O 8 de janeiro e a farsa no espelho

Por Alan Fernandes

 

“Há muitos anos, quando instado dos porquês da eficácia das ideologias no capitalismo, um militante da minha geração sacou da caderneta e disparou um dos mais conhecidos axiomas do marxismo, “a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante”. […] No bom espírito da tradição marxista ortodoxa é relativamente comum confundir os resultados com os processos subjacentes de produção das ideologias, com as premissas. Pode-se avançar com a formulação de que as ideologias combinam a inevitável produção de significados, necessários e inevitáveis para a vida em sociedade, com as constelações de conflitos e relações entre as classes sociais e as instituições. Mas este é, ainda, um nível muito genérico, apesar de adicionar um elemento relevante: a produção simbólica. Este elemento é importante porque chama a atenção para dois aspetos. Por um lado, confere alguma autonomia ao domínio ideológico, permitindo perceber que a ideologia não se resume a um epifenómeno da infraestrutura económica. Por outro lado, permite refutar as teses identitaristas de que tudo seria político.”

– João Aguiar em “Tempo: tecido das ideologias

 

Para qualquer pessoa prudente, o 8 de janeiro deixou marcas políticas profundas. O período de quatro anos em que Bolsonaro governou o país não dá conta, por si só, de explicar como o evento se tornou possível. Duas perspectivas – não apenas duas, mas que destaco pela viabilidade deste modesto artigo – parecem se confrontar no que diz respeito aos efeitos práticos e simbólicos do evento em questão. A primeira aponta em um verdadeiro fundo de verdade, onde Bolsonaro constituiu nos últimos anos aparato eficaz para corroer as instituições por dentro e eventualmente ser reeleito democraticamente. O círculo político que o rodeia e a multidão em cólera das motociatas e das igrejas simultaneamente esperavam o resultado contrário e se mostraram confiantes em um golpe de estado que mantivesse Jair na cadeira de presidente sob o aval das Forças Armadas em uma eventual Garantia da Lei e da Ordem. Estas foram as circunstâncias, mas a tese era a de que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) seria capaz de frear o bolsonarismo fazendo uma aposta reversa do vácuo aberto pelas Jornadas de Junho e a revolta dos coxinhas. Para (re)costurar o consenso aberto na redemocratização, a esperança de toda sorte de democratas, entre eles Youtubers, populistas de esquerda, ex-anti-petistas, artistas e personalidades do meio jornalístico, era de que seria preciso fazer as pazes com a história. Dizem os defensores da outra tese que a máquina conciliatória petista faria uma simetria entre a própria sobrevivência política e a restauração da democracia, modo de governo este que manteve-se intacto em sua estrutura, diga-se de passagem, ainda que seus principais atores entre 2019 e 2022, no meu parecer, possam ser fielmente identificados como fascistas.

A ascensão bolsonarista pariu quase de imediato um primogênito democrata. Daí a popularização do “Ele não”, “fulanos antifascistas” e por aí vai. Os defensores da segunda tese tornaram-se o filho do meio, que não é o caçula, pois não é o favorito, e é menos solicitado, já que não é o primogênito. A tese seguinte na verdade é a reciclagem de um debate comum, da ortodoxia marxista segundo a qual a ideologia é contingente da infra-estrutura. No bom português artigos como o 8 de Janeiro e as Faces do Capital de Hugo Alves argumentam que o horizonte golpista no Brasil não poderia ser levado a sério por respeitar a racionalidade própria do regime de acumulação capitalista.

O argumento é o seguinte: o intento golpista falhou, não pelo que se propunha a fazer, não pelos seus limites intrínsecos, mas porque o grande capital não queria. Já de cara confunde-se os capitalistas em abstrato com o poder exercido pelos gestores na vida econômica. Decerto o autor está se referindo aos detentores de grandes investimentos e ignora o agronegócio, mas mesmo se argumentasse que os primeiros prevalecem sobre os segundos, teria de explicar, à luz da sua argumentação sobre a “reprodução ampliada do capital”, se existe de fato um consenso sobre o fracasso de Bolsonaro na economia, vide o dissenso entre economistas sobre a condução da economia sob Paulo Guedes.

Também é curioso como os principais jornais e revistas internacionais, como o Washington Post, o The Guardian (aqui, aqui e aqui) e The Economist, alertaram sobre o bolsonarismo agora em 2022, alertaram antes, e pouco puderam fazê-lo para reverter, apesar de serem conhecidos porta-vozes da intelectualidade capitalista. mas ninguém prudente pode dizer que “O Capital” queria e não queria ao mesmo tempo alguma coisa, a menos que acreditasse em teorias conspiratórias sobre o resultado das eleições de 2018. Afinal, segundo a argumentação de alguns, se “O Capital” preferisse o impeachment de Dilma Rousseaf e a prisão de Lula, o governo centro-direita de Michel Temer não teria segurado o turbilhão político no pós-2013? Se o que fica implícito é que Bolsonaro contorna o cenário político social, não seria o fascismo de Bolsonaro a primazia da ideologia sobre a economia? E não teria vencido não “por causa”, mas “apesar” da economia? Reformulando talvez mais sinteticamente este ponto: qual a diferença do poder dos capitalistas em abstrato e o poder dos capitalistas na realidade concreta?

O 8 de janeiro e a farsa no espelho

Em editorial publicado em setembro de 2022 a Economist diz: “Se o tribunal eleitoral brasileiro anunciar a vitória de Lula, os bolsonaristas armados poderão atacar o tribunal. […] Se houver caos nas ruas, Bolsonaro poderá invocar poderes de emergência para adiar a entrega do poder.” O editorial não poderia ser mais preciso. Já era previsto que Bolsonaro poderia criar obstáculos à entrega do poder. Nada diferente do apelo popular pelo artigo 142 nas portas dos quartéis e que justificaram a invasão aos 3 poderes.

Como os capitalistas temem a perda do controle concreto, não o abstrato, a hipótese golpista soa muito “material” para seus porta-vozes. Mas para o autor de “O 8 de Janeiro e as Faces do Capital”, só existe a ideologia do capital em abstrato, não a prática de sujeitos em circunstâncias materiais; por isso, não admite que a escalada repressiva que se seguiu aos bolsonaristas seja resultado direto da perda de controle discursivo sobre os rumos da conjuntura brasileira, não uma situação inevitável. É a imprevisibilidade que inaugura um campo de disputas. Onde resta a confirmação das próprias hipóteses, o espaço que sobra são aquelas cartilhas e panfletos que ninguém lê.

Manchetes brasileiras com muita frequência apresentam o mercado como uma entidade impessoal para representar um ponto de vista. Parte dessa armadilha se encontra também na esquerda que vê o capital como ideologia singular e eterna, principalmente ignorando que entre as empresas e o aparelho de estado há interesses ideológicos conflitantes, assumidos na prática concreta dos gestores.

Outra ilusão é, em sua recusa das eleições como marcador de disputa pelo poder político e econômico, muito presente na esquerda radical brasileira, ignorar o que dizem os dados eleitorais em termos de identificação política. De parte do campo institucional, junto de Jair Bolsonaro, que inicia sua presidência em 2018 sendo eleito por aproximadamente 58 milhões de votos, somam-se dezenas de bolsonaristas e simpatizantes eleitos em estados brasileiros. Só para citar alguns, João Dória (PSDB) em São Paulo, Wilson Witzel (PSC) no Rio de Janeiro, Romeu Zema (NOVO) em Minas Gerais, Ibaneis Rocha (MDB) pelo Distrito Federal, Wilson Lima (PSC) no Amazonas, Ronaldo Caiado (DEM) em Goiás. Isso sem contar os representantes das Forças Armadas em número recorde desde a ditadura. Já em 2022, com o “mito” fora do páreo, surge Tarcísio Gomes (Republicanos) em São Paulo, Cláudio Castro (PL) assume no Rio de Janeiro, Caiado se reelege no berço do cerrado e do agronegócio brasileiro, e não menos importante, Ibaneis também se reelege. A insistência em lembrar deste último é fundamental para compreender os eventos do 8 de janeiro. Suas tropas, direcionadas ou não a propósitos golpistas, permitiram a marcha em direção à Praça dos Três Poderes sem resistência. Só a anuência deles justifica, em termos estratégicos mas pouco claros, a premissa de que a qualquer momento deveria ser decretada uma GLO, com as Forças Armadas tomando não só as rédeas da situação, mas colocando em xeque o resultado das eleições, que, sabe-se agora, Bolsonaro admitiu abertamente que era inevitável para ele.

Já por fora do campo eleitoral, não só a polícia do DF protagonizou eventos contundentes nos últimos anos. Em Salvador, durante o contexto de pandemia, um surto psicótico de um policial inspirou um motim anti-lockdown, “a favor da liberdade” contra as imposições sanitárias:

 

Quando um policial militar da Bahia abandonou o posto e dirigiu sozinho por mais de 250 quilômetros até o Farol da Barra, ponto turístico de Salvador, onde disparou tiros de fuzil para o alto, em meio a gritos contra a violação da “dignidade” e da “honra do trabalhador”, seu surto foi celebrado nas redes anti-lockdown como um gesto heroico contra as “ordens ilegais” dos governadores. O fim trágico do soldado, morto em tiroteio pelos próprios colegas, foi usado por deputados da extrema direita para incitar um motim na tropa. (HTTPS://NEBLINA.XYZ/MASTERCLASS)

O 8 de janeiro e a farsa no espelho

A defesa das “liberdades”, seja de ir para a rua, tomar cloroquina, abrir seu comércio, não foi defendida exclusivamente pelo bolsonarismo, mas teve nele sua principal força motriz, construindo um verdadeiro ecossistema de extrema-direita (Ver também aqui e aqui). A luta pelas coordenadas barreiras sanitárias foi ofuscada pelas revoltas anti-lockdown nos centros urbanos e a luta invisível pela retomada econômica: o pastor que migrava seu culto para edifícios em que era permitido o “serviço essencial”, o vendedor que passou a vender itens da cesta básica para não fechar seu comércio, os personal trainers que levavam a atividade física para as praças e lares brasileiros, as casas de shows que promoviam “serenidade” contra os temores da morte iminente. Apesar de ser possível também afirmar que nem todos esses atores são bolsonaristas de carteirinha, é precisamente a confluência que permite a tal ecossistema multiplicar sua base militante.

E hoje? Segundo o Datafolha, somente 7% dos eleitores que se identificavam como bolsonaristas extremos mudaram de ideia. Percentual 1% superior ao dos que se arrependem de terem teclado o “13”. Quem são estas pessoas? Segundo a mesma pesquisa, pessoas de renda de 5 a 10 salários mínimos, evangélicos, das regiões Sul, Norte e Centro-Oeste. É precisamente na região da Amazônia Legal que está concentrado grande parte do agronegócio brasileiro, setor este grato pelos 31 bilhões enviados em 2022 pelo BNDES e fundos constitucionais. Parte do setor teria devolvido a gentileza no 8 de janeiro, revela a ABIN. Ainda sobre o eixo endógeno do fascismo, é relevante acrescentar que o número de CACs subiu pelo menos 6 vezes só durante a gestão de Bolsonaro [1]. Ainda no início de sua gestão, o decreto nº 9.785, de 7 de maio de 2019, facilita a aquisição de armas para os “CACs, pessoas residentes em área rural, profissionais de imprensa que atuem na cobertura policial, motoristas de empresas e transportadores autônomos de cargas, funcionários de empresas de segurança privada e de transporte de valores, dirigentes de clubes de tiro, conselheiros tutelares e agentes de trânsito. Agentes públicos, inclusive inativos de diversas áreas ligadas à segurança pública, ao sistema penitenciário, socioeducativo e judicial também passam a ter o porte de armas facilitado”. Parte deste material bélico não tardaria a chegar às milícias urbanas, onde a expressão fidedigna de uma ditadura se aplica igualmente à rotina econômica das regiões por elas ocupadas. Dentre os presos no 8 de janeiro, pelo menos 11 são (ou pelo menos eram habilitados como) CACs. Não deve passar despercebido também a intransigência de figuras bolsonaristas ao recusarem-se a andar desarmadas em período eleitoral, além dos casos de políticos que escondem armas irregulares, vide os casos de Carla Zambelli e Valdemar da Costa Neto.

Por último, mas não menos importante, um componente central para o bolsonarismo, pelo menos desde 2018, são os caminhoneiros. Após a eleição de Lula, e paralelamente aos acampamentos nos quartéis, a categoria paralisou ao todo 421 rodovias. As consequências só não foram mais devastadoras do que a greve durante o Governo Temer — quando “o capital” insistentemente condenou o movimento e de onde nasce outra figura importante hoje, o deputado Janones. Que dizer, também, dos flagrantes de amistosidade entre agentes da Polícia Rodoviária Federal e os manifestantes obstruindo vias?

Entre as consequências da greve em 2018, um artigo do Passa Palavra, indicado acima, aponta:

 

Os impactos econômicos fizeram-se sentir imediatamente. Os bloqueios levaram, por exemplo, à paralisação das atividades em frigoríficos, sobretudo no estado de Mato Grosso, responsável por 16% da produção nacional. Segundo um representante do setor, todos os estabelecimentos no estado ficaram com 50% da produção comprometida, com prejuízos variando entre R$ 20.000,00 e R$ 200.000,00 por dia de paralisação. Já se fizeram sentir também na indústria de laticínios, que em 2018 teve um prejuízo estimado em R$ 1 bilhão, com 300 milhões de litros de leite descartados. Outro setor já atingido é o dos supermercados, com 70% dos estabelecimentos afetados em pelo menos 7 estados brasileiros. E tudo indica que o prosseguimento dos bloqueios atingirá outros serviços e indústrias, impactando duramente na vida e saúde da população, como nos serviços de saúde: a Associação Brasileira da Indústria Química (ABIQUIM) e a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (ABRAMED) têm alertado para o risco de falta de oxigênio, reagentes e contrastes. Os bloqueios também afetaram a produção de vacinas, viagens aéreas, postos de gasolina, levaram à paralisação de plantas de montadoras de veículos, afetaram o escoamento de matérias-primas utilizadas na construção civil e causaram diversos outros problemas.

 

O 8 de janeiro e a farsa no espelho

Que os capitalistas (reais, não abstratos) fiquem de cabelo em pé, e que os bolsonaristas aceitem como efeito colateral tamanho prejuízo para a indústria, só ajuda a confirmar o movimento como aquilo que é: “uma revolta dentro da ordem”. Com todos estes elementos descritos, denunciados por uma carta insossa pela “democracia”, contra a opinião pública internacional que advertiu contra tal intento, será que começa a entrar o fundo de verdade da tese da “farsa”? Como pode o bolsonarismo “fraquejar” precisamente quando sua demonstração de força parece inevitável? Como a assimilação total do 7 de Setembro, da Marcha para Jesus, e de todas as revoltas relevantes protagonizadas pela direita se converteu em um ritual mórbido? Num suplício por atenção ao seu líder então escondido nas terras do Mickey Mouse?

É que, como diz um artigo brilhante, o silêncio de Bolsonaro é em verdade um sussurro. Impede as peças do tabuleiro de se voltarem contra ele e sustenta toda a sorte de militantes do campo institucional ou não que a ele são leais:

 

Para posicionar-se no cenário político ao fim de seu mandato e evitar o ostracismo, Bolsonaro conta com duas armas principais. Tem um braço institucional, composto pelos milhares de militares espalhados em cargos públicos por todo o Executivo, pela Polícia Rodoviária Federal, por parte da Polícia Federal — que é mais “lavajatista” que bolsonarista, distinção que não se deve esquecer — e pela bancada parlamentar recorde recém-eleita na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Tem, também, um braço militante, sem qualquer laço orgânico além dos grupos de WhatsApp e Telegram, respondendo ao sabor do momento a certos chefes mais reconhecidos. O próprio Bolsonaro tende a agir, agora que será sucedido por Lula, como uma espécie de vertedouro: caso o próximo governo, e sobretudo os tribunais, ajam de maneira a isolar ou eliminar do tabuleiro político o movimento radical por ele capitaneado, Bolsonaro poderá orientar — desta vez sem ambiguidades — a massa enraivecida a tomar as ruas, colocando contra a parede o governo, os tribunais e os militares, que se arrogam a função de mantenedores da ordem. Caso isso não ocorra, Bolsonaro continuará agindo dentro da institucionalidade, mas criando constrangimentos ou tentando obstruir o governo sempre que possível, minando sua credibilidade e governabilidade e, é claro, produzindo desinformação. Episódios de violência e intimidação aqui e ali representariam, assim, uma tentativa de manter a chama do radicalismo acesa, mas sob controle, como numa forja, Bolsonaro tendo as mãos sobre o fole.

 

Em suma, parece que o sacrifício pessoal e de grande parte de seus apoiadores civis, para não sacrificar todo o espectro que o ronda, virou a tônica para dar sobrevida ao bolsonarismo, difuso hoje pelos seus recentes fracassos — como a CPI dos atos antidemocráticos, a CPI do MST e o inquérito das fake news, sem sequer entrar no mérito da repercussão da minuta do golpe de Anderson Torres e do depoimento do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid. Mas chama atenção agora o discurso de 25 de fevereiro deste ano em que Bolsonaro fala pela primeira vez em anistia aos presos do 8 de Janeiro, citando que o Brasil outrora a concedeu para quem cometera “barbaridades”.

O Judiciário brasileiro condenou, a pedido da PF, grande parte dos agitadores do 8 de janeiro, financiadores e propagandistas diretos e indiretos. confirma ainda meu ponto: o cerco fechado a Bolsonaro e seus aliados demonstra que a intenção de um golpe nunca foi tão real quanto em outubro. Há muito que ainda ficou fora do vídeo vazado pela PF. Não importa muito se intelectuais de esquerda definem como fascistas ou não os bolsonaristas radicais. O fato de verdade é que a única força “antifascista” que existe ainda neste país são as próprias instituições do aparelho de estado. Exceptuando, é claro, um episódio em que torcidas organizadas e militantes do MST tensionaram com caminhoneiros que montavam barricadas contra a eleição de Lula. Mais recentemente o número de condenados pelos antidemocráticos chegou ao terceiro dígito. Lá encontram-se pessoa ligadas ao agro, cidadãos comuns de classe média, pequenos empresários, mas os principais mentores, exceptuando os novos convocados para prestar esclarecimentos à PF, seguem em liberdade, muitos com seus mandatos intactos e atuantes (ver sobretudo aqui). Alves crê estar endereçando seu artigo aos histéricos do campo democrático-popular, mas ao não se sujeitar a análise mais atenciosa sobre o significado ideológico do bolsonarismo, soa descuido para todos nós que acompanhamos as últimas notícias com tanta apreensão. Quem não deduziu os eventos do 8 de janeiro à luz d’O Capital de Marx adotou psicologismo, subentende-se.

Se o bolsonarismo como movimento social declinou também é outra incógnita. De fato ele ainda sobrevive nas redes de articulação descentralizadas e de difícil identificação, pois remontam a pautas crescentes na sociedade, como tratamento precoce, Igrejas, comunidades terapêuticas, milícias, justiceiros, clubes de tiro, homeschooling, entre outros. A democracia parlamentar coaduna sem contradição com a ditadura nas empresas, com o ritmo crescente de trabalho, com a competição violenta entre os próprios trabalhadores, onde estamos (esquerda) mais vulneráveis, exaustos, e em menor número, distantes culturalmente dessa sanha irracional e incapazes de reatar os almoços em família, limitados a celebrar e ovacionar a repressão antifascista, arruinando um bom feriado com quem pensa diferente de nós. Quando Safatle, aliás, escreveu que a esquerda morreu, só esqueceu-se de que alguém precisaria estar vivo para fazer o testamento. A mesma coerência que permite enxergar o capital como sujeito ativo e encara o movimento social de extrema-direita como contingente, passivo, pode ser perfeitamente aplicado à própria identidade política da esquerda, quando esta mesma não se reinventa. Assim ela padece, vira sujeito somente quando citada em artigos acadêmicos.

O artigo publicado no Crítica Desapiedada não questiona por que ou como Bolsonaro e o bolsonarismo se deixaram abater tão fatalmente, sequer acrescenta algo para o plano da reflexão e ação. Ao invés disso, limita-se a insistir que nunca houve risco real de golpe. Se o 8 de janeiro, como marco do início da reconstrução da extrema-direita, soa como farsa, talvez seja o espelho o que se enxerga.

O 8 de janeiro e a farsa no espelho

Nota:

[1] Se considerarmos o período de 2017 para cá, com a flexibilização ocorrida no Governo Temer, o número de CACs subiu 12 vezes.

 

As artes que ilustram o texto são da autoria de Thiago Boecan (1995-).

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