Por Manolo

Na parte anterior deste ensaio, viu-se como os cameralistas germânicos desenvolveram a disciplina chamada Technologie. Sua criação se dá num contexto em que estes cameralistas pretendiam recuperar a economia do Sacro Império Romano-Germânico por meio de melhorias às condições de vida da população e aumento da produtividade das artes e ofícios então existentes. Um dos efeitos da sistematização da Technologie pelos cameralistas germânicos — não se sabe até que ponto consciente — foi combater as formas tradicionais de aprendizado técnico por meio das guildas, mas o caráter sistemático da Technologie deixou “rastros” linguísticos, que depois rebateram na produção teórica: Technologie passou a significar algo próximo de um conjunto sistematizado de técnicas.

Pode-se argumentar que este significado legado pela Technologie dos cameralistas estaria de algum modo circunscrito à língua alemã. Entretanto, em seu tempo, a Technologie conviveu com outros esforços semelhantes em outros lugares da Europa, influenciando-se reciprocamente.

A technologie francesa

Pode-se exemplificar a influência da Technologie germânica observando o que se viu no campo francófono, onde desenvolveu-se história interessante, que vale a pena conhecer por demonstrar a primazia germânica na disciplina.

Apesar de Denis Diderot aparecer frequentemente nomeado como precursor do mesmo tipo de compêndio de técnicas feito pelos tecnólogos alemães, em especial no artigo “Arte” da Enciclopédia — aliás conhecido e citado por Johann Beckmann e seu discípulo Johann Heinrich Moritz von Poppe, vistos na parte anterior — a palavra technologie só veio a aparecer em língua francesa por meio do Projet d’établissement d’une societé ambulante de Technographes, apresentado em 1797 como

[…] uma sociedade itinerante de sábios e artistas escolhidos pelo governo, percorrendo sucessivamente todas as partes do território francês, descrevendo todos os seus sítios, examinando e analisando as produções da natureza; submetendo ao cadinho da experiência os processos da indústria; chamando a si certos princípios, estabelecendo sobre bases fixas e invariáveis as operações da economia rural; difundindo a instrução no campo, destruindo aí pela persuasão os preconceitos prejudiciais ao progresso das artes; deixando em todos os lugares traços sensíveis e monumentos duráveis da sua obra.

Dizia ainda seu proponente, Etienne-Marie Siauve:

Se quisermos fazer uma ideia do que o governo pode fazer para encorajar as ciências e as artes, basta olhar para os tempos em que [Jean-Baptiste] Colbert e [Armand Jean du Plessis, Cardeal de] Richelieu eram os dispensadores da generosidade de um príncipe que amava e protegia os artistas e os académicos, fosse qual fosse o motivo. Mas sem recuar tanto, recordemos tudo o que foi feito para a propagação do esclarecimento e para a formação do espírito público pelo Ministro filósofo que a calúnia encharcou com os seus venenos, o corajoso [Jean-Marie] Rolland [de La Platière]. Com que ardor constante ele trabalhou para difundir a educação no campo! Tecnógrafos, não fareis menos pelas ciências e pelas artes do que esse ministro filósofo fez pela moral e pelo espírito público. E quem sabe se, como ele, não encontrareis ainda nesta classe de homens que ele fez servir os seus fins úteis, cidadãos gentis e pacíficos, aptos a desenvolver os vossos princípios e a propagar as vossas descobertas. Chamai-os a partilhar a vossa obra, sobretudo nos lugares onde só poderíeis ter esses homens como intérpretes de uma linguagem que, por mais simples que seja, não pode estar ao alcance de todos, isto é, a linguagem da ciência, feita de expressões cujo sentido o habitante do campo terá dificuldade em apreender, a menos que as dificuldades da tecnologia lhe sejam suavizadas.

A perspectiva é inovadora, porque, ainda no tempo da Enciclopédia, era comum nomear como arte, ou arte manual, o que Siauve chamou de técnica. O próprio Siauve não fez muita diferença entre técnica, ciência e arte. A palavra tecnologia só veio a se difundir realmente na França a partir da publicação dos Annales des arts et manufactures ou mémoires technologiques sur les découvertes modernes concernant les Arts, les Manufactures, l’Agriculture et le Commerce, que apareceram desde o 1º germinal do ano VIII (ou seja, 22 de março de 1800) até 1815 sob a direção de R. O’Reilly e Joseph-Nicolas Barbier de Vémars (ou Barbier-Vémars, a depender da fonte). Mesmo assim, trata-se da mesma perspectiva assistemática, a reclamar o mesmo “tratado de artes e ofícios” imaginado por Diderot em 1751.

Entre aqueles precursores da segunda metade do século XVIII e o advento dos industriais politécnicos da década de 1810, parece ter havido algum diálogo entre eles e os tecnólogos germânicos. Neste ponto da pesquisa, ainda não há como determinar se houve algo como uma troca de correspondência ou visitas e diálogos pessoais, mas é certo que uns liam o que os outros escreviam sobre assuntos correlatos. Os tecnólogos Beckmann e von Poppe citaram nominalmente o verbete de Diderot na Enciclopédia em suas obras. Do outro lado do Reno, em 1803, o Bulletin de la Societé d’encouragement pour l’Industrie Nationale anunciou para venda a quinta edição da Anleitung zur Technologie de Beckmann.

Qualquer que seja a forma do diálogo, é certo que a influência recíproca deixou “rastros” linguísticos. Louis-Sebastien Lenormand, físico e inventor francês, se intitulava professor de tecnologia ao apresentar a seguinte reclamação na Revue Encyclopédique de janeiro de 1819:

Seria desejável que uma reunião de homens que são amigos das artes desejasse produzir um tratado completo sobre tecnologia, pelo qual trabalhadores esclarecidos têm ansiado. Essa ciência abrange o conhecimento de todas as artes industriais que se baseiam na mecânica, na física ou na química. Um número infinito de homens famosos tem se ocupado sucessivamente da teoria de todas as partes que a compõem; mas eles as trataram isoladamente, e suas obras não estão ao alcance dos trabalhadores: elas foram escritas com toda a profundidade da ciência e, por essa razão, são ininteligíveis para eles.

Não parece ser coincidência, depois desta “reclamação”, a publicação de uma obra fundamental para os estudos politécnicos franceses no século XIX: o monumental (22 volumes!) Dictionnaire technologique, ou nouveau dictionnaire universel des arts et métiers, et de l’économie industrielle et comerciale, produzido por uma “sociedade de sábios e artistas” da qual fazia parte o próprio Lenormand, responsável pelos artigos de “tecnologia pura”. Além dele, participaram do esforço editorial o químico Pierre Jean Robiquet, professor da Escola de Farmácia de Paris, redator dos artigos sobre química; o matemático Louis-Benjamin Francœur, redator dos artigos sobre “artes físicas e mecânicas”; o politécnico e inventor Emmanuel-François Molard, diretor adjunto do Conservatório das Artes e Ofícios de Paris e outro redator dos artigos sobre “artes físicas e mecânicas”; e o químico e industrial Anselme Payen, redator dos artigos sobre “artes químicas”.

O que os politécnicos franceses demonstram, com sua vocação enciclopedista, é um caminho similar ao dos cameralistas germânicos, mas num contexto diferente. Aqui, no caso francês, já existia a unidade territorial desde há muitos séculos, e as guildas já haviam sido abolidas em 1791 da Revolução Francesa pela lei d’Alarde (que suprimiu as jurandas e as maestrias) e pela lei Le Chapelier (que aboliu guildas, corporações de ofício, sindicatos e o direito à greve como “contrários à livre iniciativa”). Em vez de se ocupar em conhecer intimamente cada arte e ofício para entender como fazê-los funcionar do mesmo modo em contextos institucionais, tributários e econômicos distintos, a vocação “pedagógica” dos politécnicos franceses deixa subentendido, à primeira vista, que pretendiam suprir a lacuna deixada pela abolição do regime corporativo em 1791. Enquanto os cameralistas germânicos pretendiam confrontar um sistema corporativo em pleno funcionamento, para talvez mesmo derrotá-lo em seus próprios termos com base no conhecimento científico, os politécnicos franceses encontravam terreno livre, e podiam fazer valer suas teorias como base para o aprendizado de artífices, artesãos e trabalhadores manuais de todo tipo. De um lado ou do outro do Reno, entretanto, um efeito comum, desejado ou não: a participação no processo de espoliação dos trabalhadores de seu conhecimento prático sobre o próprio trabalho, a andar pari passu com a espoliação dos meios de promoção promovida pela industrialização.

A falta de uma technology britânica

Apesar da monumentalidade do Dictionnaire technologique, até meados do século XIX ainda eram os tecnólogos de língua alemã a dominar o cenário dos estudos sobre técnicas de trabalho. Sob sua direção, a tecnologia, enquanto estudo sistemático das técnicas produtivas, já havia sido transformada em disciplina científica, com corpus editorial próprio, ensino universitário sistemático e difusão internacional, influenciando inclusive a constituição do corpus politécnico francês.

Por outro lado, na Inglaterra, onde se deram as iniciativas pioneiras da industrialização moderna, parece ter havido pouco, ou nada, de comparável. Neste período, aliás, circulavam na Inglaterra várias traduções das obras de Johann Beckmann, incluindo os cinco volumes de sua Beiträge zur Geschichte der Erfindungen (“Contribuição para a história das invenções”), vertidas ao inglês em 1797 e reeditada quatro vezes até 1846. São muito posteriores a tudo isso os trabalhos de Charles Babbage (On the economy of machinery and manufactures, 1832) e Andrew Ure (The philosophy of manufactures, 1835; An account of the cotton industry, 1836; Dictionary of Arts, Manufactures and Mines, 1837). O mérito de Babbage, que se destaca entre os dois, está, principalmente, em agregar à reflexão econômica o tipo de conhecimento que se produzia na França e na Inglaterra sob o nome de tecnologia, mas que o próprio Babbage não conhecia por este nome.

Até o presente momento, é cedo para especular sobre razões para esta lacuna, cabendo apenas registrá-la.

Hora de acender uma vela? Marx, leitor dos tecnólogos

Agora que mencionei os nomes de Charles Babbage e Andrew Ure, talvez tenha conseguido a proeza de eriçar os pelos de certos escolásticos marxistas. Quem fala de Babbage e Ure, para tais escolásticos, deve, necessariamente, falar do tratamento dos dois por Karl Marx, senão é acusado de todo tipo de blasfêmia.

A escola germânica da Technologie, inserta no campo mais amplo do Kameralismus, teve influência sobre os estudos de tecnologia franceses e britânicos, incluindo aqueles citados por Karl Marx e Friedrich Engels em suas respectivas obras, em especial a do primeiro. Marx, aliás, aparenta ter lido os tecnólogos a partir de suas publicações originais. O fato de terem o alemão com língua materna, e de terem vivido num ambiente institucional em que o cameralismo ainda tinha peso enquanto ideologia, decerto terá tido algum peso em sua leitura.

Esta característica histórica deu a Marx vantagem circunstancial sobre outros economistas ditos “clássicos”, em especial os anglófonos (Smith, Ricardo, etc.). Marx conheceu a Technologie por meio de Beckmann, cuja Beyträge zur Geschichte der Erfindungen (“Contribuição para a história das invenções”) citou no Livro I de O Capital ao tratar de certa máquina de tecer conhecida como Bandmühle, e de von Poppe, cuja Geschichte der Technologie (“História da tecnologia”) citou nos Grundrisse e no Livro III de O Capital.

O volume 32 da Karl Marx — Friedrich Engels Gesamstausgabe (a famosa MEGA), publicado em 1999, tem como objeto único a recomposição minuciosa das bibliotecas pessoais de Marx e Engels. Logo no estudo introdutório — Privatbibliotheken und Edition — Zur Konstituierung des Bandes (“Bibliotecas Particulares e Edição — Sobre a Constituição do Volume”) — encontra-se a seguinte afirmação:

[…] leiloar após a morte do colecionador é um fato universalmente aceito pelas bibliotecas acadêmicas do início do período moderno, como foi demonstrado em detalhes para os membros das faculdades de filosofia, direito, teologia e medicina da Georgia Augusta em Göttingen por meio dos catálogos de leilão remanescentes. Isso se aplica às coleções particulares de livros dos representantes da escola de historiadores de Göttingen, cuja obra estava presente no acervo literário de Marx, bem como ao jurista de Göttingen Johann Jakob Schmauß (1690-1757), que foi citado por Marx, ou ao professor titular de filosofia e economia Johann Beckmann (1739-1811), que foi objeto de estudos de Marx como fundador da ciência da tecnologia.

Além das indicações sobre o conteúdo da biblioteca de Marx, certos marxólogos apontam como passagens inteiras da seção IV do Livro I de O Capital que tratam dos moinhos, da indústria têxtil, da fabricação de relógios e da produção de carruagens são verdadeiras paráfrases da Geschichte der Technologie de von Poppe, incluindo o uso da mesma enumeração e dos mesmos exemplos[1].

Mas apontar como Marx “enrolou a banca” com um monte de “control c, control v” marotos não é o ponto principal. O que importa é indicar que o “control c, control v” indica que Marx teve acesso, sem sombra de dúvida, a aparato conceitual e historiográfico sistematizado sobre as técnicas mais comuns empregues em processos de trabalho, enquanto os “clássicos” amparavam-se em estudos parcelares e menos sistemáticos, testemunhos pessoais e relatos isolados de certos processos produtivos.

Como é bem do gosto dos filósofos dar significado muito específico a palavras de uso corrente, ao receber a palavra tecnologia dos “tecnólogos” franceses e alemães que o precederam (em especial dos alemães), Marx deu a ela um sentido ainda mais forte e preciso no campo da economia.

A distinção entre técnica e tecnologia em Marx depende sempre do ponto de vista que emprega numa determinada análise dos fenômenos produtivos, em especial quando analisa a relação entre um instrumento de trabalho e a força de trabalho que o emprega.

Quando Marx analisa esta relação concebendo a força de trabalho como agente, vê tal relação como procedimento, como ato teleológico (ou seja, com finalidade determinada), como comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras. Nestes casos, Marx usa preferencialmente a palavra técnica (Technik), ou alguma variação em torno dela (“base técnica”, “caráter técnico”, “condições técnicas”, “composição técnica”, “tecnicamente” etc.). Aproxima-se, assim, do significado grego clássico da téchnē (τέχνη) enquanto “modo de fazer”, “destreza manual”. Esta concepção aparece principalmente no Livro I de O Capital, especialmente nos capítulos 7 a 10, 12 e 13; no Livro II de O Capital, capítulos 1, 4, 13, 17, 19 e 21; e no Livro III de O Capital, capítulos 2, 5, 6, 8, 12, 19, 31, 33 e 45.

Complementarmente, quando Marx expõe suas análises da relação entre um instrumento de trabalho e a força de trabalho que o emprega, mas desta vez concebe a força de trabalho em termos mais abstratos, como “coisa” (Ding), em termos impessoais e abstratos, dá preferência à palavra tecnologia (Technologie), ou alguma variação em torno dela (“tecnológico”, “ciência da tecnologia”, “tecnologicamente”, “aplicação tecnológica”, etc.). Isso é verificado especialmente nos Grundrisse, enquanto que em O Capital Marx usa a palavra tecnologia também para referir-se, ao mesmo tempo, àquela disciplina científica criada pelos “tecnólogos” franceses, alemães e britânicos como Beckmann, Poppe, Lenorman, Babbage e Ure.

Poderia transcrever profusamente longos trechos destas obras em defesa de meu argumento, mas o ensaio ficaria enfadonho, e os três livros de O Capital já se encontram disponíveis em PDF na internet para quem saiba buscá-los, assim como os Grundrisse. Posso indicar, adicionalmente, que a quantidade de ocorrências destas palavras no original alemão é muito maior, pelo que não é difícil supor que tenham sido “perdidas” na tradução.

Ponto de seguimento

Até aqui foi onde pude chegar em certos estudos teóricos, que apresento ao público assim mesmo, parcelares, inconclusos e incompletos. Me explico.

No artigo de 2017 a que me referi na primeira parte deste ensaio, pretendi demonstrar, por meio de uma análise da massificação de certas técnicas produtivas como pré-requisito para a autogestão generalizada, que mesmo este pré-requisito não seria suficiente sem participação ativa em processos de luta, para que esta massificação das técnicas não viesse como pura concessão, benesse, migalha que cai da mesa.

O caminho que pretendo percorrer, e que este ensaio anuncia, é complementar, mas diferente e mais profundo: é a análise do papel da passagem de técnicas e tecnemas entre sistemas produtivos diferentes como outra condição necessária para a autogestão generalizada. Anima-me o seguinte pensamento: a alternativa a isso é a rejeição, pura e simples, às técnicas atualmente existentes, porque “capitalistas”. Ou se faz autogestão com as técnicas e tecnemas que se tem à mão, e vai-se ajustando aqui e ali em meio às lutas pela construção de outras bases para a economia e para a sociedade (e portanto para uma nova tecnologia), ou faz-se necessário rejeitar tudo quanto seja “capitalista” para construir “do zero” uma nova sociedade. Esta última alternativa me parece absurda, e não é neste sentido que as lutas de trabalhadores pelo mundo têm apontado nos últimos dois séculos.

Mas ainda é cedo para afirmações peremptórias. Seria preciso avançar mais antes de tirar qualquer conclusão mais firme sobre o enquadramento teórico. Seria preciso, por exemplo, entender a influência da concepção francesa de technologie sobre a obra de Marcel Mauss, que por sua vez influenciou um sem-número de outros teóricos que discutem tecnologia ora marginalmente, ora centralmente (p. ex., Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss). Esta concepção maussiana de tecnologia seria um contraponto à concepção marxiana, pelos diferentes lugares que ocupam nos respectivos corpi teóricos.

Ao fazer dialogar o quadro teórico com os fatos, seria preciso encontrar exemplos que permitam entender se — e como — é possível que diferentes técnicas e tecnemas sejam transportadas de uma tecnologia a outra, de um sistema de técnicas a outro. Não foi por acaso que se escolheu a roda como ponto de partida para algumas digressões linguísticas na primeira parte deste ensaio: ela é o exemplo mais banal de que sim, é possível transportar uma técnica, ou o conjunto finito e limitado de técnicas necessárias para a produção de um tecnema, de um sistema tecnológico a outro. De que é possível, sim, fazer passar um tecnema de uma tecnologia a outra.

Seria preciso, além disso, entender quais os impactos da passagem de um tecnema de uma tecnologia a outra. Há muito o que investigar aqui, e investigar profundamente, mas o material para investigar é muito vasto, e não se pode resumir este tipo de investigação ao estabelecimento apressado de uma tríade ultrassimplificada — “solução capitalista”, “solução reformista”, “solução revolucionária” — sem cair na leviandade.

Para que se entenda o alcance da investigação proposta, novamente a roda aparece: num conhecidíssimo exemplo, o Domínio das Quatro Partes, que conhecemos como império inca (na verdade uma vasta e complexa confederação de muitos povos e cidades-Estado distintas, todas sujeitas à autoridade do inca), é o caso mais conhecido de sociedade instituída sem recurso à roda — ou ao menos sem o recurso sistemático à roda onde se verificou, mesmo assim, divisão social do trabalho bastante complexa. A situação é antiquíssima, muito anterior à instituição do Domínio das Quatro Partes, pois os sítios arqueológicos associados à chamada “civilização Caral-Supe” no atual Peru, datados em torno de 3000 AEC, evidenciam como ali foram construídas cidades-Estados complexas, com redes bem estabelecidas de troca de produtos (principalmente algodão e peixe desidratado), sem necessidade de recurso à roda, eixo ou mesmo à cerâmica, cujos resíduos mais antigos na região andina datam de cerca de 900 AEC. Com isso, deve-se imaginar com que espanto os quéchua e aimaras viram os cavalos e carroças dos espanhóis, mas rapidamente os adotaram.

Em padrão semelhante, os muitíssimos povos ameríndios pré-colombianos também não dispunham de equinos de grande porte, porque, dizem os arqueólogos e paleontólogos, eles existiram algum dia nas Américas pré-colombianas, mas foram extintos, muito provavelmente pela combinação de caça desenfreada e eventos climáticos extremos. No caso dos povos andinos, camelídeos como lhamas, menores e mais fracas, eram suas bestas de carga e montaria. Na América do Norte, noutro exemplo, não havia equinos de grande porte para que lá se desenvolvesse a técnica da montaria de cavalos antes da chegada dos europeus. Apesar destes obstáculos materiais, muito rapidamente os povos das Grandes Planícies como os siksikaitsitapi (“pés pretos”), os apsáalooke (“corvos”), os nʉmʉnʉʉ (“comanches”) e outros aprenderam a técnica de montaria a partir do contato com os espanhóis (depois uns com os outros), e a incorporaram definitivamente em seus modos de vida. Na América do Sul viu-se caso semelhante, com especial destaque para os charrua na bacia do Prata, famosos pelo uso de cavalos como montaria de batalha. Os charrua são exemplo ainda mais curioso, porque são tidos pela esquerda na região do Prata (Argentina, Uruguai, Paraguai e certos Estados da região Sul do Brasil) como símbolo de resistência anticolonial, e devem sua reputação de guerreiros temíveis precisamente ao uso de cavalos como montaria em batalha — depois de aprender dos espanhóis como usá-los.

A adoção (ou não) da roda, do cavalo e das técnicas de equitação por certos povos ameríndios são um exemplo muitíssimo mais profundo, e difícil de investigar em toda sua complexidade num curto lapso de tempo, do que pode acontecer quando técnicas e tecnemas passam de uma tecnologia à outra, de um sistema tecnológico a outro. Mas o que se pretende aqui não é propriamente uma investigação arqueológica ou antropológica, mas política, porque o tema é eminentemente político.

Voltando a exemplos práticos: quando o sistema de som de uma fábrica é posto a trabalhar para organizar os trabalhadores em greve que a ocupam, ele é usado para fazer o mesmo que se faz quando se está em regime de exploração capitalista “normal”? Quando grupos de mulheres em bairros proletários distribuem pequenos apitos de festa entre si e os usam para alertar a vizinhança quando há casos de violência doméstica, é este o mesmo uso para o qual foram concebidos? Lá atrás, quando os trabalhadores russos tomaram para si as fábricas entre 1917 e 1918, John Reed deixou relato muito instrutivo sobre como Grigory Petrovsky percorreu livros contábeis para descobrir produção excedente de tubos de aço, e sobre como trabalhadores de uma tecelagem aprenderam na prática os segredos do comércio e da logística; estavam as coisas a funcionar como sempre, ou as mesmas coisas de sempre estavam sendo postas a funcionar de outro jeito?

É sobre questões deste porte que pretendo me debruçar um pouco nos próximos tempos, no tempo que conseguir roubar à exploração nossa de cada dia.

Notas

[1] YOSHIDA, Fumikazu. J.H.M. Poppe’s “History of Technology” and Karl Marx. Hokudai Economic Papers, vol. 13, 1983, pp. 23-38. Disponível na internet: <http://hdl.handle.net/2115/30705>. Acesso em 21 maio 2023.

Este ensaio é composto por três partes. Pode ler aqui a primeira parte e a segunda parte.

As imagens que ilustram este artigo são de Leonardo da Vinci (1452-1519)

3 COMENTÁRIOS

  1. Caro Manolo,
    li com grande interesse seus artigos, a questão da técnica e da tecnologia é certamente central nos dias de hoje, tanto para a crítica quanto para a possível, necessária, almejada e inevitável transformação do modo de vida.
    Inevitável e necessária pois o desenvolvimento atualíssimo da técnica está gerando transformações profundas em diversas esferas – produtivas, sociais, cognitivas, comportamentais etc.
    Possível e almejada pois, dada sua inexorabilidade, já que estamos a refletir aqui neste site (espaço não extenso de interação), creio poder afirmar que concordamos no seguinte aspecto: deixado ao leo, o desenvolvimento técnico, em seu movimento (autônomo?) está nos levando, senão para a beira do precipício, pelo menos para formas cada vez mais intensas de exploração – o que aponta para a urgência de mudança de rota.
    (Interessante observar como no pensamento de uma porção de gente, a técnica assume uma função muito parecida com a do capital, enfim…)

    De todo modo, resolvi escrever esse comentário para compartilhar uma pequena fórmula, que me assombra há alguns anos, e lançar umas dúvidas para quem sabe fazer fervilhar os miolos.

    A fórmula é a seguinte: se a técnica não é neutra, ela é entretanto algo de subversível. Esta fórmula, contudo, é uma mera declaração de princípio, por demais abstrata para gerar alguma mudança efetiva. Esta viria, como veio ao longo da história, a partir do uso concreto que dela fazemos o qual, por sua vez, é possibilitado pelo tipo de interação ou modo de mediação ou o-diabo-que-o-valha que ela mesma proporciona. A técnica, desta feita, seria subversível não assim ‘no vazio’, como se pudéssemos dar a uma técnica a direção que desejarmos, mas sempre a partir do campo de possibilidades por ela inscrito – campo que, novamente, variaria a partir do uso que fazemos dela e que ela mesma nos proporciona.

    Ora, se é assim, e se o estado atual da técnica se organiza e tende a se ordenar cada vez mais em direção aos códigos e algoritmos com vistas à autonomização de processos, cujo objetivo último é a maior eficiência, o aprendizado de programação seria talvez incontornável.

    Pois bem, vão aí as inquietações:
    – à la Simondon: seria o domínio da programação, ou de modo mais geral o ser versado na linguagem técnica, algo necessário a todos, ou quase todos, uma vez que esse é o saber-fazer que estrutura os processos da parada toda, ou quase toda, de hoje em dia? (Por ‘quase toda’ entenda-se: [re]produção da vida a mais crua.)
    – à la Ellul: se pudermos definir a técnica como busca pela maior eficiência (o ‘um único e melhor meio’ que submete os demais, pois menos eficientes), como pode ser que da técnica subvertamos a técnica?
    – à la Heidegger: se na base da técnica reside certo tipo de olhar sobre todos os entes na medida em que eles se nos oferecem a nós a partir do sentido pelo qual os vemos (ai, que preguiça do heideggerianês…), espécie de axioma ontologizante sobre os entes que os retira e os aliena de si mesmos, convertendo-os em fonte de energia a serem explorados e inseridos como função subordinante/subordinada num sistema de funções subordinantes/subordinadas (*preguiça ao quadrado*), como poderíamos começar a modificar esse olhar/modo-pelo-qual-os-entes-se-oferecem-a-nós-enquanto-exploráveis (#preguiça em 3D#)?
    – à la Marx: se a partir da técnica industrial, ou do mais geral desenvolvimento das forças produtivas, abre-se a possibilidade de liberação do reino da necessidade por meio da transformação do trabalho na sua acepção amplamente material (o que é produzido, como é produzido, segundo quais tipos de relações, como é distribuído e como é consumido), e se o trabalho é aquilo que mais aprisiona e ao mesmo tempo realiza o/a cabra/o, como modificar o trabalho?

    Enfim, algumas perplexidades, que talvez atinjam umas gentes.

    Obs: peço licença pelo tom um quê jocoso; levo o humor muito a sério e essas são questões da pesada. Parafraseando o outro, é zombando das coisas que as atingimos em suas verdades (ulisses eu te amo)

  2. PROXEMIA
    alguém que de ‘?’ se chama
    diz que me ama
    não sei
    se correspondo
    ou se me escondo

  3. “?”, observe que você cai no mesmo erro em que caí eu mesmo ao intitular o artigo. Em seu comentário, “a técnica” volta e meia assume o mesmo sentido que “a tecnologia” assume em meu ensaio. É que, assumindo o ponto de vista exposto no ensaio, não há “a” técnica (à moda de Heidegger e Axelos, por exemplo), apenas “técnicas”. Este nosso diálogo me permitiu observar o (meu) erro mais de perto, e reconhecê-lo.

    A partir do seu comentário, observa-se também que você dà à “programação” certa centralidade muito maior do que ela realmente tem. Ora, se estamos falando da programação tal como se a entende na informática, sabemos que não existe “a programação”, mas uma série de técnicas (raciocínio lógico, raciocínio algorítmico, etc.) que precedem o uso de qualquer linguagem de programação específica. Estas técnicas, hoje, estão inseridas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) brasileira, o que não quer dizer que o mesmo se aplique a outros países, tampouco que seja realmente estudada nas escolas brasileiras, e ainda menos que haja uniformidade na qualidade deste ensino nas escolas onde é ministrado. Da mesma forma, apesar de os capitalistas do setor exigirem o domínio de certas linguagens de programação (p. ex., C, Java, Python, HTML5, Rust, Go, Ansible, etc.) em detrimento de outras (p. ex., Delphi, COBOL, BASIC, etc.), e de certos usos de cada linguagem em detrimento de outros (p. ex., o caso da briga da Uber contra a StopClub, cujo aplicativo permite a motoristas calcular ganhos e recusar automaticamente certas corridas), na esmagadora maioria dos casos o conhecimento destas linguagens quase não tem interferência sobre os usos práticos que se faz de certos tecnemas (retomando conceito do ensaio). Com isto, respondi a seu “argumento Simondon”, que não resiste à gambiarra e à apropriação naïf de certas técnicas (p. ex., usar PIX para paquerar).

    Veja: além disso que mencionei, gente como Simondon, Heidegger, Axelos, Ellul e muitos outros tendem a secundarizar a concepção de técnica como um “comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras”. Para eles, a “técnica” tem sentido muito mais preciso, e a meu ver equivocado. Neles, “técnica” ao mesmo tempo conceitua (porque descrevem-na cada qual a seu modo de forma bastante precisa) e simboliza (porque diz muito mais do que o conceito foi feito para dizer) o tipo de técnicas mais associadas ao capitalismo industrial tal como existiu na primeira metade do século XX, que cito em termos marxistas na falta de outros melhores: produção em massa, trabalho alienado, submissão do trabalhador à máquina, etc. Com isso, estes pensadores como que “naturalizam”, porque excluem do campo das técnicas, vários “comportamentos produtivos mediados por um instrumento de trabalho e descrito por regras” que precedem ou margeiam estas técnicas próprias ao capitalismo industrial.

    “Naturalizar” estas técnicas tradicionais, em contraposição às técnicas “artificiais”, significa isentá-las de juízo crítico capaz de nos levar a entender por que chegam a tão escandalosos resultados. Olhando somente para o esquema lógico, a oposição “natural”/”artificial” relembra a oposição “cultura”/”civilização”, de péssima memória. Minha resposta ao “argumento Heidegger” vai mais ou menos na mesma linha, mesmo porque ele está mal apresentado no comentário. O problema não está no fato de que nossa corporeidade nos condena a perceber os entes somente como se apresentam a nós perante nossos sentidos. Não somos alienados porque não conseguimos ver as coisas do mundo senão como humanos, por meio dos cinco sentidos humanos, com os viseses próprios à percepção, à cognição e à razão humanas. Este argumento leva a concluir que a própria condição humana é alienante, ou ao menos certa concepção da condição humana o é. Vem daí as críticas ao “eurocentrismo”, à “colonialidade”, e os elogios ao “perspectivismo”, aos “modos de existência”, etc. Entretanto, e enquanto não for possível fazer upload de consciências em outros corpos (humanos ou não) para que nos relatem esta percepção, cognição e experiência trans-humana completa, não se pode contornar a corporeidade ou a percepção enviesada dos entes. Só o que se pode fazer, no máximo, é substituir um viés por outro.

    É este mesmo equívoco que permite, por exemplo, que Antônio Bispo dos Santos vá à USP falar, por exemplo, que toda a agroecologia não ser outra coisa senão a expropriação, por universitários, da “roça de quilombo”, da “roça de aldeia”, etc. Nesta rinha de vieses, não duvido que seja este o caso, e eles que são ecológicos que se entendam em suas disputas internas. No que nos interessa ao debate, como as técnicas agrícolas dos povos e comunidades tradicionais são reputadas como “naturais”, é a partir deste ponto de vista que são contrapostas às técnicas reputadas como “artificiais”, “colonizadoras’, etc. Entretanto, como do ponto de vista que adoto o que se vê são “comportamentos produtivos mediados por um instrumento de trabalho e descrito por regras” de um lado e do outro, pouco importa o “natural” e o “artificial”, pois toda técnica é, de certa forma, “artificial”. Importa saber: as técnicas agrícolas dos povos e comunidades tradicionais estão sob o controle de quem? Para quais finalidades? Inseridos em quais sistemas tecnológicos? Permitem ou obstaculizam a abundância material necessária à construção do socialismo? Estes são os pontos centrais que se deve perguntar. Na forma como hoje se encontram nos casos mais “puros”, as “roças de quilombo” e as “roças de aldeia”, assim como parte significativa dos assentamentos de reforma agrária, ora tendem à autarcia em regime de subsistência (absoluta maioria), ora tendem à agroecologia de mercado (minoria), com muita técnica “artificial” entrando como adjutório (eletrificação rural, saúde pública, rodovias, PIX, e-commerce, etc.).

    Já quanto ao “argumento Ellul”, observe que é um argumento estritamente teleológico. Conceber “técnica” enquanto “comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras” não tem nada de teleológico. Embora os tecnemas certamente possam ter finalidade, e qualquer técnica também possa ter algum resultado útil, fica totalmente em aberto definir quem estabelece os critérios desta finalidade, desta utilidade, desta eficiência. Repare: perto de onde eu moro, desde o raiar do dia até por volta das 10h da manhã encontra-se lá numa esquina movimentada um senhor já beirando seus setenta e poucos anos, vestido com um jaleco amarelo reflexivo e um apito pendurado ao pescoço por um barbante. Ele encasquetou de agir como guarda de trânsito. Simplesmente encasquetou, e pronto. Fica lá, chova ou faça sol, apitando e orientando o trânsito a seu modo canhestro, com uma técnica absolutamente própria, saída de algum canto obscuro de sua mente. As opiniões sobre o guardinha se dividem no bairro: ele causa acidentes, ou os evita? Os feirantes de domingo debatem: chama a polícia para tirar o guardinha da esquina, ou deixa-se o homem lá quieto, que ele não faz mal a ninguém? A eficácia do “comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras” do guardinha é questionável, mas lá estará ele, todos os dias, chova ou faça sol, orientando o tráfego daquele jeito só dele. Poderia listar outros casos muito parecidos de técnicas “ineficazes” que não perdem suas características de serem “comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras” pelo fato de terem baixa ou limitada eficácia.

    Tendo dito o que tinha a dizer sobre os argumentos, do ponto de vista que adoto, pode-se subverter uma ou outra técnica, um ou outro tecnema, ao colocá-los para funcionar num sistema tecnológico baseado em outras relações sociais. O que não se pode é fazer um sistema tecnológico inteiro passar a uma sociedade estruturada sobre relações sociais distintas, porque o sistema tecnológico expressa e reproduz estas relações.

    Veja o exemplo do sistema de alto-falantes numa fábrica ocupada: se uma técnica é um “comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras”, o “instrumento de trabalho” está dado (microfones, fiação, alto-falantes, etc.), as “regras” podem ser quase as mesmas (ligar o microfone na tomada, apertar o botão “liga”, aumentar o volume até pouco antes de gerar microfonia, etc.), mas o “comportamento produtivo” é muito diferente (convocar todos para uma assembleia, em vez de chamar Fulano para o RH), porque já anuncia outras relações sociais se instituindo.

    A pergunta que conclui o “argumento Marx” só pode ser respondida assim.

    Tudo isso para dizer:

    1) Não há, de fato, “comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras” que não seja subversível — e nisso concordamos.

    2) Não se pode, de fato, avaliar a subversão de um “comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras” senão em cada caso concreto — e mais uma vez concordamos.

    3) Em cada caso concreto, o campo de possibilidades de subversão de um “comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras” é determinado pelos elementos de uma correlação de forças entre classes sociais antagônicas presentes no contexto do caso, desde que capazes de afetar aquele “comportamento produtivo mediado por um instrumento de trabalho e descrito por regras” em particular — e ainda outra vez concordamos.

    Entretanto, como indiquei nos argumentos anteriores, não acho incontornável o aprendizado generalizado de “programação” para que os tecnemas da “programação” sejam apropriados e subvertidos.

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