M. Ricardo de Sousa [1]

 

Não é necessário estudar linguística para perceber que as palavras têm o seu tempo ou que em cada época há um vocabulário que traduz a cultura, os costumes e o imaginário de um povo.

Durante séculos houve palavras como revolta e injustiça que diziam muito àqueles que se viam, e definiam, como povo, e que o cronista da sociedade antiga portuguesa, Fernão Lopes, chamava de «arraia-miúda». Todos entendem a quem nos referimos sem ter necessidade de um doutorado em ciência política.

As classes subalternas manifestavam continuamente a sua revolta contra as injustiças, mesmo que muitas vezes através de um comportamento e um discurso oculto, para usar as palavras de James C. Scott. Olhando para as revoltas camponesas na Alemanha, para a Revolução Inglesa, Francesa, Russa e Espanhola, eventos míticos da luta social, podemos ver os povos em explosão e em revolta contra o Poder e a injustiça. Perdoem-me o etnocentrismo, poderia também falar do Caribe, da América Latina e África.

A luta contra a injustiça não era o combate contra os códigos e as leis, até porque em muitos casos não existiam, mas algo muito maior que tinha a ver com a consciência, a necessidade e a moral.

A cultura radical contra o Poder e as classes dominantes assentou num discurso, durante muito tempo não escrito, em torno da justiça e da injustiça e da necessidade de acabar com os tiranos e os poderosos, algumas vezes também apelidados de «senhores» e «ricos». Esse discurso era político, mas ia muito para além disso, pois manifestava um imperativo de mudar as sociedades e criar novas instituições igualitárias. O caminho do século XIX, e começo do século XX, foi duro e correu muito sangue nessa guerra social, feita de escaramuças, confrontos abertos, guerra de trincheiras e guerrilhas, até que em 1917 na Rússia parecia que se dera a vitória das classes dominadas. Só parecia.

Com a derrocada do socialismo de Estado, socialismo real, capitalismo de Estado, ou o que se quiser chamar ao regime que se ergueu nos anos 20 nas ruínas da Revolução Russa, o imaginário popular construído em torno do «socialismo» e do «comunismo» ficou soterrado sob os escombros desse Sistema.

O mundo que então surgiu, a partir do final do século XX, que é ainda o nosso, foi-se definindo através do espectáculo, no sentido de Guy Debord, da alienação consumista, no entendimento de Herbert Marcuse, e da democracia totalitária, na visão de João Bernardo onde o actor central é o «Zé Ninguém» de Wilhelm Reich. Nestas sociedades cada vez mais marcadas por um hiper-liberalismo, não necessariamente económico, vamos assistindo o ocaso das velhas classes proletárias e vendo surgir outros actores: novos servos da gleba, novos lupemproletários.

As velhas instituições já com alguns séculos, partidos políticos e sindicatos, minguam, transformam-se, integram-se, desaparecem. No rescaldo, surgem os movimentos sociais e estes dão lugar, gradualmente, aos grupúsculos identitaristas, repartidos por um sem número de causas e motivações, cada um procurando tornar a sua causa a mais relevante de todas e encarando todas as outras como concorrentes perigosas da sua cosmovisão. É Adam Simith aplicado à cultura e à filosofia. Cada grupo em concorrência com todos os outros para preservar o seu «auto-interesse». E dessa livre concorrência irá resultar o bem-estar da sociedade.

Nesta época, as palavras correntes são já outras: luta contra a discriminação e inclusão social. Cada grupo, cada identidade identifica um preconceito específico que tem de combater: o racismo, o machismo, a homofobia, a transfobia, gordofobia, unatractifobia e todas as outras que não podemos catalogar sob pena de perder o fio do raciocínio. O negro gay e feminista lésbica, o transexual oriental, cada um cria o seu próprio grupo fechado, e o seu hermético «espaço seguro» e define os seus próprios objectivos, que são quase sempre um discurso estridente contra a descriminação e um programa de inclusão social.

Enquanto, no passado se tratava de estabelecer um objectivo comum e encontrar os pontos de acordo de todos os grupos e classes subalternas, tendo em vista mudar radicalmente as sociedades, agora trata-se de impor a inclusão social, que nada mais é que abrir caminho às carreiras individuais dentro de um Sistema que se tem por definitivo. O programa são mudanças legislativas, cotas e empregos. Não se trata já da Revolução, nem sequer da Reforma, no sentido da social-democracia original, trata-se da luta por um lugar ao sol, numa esplanada lotada.

No passado os contestatários não queriam saber de ir benzer o seu amor numa Igreja; agora luta-se pelo reconhecimento do casamento gay. Homossexuais e lésbicas querem casar de branco e ter a bênção dos padres. Critica-se a Igreja, uma velha instituição conservadora, por discriminar, quando, no passado, se tratava de fugir das Igrejas, de todas elas. Não vai longe o tempo em que era «proibido proibir», agora a obsessão são as proibições e agravar os códigos penais para todas as condutas criminosas ou, até, para a simples falta de educação. Identitaristas e reaccionários conservadores criam um ponto de acordo: punitivismo penal sem remissão.

Agora a própria literatura ou linguagem deve ser policiada, tal como já havia previsto Orwell, e há que queimar livros, extirpar parágrafos, como faziam no passado os censores da Inquisição, e usar palavras «neutras», mesmo que elas raramente existam. Inventa-se um código de morse feito de X e @, como se tratasse da mais avançada, e sofisticada, forma de comunicação que se tenha criado desde que existe linguagem humana. Para estes ultra-liberais identitaristas curiosamente o Estado não é um inimigo, mesmo que seja ele o gestor histórico de toda a dominação e institucionalizador de toda a injustiça e discriminação. Para os identitaristas o Estado é até um aliado, desde que institua uma cota ou reconheça mais umas reivindicações da luta LGBTQIA+. Mesmo que seja a dos banheiros unissexo, que qualquer bar da esquina ou wc das ruas de Paris há muito institui sem problema e sem debate público.

Na sua cosmovisão confusa, que mistura «reacionarismo» e «progressismo», ultraliberalismo e estatismo, os identitaristas não conseguem entender o mais básico, que os dois últimos séculos deixaram claro: que a injustiça das sociedades está construída em torno de umas categorias mais amplas: da exploração e da dominação e que só a partir dessas categorias se pode estabelecer um programa comum de uma sociedade justa de iguais. Iguais e diferentes, podemos mesmo dizer de únicos solidários, pois este sempre foi o objectivo libertário do comunismo. Pode ser utópico, mas esta foi a meta mais subversiva porque até hoje os seres humanos foram capazes de lutar e pelo qual vale a pena ainda lutar.

[1] Anarquista, editor, doutor em nada.

Ilustram o artigo obras do artista plástico argentino León Ferrari (1920-2013)

3 COMENTÁRIOS

  1. desafio para anarco-adjectivados que querem ser polémicos e ter direito a colunas do jornal mapa em simultâneo:

    escrever crítica sem cair no reaça, ser anti-autoritário no aqui e agora, ao invés de há 50 e 100 anos, que com máquinas do tempo qualquer pessoa, não reduzir o que as pessoas mais ou menos detestáveis dizem para criar narrativa.

    por outras palavras, mais encontros do grindr e menos sitcoms como ponto de partida para investigar estes gays e outros esquisitóides e fazer categorizações sociológicas abrangentes sobre eles

    tenta, alguns dos esquisitóides até são assexuais de peles exóticas, basta participar do vudu e fazer companhia, podes manter as roupas vestidas

  2. PANEMARUPIARA ou DUELO AO POR DO SOL

    cotista pleistocênico & tardobolchevique disléxico desafia anarcodemocrata & cabotino gradualpossibilista para compartilharem (juntos!) um parto de montanha
    a conferir

  3. cabotino é boa cena
    agora é pôr o anúncio no jornal, para quando uma secção de classificados nos diários da revolução?

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