Por Jan Cenek

 

Emma Bovary desperta paixões violentas, a favor e contra. Com essas palavras iniciei a coluna intitulada A grande adúltera. Ocorre que não apenas a personagem Gustave Flaubert, mas o próprio romance cobra posicionamentos. Não se lê Madame Bovary com indiferença. Em coluna intitulada Milan Kundera, registrei que uma das grandes sacadas do romancista tcheco foi explorar a dimensão existencial do kitsch [1]. Juntando uma coisa com a outra, é possível fazer uma leitura de algumas interpretações do romance de Flaubert usando a sacada de Kundera para destacar a potência da arte do romance.

As interpretações kitsch de Madame Bovary podem ser sintetizadas nas palavras do crítico literário Sainte-Beuve e da romancista George Sand [2]. Sainte-Beuve: “A crítica que faço a seu livro é que o bem está muito ausente”, o crítico questiona por que não há “um só personagem que tenha a natureza de consolar, de descansar o leitor com um bom espetáculo”? George Sand registrou que Flaubert escondia o “sentimento” que tinha pelos personagens e transmitia “desolação” aos leitores enquanto ela preferia “consolá-los”: “a arte não é só crítica e sátira”. Flaubert respondeu para Sand que nunca pretendeu fazer nem crítica nem sátira, apenas se esforçava para “adentrar a alma das coisas” [3].

Há nas palavras do crítico e da romancista uma dimensão moralizante, mas há, também, o kitsch. É que o kitsch se caracteriza exatamente por “consolar” e “descansar […] com um bom espetáculo” [4]: “é a necessidade de se olhar no espelho da mentira embelezante e ali se reconhecer com comovida satisfação” [5]. No reino do kitsch o bem deve estar ostensivamente presente. Se é assim, o kitsch é uma necessidade existencial dos consumidores de arte, não é apenas um rebaixamento estético.  Ou dito de outra forma, trata-se de um rebaixamento estético demandado pelos consumidores de arte. O fato é que: pelo desconsolo que provoca e pela ausência do bem, não há espaço para Madame Bovary no reino do kitsch.

Após publicar Madame Bovary e ser processado por ofensa à moral e aos bons costumes, Flaubert escreveu uma carta a um primo em que registrou: “Eu te confessarei, de resto, que tudo isso me é perfeitamente indiferente. A moral da Arte consiste em sua própria beleza, e eu estimo acima de tudo o estilo, e em seguida o Verdadeiro” [6]. Tivesse caído nas mãos do Ministério Público em tempo, a confissão de Flaubert certamente seria usada na peça de acusação. A “moral da Arte” teria levado o romancista e violar a moral e os bons costumes da sociedade francesa. Mas se o romance precisa “adentrar a alma das coisas”, os choques são inevitáveis, porque de acordo com a moral e os bons costumes há coisas que não devem ser investigadas nem muito menos publicadas.

Kundera notou que, para se sustentar, o kitsch exclui “toda manifestação de individualismo (porque toda discordância é uma cusparada no rosto da fraternidade sorridente), todo ceticismo (porque quem começa duvidando do detalhe mais ínfimo acaba duvidando da própria vida), a ironia (porque no reino do kitsch tudo tem que ser levado a sério)” [7]. Kundera novamente: “É preciso evidentemente que os sentimentos suscitados pelo kitsch possam ser compartilhados pelo maior número possível de pessoas. Por isso, o kitsch não se interessa pelo insólito; ele apela para imagens-chave profundamente ancoradas na memória dos homens: a filha ingrata, o pai abandonado, os garotos correndo num gramado, a pátria traída, a lembrança do primeiro amor.” [8] Por tudo isso que um romance como Madame Bovary não cabe no reino do kitsch. O bem está ausente, o desconsolo é total e, pior ainda, há uma adúltera no primeiro plano. Curioso notar que, Flaubert foi inocentado da acusação por ofensa à moral e aos bons costumes, mas não porque “adentrar a alma das coisas” é fundamental para o romancista e não porque “a moral da Arte consiste em sua própria beleza”. Tese da promotoria: Madame Bovary é um livro imoral porque Emma não se arrepende. Tese da defesa: Madame Bovary é um livro moral porque o fim atroz da adúltera desautorizaria o adultério. Prevaleceu a segunda tese. Mas as duas condenam a arte do romance. Nem acusação nem defesa escapam do kitsch. A adúltera deve se arrepender e pagar pelo que fez. Ponto final.

Aqui surge uma questão interessante:  se o kitsch está em todos os cantos, é possível escapar dele? Recorro mais uma vez a Kundera. O romancista divide os homens em dois grupos: os que em alguma medida desconfiam e os que aderem à vida sem ressalvas. Os últimos se baseiam, conscientemente ou não, no ensinamento presente no primeiro capítulo do Gênese: o mundo é o que devia ser, as pessoas são boas e devem procriar. Se o mundo é o que devia ser, o bem é onipresente. Se as pessoas são boas e devem procriar, não há espaço para uma adúltera como Emma Bovary: que achava a própria filha feia e que arruinou a família. Quem adere à vida sem reservas firma o que Kundera definiu como “acordo categórico com o ser”, que é “a fonte do kitsch”. Mas é possível viver em desacordo categórico com o ser? A resposta é não: “Nenhum de nós é sobre-humano a ponto de poder escapar completamente ao Kitsch. Não importa o desprezo que nos inspire, o kitsch faz parte da condição humana.” [9] No romance A insustentável leveza do ser a pintora Sabina trava combate contra o kitsch, mas sem vitória definitiva. Quando assistia filmes sentimentais, os olhos dela se enchiam de lágrimas sempre que a filha ingrata se reconciliava com o pai abandonado. O kitsch da pintora tinha a ver com tudo que ela não teve: um lar sossegado, doce e harmonioso, com uma mãe cheia de amor e um pai cheio de sabedoria.

Mas se não há como escapar totalmente do kitsch, é possível confrontá-lo. Kundera outra vez [10]: o verdadeiro adversário do kitsch é o homem que interroga, “a pergunta é como faca que rasga a cortina do cenário para que se possa ver o que está atrás.” Acrescento: outro adversário do kitsch, ainda que não seja imune a ele, é o romance. A arte do romance – entendida como um “adentrar a alma das coisas” – é uma manifestação de individualismo (não raro uma cusparada no rosto do senso comum), mas também de ceticismo (se o romancista recria o mundo é porque desconfia das coisas como estão e são) e ironia (o romancista leva a sério apenas a própria escrita). A arte do romance passa, sobretudo, por interrogar e recriar. Pode, exatamente por isso, confrontar o kitsch, que é a “mentira embelezante” mobilizada para descansar e consolar quem teme e prefere evitar “a alma das coisas”.

 

Notas:

[1] Na sexta parte do livro A arte do romance, intitulada Sessenta e três palavras, Milan Kundera define o kitsch (os grifos são meus):

“Quando eu escrevia A insustentável leveza do ser, fiquei um pouco inquieto por ter feito da palavra kitsch uma das palavras-pilar do romance. Na verdade, ainda recentemente, essa palavra era quase desconhecida na França, ou então conhecida em um sentido muito empobrecido. Na versão francesa do célebre ensaio de Hermann Broch, a palavra ‘kitsch’ é traduzida por ‘arte de carregação’. Um contrassenso, pois Broch demonstra que o kitsch é coisa diferente de uma simples obra de mau gosto. Existe a atitude kitsch. O comportamento kitsch. A necessidade kitsch do homem-kitsch (Kitschmensch): é a necessidade de se olhar no espelho da mentira embelezante e ali se reconhecer com comovida satisfação. Para Broch, o kitsch está historicamente ligado ao romantismo sentimental do século XIX. Visto que na Alemanha e na Europa Central do século XIX era muito mais romântico (e muito menos realista) que em outra parte, foi lá que a palavra kitsch nasceu, e que ainda é usada corretamente. Em Praga, vimos no kitsch o inimigo principal da arte. Não na França. Aqui, à arte verdadeira se opõe o divertimento. À grande arte, a arte simples, menor. Mas, quanto a mim, nunca me irritei com os romances policiais de Agatha Christie! Em compensação, Tchaikovski, Rachmaninoff, Horowitz no piano, os grandes filmes hollywoodianos, Kramer versus Kramer, Doutor Jivago (oh, pobre Pasternak!), é o que profunda e sinceramente detesto. E fico cada vez mais irritado pelo espírito do kitsch presente nas obras cuja forma se pretende modernista. (Acrescento: a aversão que Nietzsche experimentou pelas ‘palavras bonitas’ e pelos ‘casacos com ornamentos’ de Victor Hugo foi a repugnância pelo kitsch em seus prenúncios.)

[2] Os trechos do crítico, da romancista e de Flaubert foram citados no ensaio de Milan Kundera intitulado Adentrar a alma das coisas, publicado no livro A cortina.

[3] Ensaio citado na nota anterior.

[4] Ensaio citado na nota 2.

[5] O trecho entre aspas está no texto citado na nota 1.

[6] A carta de Flaubert ao primo foi citada no livro A orgia perpétua – Flaubert e Madame Bovary, de Mario Vargas Llosa

[7] O trecho está sexta parte do romance A insustentável leveza do ser, intitulada A Grande Marcha.

[8] Idem nota 7.

[9] Os trechos entre aspas estão na sexta parte do romance A insustentável leveza do ser, intitulada A Grande Marcha.

[10] Idem nota 7.

 

1 COMENTÁRIO

  1. Caro Jan…a triangulação do título, kitsch, existência e romance, faz perceber com clareza a posição do romance: no meio a existência e nos flancos, fechando o cerco, o kitsch de um lado e o romance do outro. O romance descobre o que o kitsch dissimula. Abstração para efeito analítico, já que o kitsch pressupõe o acordo categórico com o ser e não se separa dele. Mas faz sentido o adesismo sem reservas pq do outro lado está o romance, a reserva do anti-adesismo.

    No entanto, ver Kundera pôr no balaio do kitsch Tchaikovsky e Rachmaninoff, apesar de entendê-lo, me faz lembrar que a condição humana, se está presa ao kitsch como um caramujo a sua concha, não é dissimulação pura. Há o romance, mas se nem ele é imune ao kitsch, a música dos dois compositores não está totalmente perdida. Apenas traz inseparados os elementos estéticos de uma atitude kitsch e de uma atitude autêntica.

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