Por Yascha Mounk

O texto abaixo é o Apêndice do livro The Identity Trap: A Story of Ideas and Power in Our Time, de Yascha Mounk. O livro foi publicado pela editora Penguin Press no segundo semestre de 2023.
Yascha Mounk se posiciona politicamente na esquerda e na tradição do liberalismo filosófico, a partir do qual realiza uma crítica clara, teórica e prática do que ele chama de síntese identitária.
Como o autor explica no início de seu livro, devido à expressão “política identitária” ter ganhado nos Estados Unidos uma conotação pejorativa, ele preferiu cunhar a expressão “síntese identitária” para não prejudicar o debate. O leitor de língua portuguesa, portanto, pode entender a síntese identitária como sinônimo de política identitária ao longo do texto.

Muitos críticos do chamado wokeness [1] afirmam que a síntese identitária é uma forma de “marxismo cultural”. A tese básica é simples: se retirarmos do marxismo a classe e a economia e trocarmos por raça e identidade, chegaremos às ideias que estão transformando agora o mainstream americano.

É fácil entender por que muita gente chegou a essa conclusão. Muitos pensadores da tradição marxista continuam a exercer influência significativa nos principais temas e aplicações da síntese identitária. Para citar apenas alguns exemplos, os defensores da síntese identitária criticam frequentemente o capitalismo em termos que estão claramente a jusante do trabalho de Karl Marx e Friedrich Engels. O foco na hegemonia cultural em muitas disciplinas acadêmicas é em parte inspirado por Antonio Gramsci. As críticas à liberdade de expressão frequentemente invocam o trabalho de Herbert Marcuse. E um dos textos mais lidos nas escolas de educação americanas é o de Paulo Freire.

Existem também algumas semelhanças impressionantes entre as visões centrais das duas tradições. Talvez o mais importante seja o fato de tanto o marxismo como a síntese identitária serem profundamente céticos em relação à promessa central da democracia liberal. Ambos desconfiam dos valores universais e das normas neutras como uma espécie de ilusionismo que permite ao grupo que está verdadeiramente no comando manter o poder. E ambos inferem que estas regras e normas precisam ser derrubadas, tornando-as hostis aos principais ideais liberais.

Mas apesar de todas estas semelhanças, as diferenças entre a síntese identitária e o marxismo são tão grandes quanto. Comecemos pelas respectivas origens destas tradições. Como mostrei na parte I, simplesmente não é verdade que as principais raízes intelectuais da síntese identitária sejam marxistas. Pelo contrário, o seu ímpeto original provém de pensadores pós-modernos como Michel Foucault e Jean-François Lyotard, que estavam profundamente preocupados com o que chamavam de “grandes narrativas”, incluindo tanto o liberalismo como o marxismo, que então gozavam de um forte domínio sobre a vida intelectual em Paris.

Esta oposição às grandes narrativas fez com que pensadores como Foucault e Lyotard se tornassem altamente céticos em relação aos princípios liberais nos quais as democracias do pós-guerra na Europa afirmavam basear-se. Isso ajuda a explicar por que razão os defensores da síntese identitária têm sido, desde o início, tão desdenhosos das instituições centrais das democracias ocidentais. Mas Foucault e Lyotard também se opunham profundamente a outra ideologia, que era ainda mais influente sobre os seus interlocutores: o marxismo. Na verdade, os seus contemporâneos, incluindo Jean-Paul Sartre, interpretaram corretamente a rejeição da verdade universal e o ceticismo sobre categorias estáveis de identidade como um ataque frontal aos pressupostos fundamentais que sustentam o marxismo; afinal, o pós-modernismo também representou uma crítica àqueles que afirmavam falar em nome do proletariado ou faziam proclamações confiantes sobre as leis deterministas do progresso histórico que supostamente previram a chegada iminente do comunismo.

As semelhanças estruturais entre a síntese identitária e o marxismo são realmente impressionantes. Como mostro na Parte IV, uma reconstrução racional da síntese identitária concentrar-se-ia em três afirmações principais:

  1. A chave para compreender o mundo é examiná-lo através do prisma das identidades de grupo, como raça, gênero e orientação sexual.
  2. Valores supostamente universais e regras neutras servem apenas para obscurecer as formas como os grupos privilegiados dominam aqueles que são marginalizados.
  3. Para construir um mundo justo, devemos adotar normas e leis que façam explicitamente com que a forma como o Estado trata cada cidadão — e como os cidadãos se tratam uns aos outros — dependa do grupo identitário a que pertencem.

Seria fácil oferecer uma reconstrução racional das reivindicações centrais do marxismo que parecesse surpreendentemente semelhante:

  1. A chave para compreender o mundo é examiná-lo através do prisma da classe social.
  2. Valores supostamente universais e regras neutras servem apenas para obscurecer as formas como as classes privilegiadas dominam aqueles que são oprimidos.
  3. Para construir um mundo justo, temos de adotar normas e leis que façam explicitamente com que a forma como o Estado trata cada cidadão — e como os cidadãos se tratam uns aos outros — dependa da sua condição econômica.

Parece ser um caso bastante convincente de que aqueles que falam de “marxismo cultural” estão próximos da verdade. Mas embora a estrutura do marxismo realmente se assemelhe à estrutura da síntese identitária, as suas diferenças substantivas são, em última análise, mais importantes.

A primeira diferença substantiva é óbvia. As duas tradições discordam sobre o prisma fundamental através do qual se vê o mundo: a categoria que motiva a ação humana e cujos membros devem ser libertados se quisermos criar um mundo melhor. Os marxistas acreditam que a categoria econômica de classe é fundamental. Enquanto isso, os adeptos da síntese identitária concentram-se em identidades de grupo como raça, gênero e orientação sexual, incluindo a classe na sua lista, no máximo, como uma espécie de acréscimo a posteriori.

Esta diferença foi amplamente notada. (Na verdade, aqueles que comparam a síntese identitária ao marxismo reconhecem-na implicitamente, acrescentando que o marxismo de que falam é de natureza cultural.) Mas há também uma segunda diferença substantiva, que é igualmente importante, mas que tem sido em grande parte ignorada.

Os marxistas tradicionalmente teorizam o proletariado como uma classe universal. O objetivo da revolução, segundo eles, é superar todo o antagonismo de classe, colocando os proletários no comando e abolindo todas as distinções de classe. Isto fornece ao marxismo uma promessa utópica de um futuro em que as classes desapareçam e todos os humanos possam finalmente ser solidários uns com os outros — uma promessa utópica que falta notavelmente à síntese identitária.

Alguns estudiosos, como Karen e Barbara Fields, defendem o objetivo paralelo do “abolicionismo racial”: ecoando o objetivo utópico que os marxistas abraçam no que diz respeito à classe, eles esperam um futuro em que essa categoria de análise tenha deixado de ser útil. Mas os adeptos da síntese identitária rejeitam veementemente esse objetivo, considerando-o equivocado ou irrealista. Abraçando uma forma de essencialismo estratégico que tem deixado de ser estratégico, resignaram-se a um futuro em que os aspectos mais básicos da realidade, desde a forma como dois amigos deveriam interagir até quem deveria receber escassos produtos medicinais, deveriam depender para sempre de categorias de identidade. Como resultado, os adeptos da síntese identitária ficam presos a uma visão do futuro em que a realidade social e política continuará para sempre a ser estruturada por conflitos, ou pelo menos por tensões significativas, entre diferentes grupos identitários. Falta-lhes, portanto, a promessa utópica que tornou o marxismo tão inebriante.

As asas dos pássaros e das borboletas compartilham muitas características anatômicas. Isto torna tentador supor que eles devem ter um ancestral comum. Mas esse não é o caso. Na biologia evolutiva, eles são considerados um exemplo central de “evolução convergente”. O formato de suas asas evoluiu, independentemente uma da outra, para desempenhar a mesma função: permitir-lhes voar.

Algo semelhante é verdade para o marxismo e a síntese identitária. As duas ideologias têm semelhanças estruturais importantes porque partilham um propósito central: opor-se e superar o liberalismo filosófico. Mas isto não deve tentar-nos a simplificar demasiadamente a relação entre as duas tradições. Longe de ser uma mera adaptação do marxismo, a síntese identitária é um novo desafio à democracia liberal que devemos levar a sério — e a que nos opomos — nos seus próprios termos.

Traduzido por Leo Vinicius

As imagens que ilustram o artigo são obras de Turkey Tolson Tjupurrula.

Notas

[1] A escolha foi por manter no original: wokeness. Poderia ser traduzido literalmente como ‘despertar’, mas se refere a uma onda ou movimento de política identitária nos Estados Unidos que tem sido chamado de woke (Nota do Tradutor).

5 COMENTÁRIOS

  1. Com a sanha de fazer uma crítica contundente aos perigos de uma política baseada em uma noção esvaziada e apassivadora da mercadoria-identidade, alguns textos publicados no site tem soado cada vez mais estranhos. Dessa vez, divulgando um bem divulgado acadêmico liberal, defensor das democracias e nacionalismos europeus, ao seu modo, cheio de afirmações que bem poderiam ter saído da boca de representantes tendências bem reacionárias, à esquerda e direita – para não dizer fascistas.
    Pepe Escobar, Dugin, Rafael Machado, Nova resistência & Brasil 247, Revista Fórum, PDT, Opera Mundi, PCO, (Passa Palavra ?) … vários caminhos de entrada do discurso de extrema direita no campo da esquerda, onde as barreiras começam mais intensamente a borrar e a velocidade dos ecos se intensificarem. Um dos pontos de entrada dessas figuras é uma suposta crítica ao “identitarismo” ou “síntese identirária”, coloquem como quiser, obedecendo uma forma específica de discurso, com consequências sérias na prática política de diversos grupos e organizações.
    Já são vários que se dizem de extrema-esquerda, mas já não veem como adotam políticas que afastam de seu centro justamente aqueles que atuam em frente radicais no conflito social, como o caso de algumas populações (compostas majoritariamente de proletários de forma alguma descolados de uma política de classe), reduzidas a “identidade” por esses cantos, dando abertura para chamadas e programas conservadores, abrindo caminho para alianças vermelho-marrom. Na busca de uma crítica desapiedada a tudo que existe, desfazendo ilusões, alguns setores correm o risco de ao tentarem expulsar pela porta da frente algumas formas de política, deixam as janelas abertas – sem dúvida serão surpreendidos pela culatra, espero que não seja tarde.
    Uma crítica radical às políticas de identidade devem ser feitas, mas não a qualquer custo. Atentem-se.

  2. O que, especificamente, deste texto seria um tiro pela culatra contra uma esquerda que se propõe emancipadora, revolucionária, anticapitalista e comunista?

  3. Tempos Estranhos mesmo onde se vê o Pepe Escobar, defensor de regimes antagônicos à democracia liberal (propagandista do Putin), onde na verdade está um acadêmico que é explicitamente liberal no sentido norte-americano. Você pode encontrar o livro inteiro para baixar na libgen.is. É um liberal progressista fazendo crítica a uma forma de totalitarismo ou fascismo, ou autoritarismo, como queira chamar. Ah, é verdade, ele não é marxista. Mas quem quer ler só livro de seita….

    O Passa Palavra destacou bem, no lead, aquilo que o leitor deveria estar mais atento. Trata-se de um liberal apontando que a política identitária é uma ameaça à democracia liberal. O que é que historicamente foi uma ameaça à democracia liberal e não era o socialismo?

  4. Aqui uma entrevista em português do Yascha Mounk sobre esse livro: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjk7kyg6ryyo

    “Mounk descreve como, segundo ele, uma parte da política progressista ou de esquerda atual passou a privilegiar a identidade sobre todas as outras coisas na hora de desenvolver políticas públicas e se posicionar no debate político.

    Para Mounk, em nome de ideias e valores “centralmente preocupados com o papel que categorias de identidade como raça, gênero e orientação sexual desempenham no mundo”, uma parcela considerável da esquerda passou a desprezar — ou relegar a segundo plano — “valores universais e regras neutras, como liberdade de expressão e igualdade de oportunidades”, historicamente bandeiras do espectro esquerdista, ele argumenta.”

    Ele traz fatos bastante contundentes do que ocorre nos EUA, com a segregação racial nas escolas (agora impulsionada pela “esquerda” identitária), e como nos EUA a política identitária influenciou a distribuição de vacinas contra covid-19, a ponto e apesar de isso causar mais mortes do que distribuição etária ocorrido na maioria dos países.

  5. Muito embora não tenha lido o livro, o autor parece empregar certa concepção do horizonte utópico marxista que me parece um tanto primária, indo ferozmente contra o método do materialismo histórico-dialético que possbilita a própria crítica em termos marxistas.
    Trata-se da visão segundo a qual a sociedade libertada das contradições do Capital seria uma sociedade, justamente, sem contradições ou conflitos. Me parece que uma sociedade pós-capitalista não seria o resultado da elimianção de conflitos ou contradições, mas apenas dessas contradições de classe que produzem o sistema de exploração e opressão vigentes.
    Seria essa visão (sociedade sem classes = sociedade sem contradições) o resquício de delírios paradisíacos cristãos?

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