do assunto.

[26] HECKSCHER, Eli F. Mercantilism, vol. 1. Londres/Nova Iorque: Routledge, 2007, p. 70.

[27] WAKEFIELD, Andrew. Cameralism: a German alternative to mercantilism. Em: STERN, Philip J.; WENNERLIND, Carl (orgs.). Mercantilism reimagined: political economy in Early Modern Britain and its Empire. Nova Iorque: Oxford University Press, 2014, pp. 135-136.

[28] “A bibliografia de Magdalena Humpert sobre literatura cameralista incluiu mais de catorze mil fontes impressas. Não muitas destas páginas (que chegam aos milhões) inclui admoestações gerais sobre venda a estrangeiros. Ao abrir um texto cameralista, é muito mais provável encontrar capítulos sobre fundição de chumbo, jardinagem, fabricação de cerveja, criação de porcos, silvicultura e mineração de rochas duras que, digamos, princípios gerais do comércio”. WAKEFIELD, Andrew. Cameralism: a German alternative to mercantilism. Em: STERN, Philip J.; WENNERLIND, Carl (orgs.). Mercantilism reimagined: political economy in Early Modern Britain and its Empire. Nova Iorque: Oxford University Press, 2014, p.135.

[29] “O Sacro Império Romano-Germânico, com suas centenas de reinos, ducados, principados e bispados, apresentava uma diversidade impressionante de estruturas administrativas, geografia e atividades econômicas. Dessa forma, os cameralistas encheram seus livros com detalhes intermináveis sobre tudo, desde porcos e minas de ferro até florestas e campos de cevada. Isso levou os autores a sugerir que as ciências camerais eram ciências descritivas, modelos de ‘raciocínio prático’, que evitavam o pensamento utópico da economia do século XIX. No entanto, nem sempre foi tão simples. Às vezes, o pensamento utópico se disfarçava de conhecimento prático e utilitário. Os cameralistas gostavam de publicar tratados ‘práticos’ sobre como fabricar cerveja ou criar gado, por exemplo, e muitas vezes faziam parecer fácil. Mas o sucesso prático na agricultura ou na manufatura nunca foi fácil, e é por isso que o fracasso era a regra quando se tratava de novos empreendimentos estatais. Nesse aspecto, os cameralistas eram pragmáticos utópicos, imaginando campos cheios de colheitas saudáveis e vacas gordas, mesmo quando as pessoas bebiam cerveja miserável e lutavam para se alimentar.” (WAKEFIELD, op. cit., p. 136)

[30] “De fato, o cameralismo parece refletir, precisamente em sua natureza pragmática e ateórica, uma atitude verdadeiramente nova e original na política ocidental: a chamada atitude estatístico-indutiva, que representou o lado em que o pensamento político se tornou moderno, em sintonia com a grande revolução no pensamento científico geral.” SCHIERA, Pierangelo. Cameralismo. Enciclopedia Trecanni delle scienze sociali. Disponível na internet: <https://www.treccani.it/enciclopedia/cameralismo_(Enciclopedia-delle-scienze-sociali)/>. Acesso em 21 maio 2023.

[31] Sim, Lineu, o naturalista, repetidas vezes qualificado como também cameralista. Sobre o assunto, cf. KOERNER, Lisbet. Linnaeus’ floral transplants. Representations, nº 47, Special Issue: National Cultures before Nationalism, 1994, pp. 144-169. Disponível na internet: <https://sci-hub.se/http://www.jstor.org/stable/2928789>. Acesso em 21 maio 2023; KOERNER, Lisbet. Linnaeus: nature and nation. Cambridge/Londres: Harvard University Press, 1999.

[32] WAKEFIELD, Andre. The disordered police state: German cameralism as science and practice. Chicago/Londres: University of Chicago Press, 2009, pp. 77-79.

[33] LINDENFELD, David F. The practical imagination: the German sciences of State in the Nineteenth Century. Chicago: University of Chicago Press, 1997, p. 29.

[34] O manual de Beckmann é somente um livro, em meio a milhares de títulos ligados ao cameralismo que foram publicados entre 1727 (adotando a cronologia de Pierangelo Schiera) e 1800. Para uma discussão estatística da evolução das publicações, cf. LINDENFELD, David F., op. cit, pp. 22-25, e pp. 27-28 para uma leitura dessa evolução em meio ao contexto de surgimento da economia política em outros países europeus.

[35] LINDENFELD, David F., op. cit., p. 29.

[36] WAKEFIELD, Andrew. The disordered police state: German cameralism as science and practice. Chicago/Londres: University of Chicago Press, 2009, pp. 113-114.

[37] LINDENFELD, David F. The practical imagination: the German sciences of State in the Nineteenth Century. Chicago: University of Chicago Press, 1997, p. 31-32.

[38] LINDENFELD, David F., op. cit., pp. 80-81.

[39] “Technologie ist die Wissenschaft, welche die Verarbeitung der Naturallen, oder die Kenntniss der Handwerke, lehrt. Anstatt dass in den Werkstellen nur gewiesen wird, wie man zur Verfertigung der Waren, die Vorschriften und Gewohnheiten des Meisters befolgen soll, giebtdie Technologie in systematischer Ordnung, gründliche Anleitung, wie man zu eben diesem Endzwecke, aus wahren Grundsätzen und zuverlässigen Erfahrungen, die Mittel finden, und bei der Verarbeitung vorkommenden Erscheinungen erklären und nutzen soll.” BECKMANN, Johann. Anleitung zur Technologie… Gotinga: Wittwe Vandenhoeck, 1777, § 12, p. XV. Também citado em DÉFINITIONS DE la téchnologie. Thalès, vol. 12, 1966, pp. 85-91.

[40] Convergem neste sentido: TROITZSCH, Ulrich. Ansätze technologischen Denkens bei den Kameralisten des 17. und 18. Jahrhunderts. Berlim: Duncker & Humblot, 1966; DE LISA, Mauro. Instrumentos y máquina em el Manuscrito 1861-1863 de Marx. Em: MARX, Karl. Progreso técnico y desarollo capitalista (manuscritos 1861-1863). Cidade do México: Pasado y Presente, 1982, pp. 7-73.

[41] “Aus der Kenntniẞ der Handwerke, Manufakturen und Fabriken ist eine eigene Wissenschaft entstanden, welche auf Universitaten und andern hohen Schulen gelehrt wird. Herr Hofrath Beckmann in Gottingen nannte sie im Jahr 1772 zuerst Technologie, da man dafur sonst unrichtig Kunstgeschichte gesagt hatte. In der Technologie wird nicht bloẞ die Geschichte der Handwerke gelehrt, es werden dadn vielmehr aIle Arbeiten, ihre Folgen und Grunde ordentlich und deutlich erklart… Von der Kunst selbst unterscheidet sie sich, wie Wissen von Konnen, oder wie Theorie von Praxis.”. VON POPPE, Johann Heinrich Moritz. Geschichte der Technologie…, Vol. 1. § 64 Gotinga: Römer, 1807. Citado também por YOSHIDA, Fumikazu. J.H.M. Poppe’s “History of Technology” and Karl Marx. Hokudai Economic Papers, vol. 13, 1983, p. 28. Disponível na internet: <http://hdl.handle.net/2115/30705>. Acesso em 21 maio 2023.

[42] Neste sentido, cf. YOSHIDA, op. cit., pp. 23-38.

Este ensaio é composto por três partes. Pode ler aqui a primeira parte e a terceira parte.

Ilustram esta parte do artigo obras de Bruce Nauman (1941-)

 

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