Por Isadora de Andrade Guerreiro

Há pouco mais de cinco anos, em maio de 2018, veio abaixo, em meio a um incêndio, o Edifício Wilton Paes de Almeida, uma ocupação de moradia de grandes proporções no Largo do Paissandú, centro de São Paulo. Escrevi um texto sobre o ocorrido, na época, dizendo que eu acreditava que sua queda representava simbolicamente o marco do fim da Nova República – e o resultado da eleição do final daquele ano não me contradisse. Eu dizia ser significativo o desmoronamento daquele edifício que, como ocupação de edifício vazio em área central, se inscrevia dentro de toda uma tradição de lutas urbanas que compuseram o quadro da fase democrática do país que teve o Lulismo como coroamento.

Sua queda era particularmente simbólica das contradições do período, pois aquele edifício na verdade estava ocupado por famílias que pagavam aluguel a um grupo que não era propriamente um movimento de moradia: apenas usava uma bandeira como “marca cultural” legitimadora de um repertório alheio de lutas históricas, para manterem politicamente protegido seu negócio – que atualizava, massificando, o antigo rentismo de cortiço. Uma espécie de autonomização das lutas urbanas acontecia ali, com consequências desastrosas.

Tais contradições eram fruto de um processo – altamente incentivado pelo poder público da era dos direitos – de mercantilização dos territórios populares, que passavam a ser assediados, a partir de 2010, pela formação de bancos de terras por empreiteiras interessadas no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV); concomitantemente a um período de grandes urbanizações de favelas na cidade, responsáveis, só para se ter uma pequena dimensão do deslocamento populacional que ocorria naqueles anos, por mais de 28 mil famílias que recebiam Auxílio Aluguel em 2018 – sendo 18 mil delas (65%) ingressantes no benefício entre 2011 e 2014 [1]. Não é à toa que em 2012 ocorre um pico de ocupações de prédios na área central (cerca de 25 mapeadas naquele ano [2]) e em 2013 – em meio ao contexto das Jornadas de Junho – há uma onda de ocupações nas periferias, em sua maioria sem organização de nenhum movimento de moradia.

No caso das ocupações da área central, tal “proteção política” almejada pelo grupo do Edifício Wilton Paes de Almeida a partir da legitimidade das lutas históricas dos movimentos de moradia, fez com que houvesse poucas remoções durante a gestão Haddad (PT, 2013-2016), sendo 2018 um ano de pico de prédios ocupados concomitantemente mapeados pelo Observatório de Remoções (OR), com cerca de 90 existentes (embora a Prefeitura considerasse oficialmente apenas 51). Naquele ano, já na gestão João Dória, também há intensificação dos conflitos na região, com o início de uma grande onda de remoções, que também configuram, justamente em maio de 2018, o pico do mapeamento da série histórica do OR – acompanhada também do pico de sentenças de despejo por falta de pagamento de aluguel na Região Metropolitana de SP. Com essa massificação de deslocados urbanos e grau de conflitividade, pode-se imaginar, portanto, que a conjuntura das ocupações e dos movimentos de moradia não era tão simples – dando espaço para situações como a do Edifício Wilton Paes de Almeida, ascensão e queda, acontecerem.

Movimentos de moradia e o lulismo

Naquele mesmo ano de 2018 escrevi outro texto, fruto das reflexões do doutorado e de anos de engajamento junto a movimentos de luta por moradia em São Paulo – que minha geração viu se transformarem por dentro durante o lulismo. Resumindo bastante o argumento, que não vou conseguir desenvolver aqui, eu dizia que a forma social própria ao lulismo, que no campo da habitação estava representada pelo PMCMV, precisava ser diferenciada das formas anteriores que caracterizavam o “modo petista de governar” no setor – desde todo o aparato institucional de planos, fundos e conselhos até a autogestão. O lulismo do PMCMV constituía-se basicamente na generalização do acesso à habitação popular por meio de relações sociais especificamente capitalistas, ou seja, subsumidas a um determinado padrão histórico de produção de mercadorias que modula processos técnicos, financeiros, institucionais e políticos de acordo com a especificidade das forças sociais envolvidas nas diversas situações de demanda habitacional.

Nesse sentido, o PMCMV alterava objetivamente a correlação de forças dos movimentos de moradia dentro da formação social brasileira na medida em que fazia relacionar, necessariamente, suas estratégias de reprodução política àquelas de reprodução do capital imobiliário numa fase de consolidação da sua forma financeirizada, dentro da particularidade do país. O programa e suas consequências fundiárias (como visto acima) consolidava cada vez mais a essência da habitação como mercadoria e não como direito, deflagrando uma súbita mudança das relações dos movimentos de moradia com o mercado, seja nos seus mecanismos, na sua lógica, na presença de seus atores lado a lado e, principalmente, na constituição de um campo de concorrência, subsumindo a forma de produção autogerida ao mesmo patamar de produtividade daquela de mercado.

Assim, eu apontava para uma diluição do campo político dentro das relações de mercado, na medida em que as forças sociais apareceriam não como sujeitos de necessidades materiais e sociais, mas sim como demandantes de mercadorias. O lugar social dos movimentos de moradia se diluiu em meio a mais variada gama de gestores sociais que, apropriados de seu léxico e avalizados juridicamente como Entidades Organizadoras do PMCMV, transformam a luta por direitos sociais em concorrência no mercado de mercadorias políticas. Esse processo de “desintermediação”, próprio da forma social da financeirização (um mercado aberto sem intermediários privilegiados), no caso do PMCMV Entidades se conformaria como a necessária regulamentação (estatal, porém com parâmetros de avaliação de risco de crédito definidas de forma bancária pela Caixa Econômica Federal) de um novo ambiente de ação social e política, que agora é o mercado – um “mercado de Entidades” definido pela competição entre elas – e com o mercado – para acessar o direito.

Nova frente de criminalização

A partir destas conclusões, eu já apontava naquele momento para o fato de que esse processo estava gerando um aparecimento social do movimento de moradia na arena pública que o indiferenciava de agentes com práticas de exploração da pobreza dentro da esfera ampla do mercado – que afinal não é feito só de luz, mas de muitas sombras e tons de cinza –, colaborando para o seu processo de criminalização – que teria, portanto, uma determinação histórica, diversa daquelas das décadas de 1970 e 1980. Dois anos depois, em 2020, escrevi junto ao colega Renato Abramowics Santos mais um texto, tentando caracterizar de maneira mais precisa o tipo de criminalização que estava já em curso naquele momento, com a prisão de uma série de lideranças dos movimentos de moradia do centro.

Dizíamos ali que a criminalização não é algo novo na dinâmica das ocupações da área central, mas, ao contrário, sempre considerada elemento relevante, ou mesmo determinante, nas estratégias políticas dos próprios movimentos de moradia, na medida em que estas partem do confronto público na disputa sobre os significados do próprio ordenamento social, ao colocar a questão: crime é o ato de ocupar – juridicamente tipificado como “esbulho possessório” – ou é a falta de moradia e o abandono de imóveis? Essa inversão, produzida pela ação política dos movimentos organizados e suas ocupações, não elimina a criminalização que sempre tiveram que enfrentar, mas, ao desnaturalizá-la, a problematizavam-na. Partindo deste pressuposto, nossa hipótese naquele artigo era a de que a queda do Edifício Wilton Paes de Almeida desencadeou uma nova frente de criminalização, construída a partir de outros termos que, no entanto, não eliminam os anteriores, mas lhes dão novos significados. Nesta “nova frente”, a indiferenciação das ocupações seria o instrumento central para o processo de criminalização.

Caminhando na direção contrária a este processo de indiferenciação, trouxemos então à tona a diversidade social e política das ocupações de moradia do centro de São Paulo, considerando seu aparecimento como fato historicamente determinado e inserido em dinâmicas populares do território que as precedem e se mantêm concomitantemente a elas. Esta convivência não é estanque, mas, ao contrário, porosa: assim como os moradores transitam permanentemente de uma forma de morar a outra neste território, repertórios e práticas ligados à produção e apropriação do espaço popular também transitam. Trata-se de todo um campo de gravitação da experiência social e urbana, que envolve diferentes atores, circuitos e práticas – dos movimentos de moradia mais antigos aos mais recentes e seus repertórios, em contato com dinâmicas dos mercados populares e informais, com circuitos de migração, que se atravessam com redes de apoio assistencial e organizações da sociedade civil, grupos universitários, religiosos, coletivos políticos, com o “mundo do crime” e suas práticas, convivendo também com atores político-partidários e variadas instâncias e agentes do Estado e também paraestatais – que se estruturam ao redor desses espaços de moradia.

Portanto, parte da dinâmica política das ocupações organizadas por movimentos de moradia teriam também a ver com as disputas, confrontos, consentimentos e/ou alianças – na esfera cotidiana – que se dão com esses múltiplos repertórios e práticas, que estão em permanente circulação, contato e atrito, na perspectiva de construção de uma maior estabilidade e proteção no enfrentamento da insegurança habitacional à qual esta população está submetida e que, como vimos acima, chega a um alto grau de intensidade na virada da década. Assim, entender essa circulação de repertórios – como vimos acima sendo usada pelo grupo que organizava o edifício que caiu – é importante para ampliar o campo de diferenciações possíveis, sem isolá-las num estado de pureza inexistente o qual, justamente, as jogaria na fogueira da criminalização.

Assim, o que chamamos de “nova frente de criminalização” operaria por meio da criação de dispositivos de homogeneização e equivalência em torno das dinâmicas de apropriação, produção, organização e gestão populares do espaço, negando, justamente, toda a diversidade existente. Os objetivos deste procedimento ainda não estavam claros quando escrevemos esse texto, mas para mim fica cada vez mais nítido que seu foco envolve a necessidade premente de gestão da população que vive por meio da apropriação popular do território, seja no centro ou na periferia, na medida em que a sociedade salarial entra em crise terminal.

Há, portanto, uma disputa pela gestão dessa população em andamento e, retomando nosso argumento no texto, na prisão de lideranças tendo como justificativa a extorsão de moradores com taxas coletivas (e não o esbulho possessório) constrói-se um imaginário de que a organização popular é, em si, criminosa – não apenas por ocupar edifícios, mas também pela forma como organiza os ocupantes. Desse modo, vemos emergir um novo campo de disputa com o qual, até então, os movimentos não tinham que se preocupar: a autonomia de gerir os moradores, dentro das ocupações, de acordo com suas próprias regras. Tal autonomia – que nos processos de criminalização anteriores não era ponto de conflito – passou a ser questionada judicialmente e os movimentos tiveram, então, que atuar defensivamente ou legitimá-la publicamente. Isso exigiu deles a institucionalização pública de práticas internas de organização que tiveram, a partir de então, que ser enquadradas e justificadas para que não fossem acusados de crime. Nesse ponto, há uma conexão com as dinâmicas de institucionalização que eu já descrevia anteriormente, relativas ao amoldamento dos movimentos ao PMCMV: são várias camadas de um processo que acontece por cima (políticas públicas) e por baixo (necessidade de diferenciação em relação ao “mundo do crime” que, na verdade, são apenas desdobramentos do vasto mundo popular).

Amoldamentos e crise habitacional no fim da era dos direitos

Passados hoje cinco anos da queda do Edifício Wilton Paes de Almeida – com o retorno do PMCMV e início do Programa Pode Entrar (municipal), que mobilizou novamente a produção de habitação por Entidades – como movimentos de moradia tem lidado com esse processo de competição de mercado, por um lado, e criminalização baseada na indiferenciação com o “mundo do crime”, por outro? A questão parece ser como se posicionar entre um polo e outro, numa escala de tons de cinza do mercado e das relações de poder que têm se movimentado seja no mundo popular, seja no andar de cima.

Chama a atenção, de qualquer maneira, o afastamento objetivo, em alguns casos, e a dificuldade, em outros – e há aqui muitas diferenciações a serem feitas também –, de manter a linha política que os deu origem, na medida em que não ecoa mais nos territórios populares a lógica da luta por direitos. Pois esta envolve uma dimensão de futuro, uma ideia que não faz mais sentido: não se quer o direito universal à moradia, se quer casa agora. Não há perspectiva de construção de outra dimensão do morar, outra cidade de uma classe trabalhadora universal, homogênea e unificada por uma sociedade salarial mundializada – valores que corriam durante a redemocratização, queiramos ou não. Independente da defesa ou não destes valores, atualmente não há sequer a expectativa de construção de uma realidade diferente da atual, o que caracteriza o tal baixo horizonte de expectativas com o qual Paulo Arantes definiu nosso tempo histórico há dez anos [3] – esses mesmos aos quais nos referimos.

Nesse sentido, a conjuntura atual da luta por moradia em São Paulo é aparentemente contraditória: temos muitos recursos, instrumentos e movimentos organizados em torno da pauta, ao mesmo tempo em que a crise de moradia se aprofunda junto da crise política. Com a pandemia e toda a crise habitacional já em andamento que descrevemos anteriormente, o número oficial de ocupações da cidade, acompanhadas pelo Núcleo de Solução de Conflitos Fundiários da prefeitura, foi de 206 (quase 46 mil famílias) em 2018, para 567 (mais de 115mil famílias) em 2023 [4]; na área central, são atualmente 193 (cerca de 10 mil famílias). Além disso, temos número recorde de população em situação de rua, de cerca de 53 mil pessoas, segundo o CadÚnico. A prefeitura se recusa a divulgar os números do censo de cortiços que foi recém-realizado – talvez prepare já uma solução de mercado para ser apresentada conjuntamente a um número que certamente irá assustar.

Em meio à tamanha crise, por dentro dos movimentos que disputam recursos para autogestão, observa-se uma espécie de contágio do modelo de Empreitada Global (ou Cogestão) nas suas mais variadas formas. Expliquei melhor esta forma de produção em outro momento, mas resumindo aqui: trata-se da contratação de empreiteiras pelas Entidades Organizadoras (os movimentos sociais), que deixam de projetar, produzir e gerir diretamente seus empreendimentos, se transformando em contratantes e gestores da demanda selecionada. Ou seja, não há autogestão, embora a “marca cultural” permaneça.

Em 2018, eu dizia no texto já citado que essa forma de produção estava sendo inserida de maneira estratégica por movimentos que se massificavam nacionalmente sem chão organizativo que acompanhasse tal crescimento, e hoje vemos ela se generalizar para praticamente todo o campo da autogestão, em diferentes graus, mas seguindo esta lógica de produtividade. O tal “mercado de Entidades” se radicalizou a ponto de ser difícil algum acordo político inclusive entre movimentos do mesmo campo – a ponto da vergonhosa revisão do Plano Diretor ter sido aprovada com apoio de parte dos movimentos. No Conselho Municipal de Habitação, o campo da esquerda não consegue mais fazer frente aos movimentos que apoiam a prefeitura: perdeu a maioria histórica que tinha.

Enquanto isso, quem está tentando fazer mobilização nos territórios está sendo pressionado diretamente por diversas forças vindas do mundo popular: desde o “mundo do crime”, que passou a efetivamente governar esses territórios cada vez mais mercantilizados após a “pacificação” dos anos 2000 [5]; sobreposto a uma espécie de neoclientelismo que flerta com a “lógica miliciana” [6] que se expande junto do “centrão” que se reproduz na produção e gestão das precariedade urbanas [7]. Fica mais evidente que a disputa pelo governo das classes populares é objetiva [8], e passa desde formas que se auto-organizaram de baixo (como o PCC) à intervenção de agentes públicos, desde o clientelismo pelo Legislativo, até a criminalização pelo Judiciário e a reestruturação territorial promovida pelas políticas públicas no Executivo – que adotou definitivamente a forma participativa dos Conselhos Gestores como forma de governo de população em insegurança habitacional.

Uma forte mercantilização, advinda da pacificação e da entrada pesada de circulação monetária, leva a formas de governo que prescindem do diálogo com o poder público por meio da luta por direitos, que os movimentos ofereciam antes. O diálogo que interessa é o de tradução de mundos, com finalidade pragmática que não é só de sobrevivência básica, mas de inclusão pelo consumo, de construção de relações de poder a partir da capacidade empreendedora do mundo popular. As vitórias (permanência da comunidade contra remoção, por exemplo), tem sido conquistadas mais pelas estratégias do crime, dos ilegalismos, do que pelas vias do direito: advogados populares estão sendo expulsos das comunidades. A violência não é mais só a do Estado (da ordem policial disciplinar), ela é deste mundo dos ilegalismos, que gere precariedades como forma de governo. O que fazer quando é a própria periferia a que expulsa?

Tendências e alianças

Para finalizar, é importante apontar três tendências, ou três alianças, que vem sendo construídas como consequência desta conjuntura, e que infelizmente não será possível desenvolver neste espaço, sendo, portanto, uma espécie de agenda de pesquisa. Elas precisam ser entendidas como dinâmicas ambivalentes, que ao mesmo tempo são estratégias da cada vez mais necessária proteção contra vários tipos de violência, mas também de crescimento dentro da disputa por hegemonia com novas forças políticas. Ou seja, são escolhas que, dentro da diferenciação que precisa ser feita dentro da infinidade de movimentos de moradia, se dão por aqueles que escolheram crescer/massificar, ou se manterem grandes no mundo atual, que tem outras exigências em relação ao momento anterior, da Nova República que ruiu.

A primeira delas tem a ver com a construção de laços diretos com o sistema político eleitoral, sendo oficialmente parte da ordem, não contra ela, buscando desambiguações que evitem a criminalização – e também qualquer tipo de desestabilização de poder. Essa tendência tem se dado principalmente através do Legislativo, com candidatos representantes dos movimentos, algo que não acontecia antes: a relação dos movimentos de moradia com vereadores e deputados era indireta, dentro da “estratégia da pinça”, cada um tinha um papel articulado, mas próprio, ainda que houvesse muita relação dentro dos gabinetes. Essas candidaturas têm se dado também do Executivo, conseguindo inclusive abrir um espaço que era até pouco tempo atrás monopólio do PT em São Paulo, por exemplo. Importante notar que a estratégia eleitoral é a de conquista de votos da classe média e alta culturalmente engajada, que se “esquerdizou” durante o bolsonarismo – e não uma campanha de mobilização popular, indicando a dificuldade de entrada neste mundo. Este desafio é a nova frente de embates políticos nacionais e internacionais, pois o capitalismo financeirizado criou todo um novo mundo popular, cujo governo está sendo disputado e que, em breve, governará definitivamente.

A segunda tendência tem a ver com a institucionalização da gestão interna e publicidade midiática das ações externas, buscando “profissionalização” numa lógica que tende a ser a de “certificação” – mais um efeito da homogeneização –, o que conta inclusive com alianças com empresários “do bem”. Estes, por sua vez, se apoiam na legitimação ESG da proximidade com movimentos sociais ou benefícios urbanísticos que a produção de Habitação de Interesse Social dá para faturar mais dentro de um mercado (para eles também) cada vez mais competitivo. Já falei em outro momento sobre esse ponto, mas vale reiterar seu lugar aqui entre as demais tendências: trata-se do novo lugar do trabalho num mundo de predominância financeira, no qual a gestão de pessoas e das suas necessidades de sobrevivência para criar/facilitar fluxos de renda se torna central para o capitalismo. E, portanto, movimentos sociais que construíram esse know-how de gestão da barbárie ao longo das últimas décadas passam a ter outro lugar.

A terceira tendência, que articula as outras duas, tem a ver com a busca de certa “legitimação cultural”, que envolve também, e ainda mais do que as anteriores, a aliança com circuitos internacionais que acabam construindo ao mesmo tempo uma blindagem de proteção externa aos conflitos e criminalização local, além de articulação política supranacional, mas também uma rede de compromissos e constrições à ação local e suas necessidades, que ficam cada vez mais engessadas pelo “lugar da esquerda” na ordem mundial. Se durante a era industrial a aliança dos Partidos Comunistas com as burguesias nacionais passava pela necessidade de construção de um mundo do trabalho, ligado à sociedade salarial de direitos, agora parece passar pela construção de um mundo pós-industrial, sem salário, mas com muito trabalho, que se legitima e obtém rendimentos por meio da esfera cultural-financeira [9].

Há uma proliferação de produção de mercadorias culturais, mercado de trabalho e serviços “do bem” vinculados aos movimentos que enveredaram por este caminho que destituem, na sua homogeneização de indústria cultural, qualquer forma de crítica à ordem. Neste caminho de investigação, vale olhar para o circuito internacional de grandes exposições, onde os movimentos brasileiros têm tido cada vez mais espaço, quase como a tendência da vez. Quem for passar pela recém-inaugurada Bienal de São Paulo 2023 pode tirar suas próprias conclusões, pois é inclusive interessante refletir sobre certo deslocamento entre o ideário de “revolução” e o lugar do trabalho concreto dos militantes-trabalhadores no evento – deslocamento que acaba produzindo, como toda indústria cultural, a política como marca.

Lembrei-me, novamente, da bandeira do falso movimento colocada na porta do Edifício Wilton Paes de Almeida, com o qual abri este texto: o fetiche da autonomização de repertórios de luta tem variadas consequências… e a partir da ruína e criminalização em meio à crise, o surgimento do brilho dourado da “revolução” deveria causar, ao menos, estranhamento.

Notas

[1] Compilei esses dados durante minha pesquisa de pós-doutorado, e eles podem ser vistos tanto num artigo técnico que fiz sobre o Auxílio Aluguel em São Paulo, quanto em ótimo artigo de Fernanda Pinheiro da Silva sobre o tema.

[2]  São dados do Observatório de Remoções sistematizados, completados por outras fontes e analisados na Iniciação Científica de Mariana de Freitas (FAUUSP).

[3] ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo, Boitempo Editorial, 2014.

[4] Esses números atualizados foram disponibilizados recentemente no Conselho Municipal de Habitação, mas adiantados pela Globo no aniversário de cinco anos da queda do Edifício Wilton Paes de Almeida.

[5]  FELTRAN, Gabriel. Irmãos: Uma história do PCC. São Paulo, Cia. das Letras, 2018.

[6] RIZÉK, Cibele Saliba. Um mosaico macabro: modulações contemporâneas sobre trabalho moradia e violência de Estado. In: Revista de Debate da Fase – Proposta, n.129, 2019.

[7] Raquel Rolnik falou sobre isso recentemente.

[8] Parece que Bruno Paes Manso está discutindo isso em seu novo livro, “A fé e o fuzil”, relacionando o governo do PCC à ascensão das igrejas evangélicas nas periferias. Ele deu entrevista explicando seu argumento recentemente.

[9] Otília Arantes já alertava para isso nos anos 2000, mas não sei se imaginava que chegaria a este ponto. Ver: ARANTES, O.B.F. Uma estratégia fatal: a cultura nas novas gestões urbanas. In: ARANTES, O.B.F.; VAINER, C.B.; MARICATO, E. (Orgs.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000.

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