Por Thiago Canettieri

Este texto será publicado em partes nos próximos meses nesta coluna. Leia as partes I, IIIII, V, VI e VII.

CENA 3

Das primeiras horas até uns bons meses depois, uma ocupação é um conjunto de lonas e madeirites. Por um lado, a estratégia do movimento, a fim de evitar o enquadre da ação em esbulho possessório, deve “tomar posse” rapidamente do terreno para demonstrar que o proprietário não a tinha. A ação baseia-se na formulação jurídica de que a propriedade privada não é absoluta. Ela, para ser válida, deveria estar cumprindo sua função social, isto é, sendo posse do proprietário ou de outrem. Um imóvel abandonado, sem uso, não cumpre a função social. Os movimentos se valem deste argumento para ocuparem a terra, tomarem a posse da propriedade, e reivindicarem políticas para permanecerem ou receberem moradia pela política pública. No entanto, apesar da normatividade jurídica, as primeiras vinte e quatro horas são as mais críticas. Com frequência o proprietário do terreno é acionado e chama a polícia. Mesmo que não tenha a posse comprovada do imóvel, e o movimento já tenha algumas estruturas montadas no seu terreno, a polícia tende a agir a favor do proprietário. Várias ocupações iniciadas foram despejadas nas primeiras horas de existência, mesmo sem mandato judicial. O primeiro passo é, portanto, permanecer as primeiras vinte e quatro horas. Para isso, o movimento ativa uma ampla rede de apoio: artistas, parlamentares, celebridades podem aparecer para garantir que a polícia não efetue o despejo.

Mesmo depois de passada a fase de esbulho possessório, a situação jurídica é muito frágil. O processo começa a correr no judiciário. Recorrentemente, a despeito da normatividade jurídica sobre a relativização da propriedade privada, o judiciário responde a favor do proprietário e ordena o despejo. O processo judicial é muito custoso para o movimento, que conta com a presença de advogados e advogadas populares que acompanham o trâmite, fazem a sustentação oral, recorrem às decisões entre outras funções. O movimento também busca aumentar o custo do despejo, com campanhas de solidariedade e sensibilização.

Nesse ínterim poucas famílias autoconstroem. A orientação do movimento muita das vezes é que evite investir numa área que ainda não há uma possibilidade concreta de permanência e, como se sabe, a construção de uma casa de alvenaria, por mais simples que seja, não é barato – sobretudo para a população ocupante. Podem transcorrer longos meses que as famílias convivem com situações de precariedade e de risco, com gatos de eletricidade iluminando barracos de lona e madeira, altamente inflamáveis.

À medida que o tempo passa, a saída do aluguel permite à família juntar um “dinheirinho”. Se o processo judicial correr bem e a luta política ser efetiva, as famílias podem lograr derrubar a ordem de despejo, mesmo sem ter a frente qualquer horizonte de regularização. Mesmo assim, esse já é um cenário favorável para iniciar a autoconstrução das casas em alvenaria.

A construção das casas em alvenaria, que, pode-se dizer, seriam os objetivos da ocupação organizada “para morar”, tem um enorme efeito na forma organizativa e de mobilização do movimento no território. Certa vez, uma liderança confiou-me uma opinião julgada impopular: “Veja bem, está aí na entrada da ocupação a palavra comunidade. Comunidade nada. Comunidade a gente tinha quando estava todo mundo na lona. Agora que todo mundo tem casa, ninguém quer saber da comunidade. Todo mundo só quer saber da sua própria casa”. Ora, que tipo de efeito é esse que alcançar o objetivo é, ao mesmo tempo, perdê-lo?

A liderança da ocupação estava pensando que os primeiros meses a condição de permanência é o que estimula a existência de dinâmicas comunitárias. O compartilhamento de uma experiência de risco a que estão sujeitos todos que lá estão cria laços de solidariedade – não sem disputas, como discutirei mais à frente. Essa forma de relação comunitária é muito importante para o sucesso da ocupação. Contudo, a própria permanência da ocupação vai tornando essas relações comunitárias em uma dinâmica de segundo plano. As formas do trabalho, da família e dos grupos além da luta por moradia, vão se consolidando e dessa maneira produzem uma erosão daquela experiência comunitária.

OCUPAÇÃO E(É) PROPRIEDADE

Uma ocupação está muito além de ser quatro paredes e um teto para seus moradores. A conquista da moradia representa o acesso a melhores condições de vida, ao menos em longo prazo. A saída do aluguel é, recorrentemente, a maior das causas para as pessoas buscarem a luta por moradia, afinal, o ônus excessivo com aluguel é a principal componente do déficit habitacional nas áreas urbanas hoje [1]. Parar de pagar aluguel representa, para muitas famílias, a oportunidade de melhorar, por exemplo, as condições alimentares. A conquista de uma casa, portanto, nunca é apenas para a moradia. Trata-se, de uma possibilidade de recomposição salarial diante das dinâmicas de superexploração da força de trabalho que boa parte da classe trabalhadora brasileira está sujeita.

Não é raro também que a conquista de um espaço na cidade por meio da ocupação, mesmo com as inseguranças de posse decorrentes do ato de ocupar, se transforme em um espaço de geração de renda para essas famílias. O cenário de inclusão no trabalho formal é cada vez mais rebaixado. Algumas famílias usam da propriedade recém-adquirida por meio de ocupação para investir em um microempreendimento [2]. Uma loja, uma padaria, um salão de beleza ou outra coisa do tipo, pode funcionar em combinação com a função domiciliar complementando a renda da família.

Os imóveis resultantes de ocupação produzem um mercado imobiliário informal [3]. Não se trata apenas de um mercado de compra e venda, mas também um mercado de aluguel. Como demonstrou Paolinelli [4], muitas famílias colocam cômodos ou barracões para alugar para outras famílias como uma forma de complementar renda. Trata-se, segundo a autora, de um “rentismo de baixo”.

Ou seja, práticas de ocupação de terrenos produzem novas propriedades, mesmo informais. Dessa forma, ser proprietário (mesmo que informal, vale ressaltar), implica em não gastar com aluguel, ter a possibilidade de ter seu próprio negócio ou ainda colocar um pedaço da propriedade para alugar. Parece que o resultado de uma ocupação é, novamente, a estruturação de práticas de propriedade em territórios informais. Mesmo que alguns movimentos coloquem proibições de venda/compra/aluguel das casas nos primeiros cinco anos [5] (MOREIRA DE MORAIS, 2019), isso não impede a chegada do mercado imobiliário e a constituição de propriedades [6].

A terra que se torna propriedade por meio da ocupação não é uma mercadoria qualquer – afinal, não é produzida como outra coisa. Nossa “urbanização dos baixos salários” ocorreu por uma inserção precária das classes populares: o binômio mercado formal de terras restrito mais uma industrialização e urbanização baseada na superexploração da força de trabalho produziu a extensão do tecido urbano baseada na informalidade. A informalidade é funcional à dinâmica de acumulação do capital, que podia pagar baixíssimos salários já que o custo da moradia, entre outros, era internalizado na dinâmica familiar pelo trabalhador e sua família [7]. O que interessa notar disso é: a informalidade não produziu apenas agentes “autoconstrutores” e “ocupantes pioneiros” – existe um mercado informal complexo e presente que garante a inserção de milhares de pessoas à cidade. As ocupações são, portanto, mecanismos de criação de propriedades.

Notas

[1] PAOLINELLI, Marina. 2023. Ocupar, alugar, ocupar: rentismo de baixo e organização popular na produção da cidade. Tese. Doutorado em Arquitetura e urbanismo. Belo Horizonte: UFMG.
[2] GIAVAROTTI, Daniel. 2018. Eles não usam macacão: crise do trabalho e reprodução do capital no colapso da modernização a partir da metrópole de São Paulo. Tese. Doutorado em Geografia. São Paulo: USP.
[3] ABRAMO, Pedro. 2009. Mercado imobiliário informal: a porta de entrada nas favelas brasileiras. Porto Alegre: Antac.
[4] PAOLINELLI, idem.
[5] MOREIRA DE MORAIS, Livia. Do canteiro ao cotidiano: o legado de processos autogestionários de produção de moradias em Belo Horizonte. Dissertação. Mestrado em Geografia. Belo Horizonte: UFMG.
[6] CANETTIERI, Thiago & MACHADO, Beatriz. 2019. Dominação da forma-mercadoria nos territórios populares? Uma análise a partir da ocupação Dandara. Revista Indisciplinar, 5(1), 178-201.
[7] MARICATO, Ermínia. 1996. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalismo, desigualdade e violência. São Paulo: Hucitec.

3 COMENTÁRIOS

  1. Há dois erros graves neste artigo. Primeiramente, um erro teórico que turva a visão do objeto, ou seja, que dá origem a um segundo erro. Esse um erro de observação permite ao leitor tragar sem tossir uma realidade indigesta. O segundo depois o primeiro: “As ocupações são, portanto, mecanismos de criação de propriedades”, “(mesmo que informal, vale ressaltar)”.
    Sobre o primeiro erro: Não existe a oposição entre propriedade formal e propriedade informal, isso porque não existe propriedade informal. O que existe é uma diferenciação necessária e objetiva entre posse e propriedade. O que o autor chama de propriedade Informal, nada mais é do que a POSSE. Posse é um indício de propriedade: A posse é a APARENCIA (verificável, visível) da propriedade pois é poder de fato (propriedade materializada – o corpus): é a exteriorização do poder de direito. Já a propriedade é a REALIDADE SUBJECENTE: é o poder de direito (animus). Ou seja, segundo Ihering, do ponto de vista do ordenamento jurídico burguês, que é o que importa aqui, posse NÃO É sinônimo de propriedade. Razão pela qual o proprietário segue proprietário caso se veja sem a posse da coisa fundiária (por sua vontade ou contra sua vontade). Por um lado, o proprietário pode ceder a posse direta, por exemplo, através de um contrato de locação, sem com isso perder o direito à propriedade da coisa fundiária locada. Por outro lado, o proprietário pode, contra sua vontade, se ver sem a posse direta sem com isso perder automaticamente a propriedade da coisa fundiária, como é o caso das ocupações. [Pode ser útil ler a sentença do processo 1018092-66.2015.8.26.0007 https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/open.do%5D
    Ao trabalhar com o conceito equivocado de propriedade INformal, o próprio autor confunde a si mesmo, pois finaliza seu texto sem especificar que tipo (dos tipos errados trabalhados ao longo do texto) que as ocupações produzem: “As ocupações são, portanto, mecanismos de criação de propriedades”. Apesar de ser uma frase bastante romântica, e este é o segundo erro.
    Se desconsiderarmos a ingenuidade (quero crer é um autor movido por boa-fé), é verdade que, ocasionalmente, ocupações podem funcionar A POSTERIORI como mecanismos de propriedade. A posteriori, caso haja interesse do capital, os posseiros sem propriedade se submetam a algum procedimento político-econômico capaz de transformar aqueles que possuem a posse apenas de sua própria prole em uma espécie insegura proprietários fundiários pobres. Foi assim quando a Marta, na época prefeita de SP, distribuiu frações ideais minúsculas de morros ainda hoje insalubres e chamou isso de política pública de acesso a moradia digna. Foi assim também quando nos últimos governos petistas milhares de famílias foram submetidas a um processo de bancarização em massa através de financiamentos de alienação fiduciária do tipo subprime. De qualquer forma isso me parece mais uma questão de gestão da insegurança habitacional (conceito que li em algum artigo da Isadora Guerreiro), do que um política pública de acesso a propriedade fundiária aos menos favorecidos.
    Talvez então o mais correto teria sido finalizar o texto afirmando que ocupações geram uma necessidade de gestão da insegurança habitacional, jamais como mecanismos de transformação de proletários em proprietários. OU que ocupações são mecanismos de criação de Posse (só não me parece útil reafirmar assim o óbvio).

  2. Há muitos erros mais, a meu ver. Ao se embrenhar (e se perder…) numa análise restrita sobre as supostas motivações e a “normatividade jurídica” da organização de ocupações o autor abdica de refletir sobre o principal, mesmo na perspectiva normativa: a posse ou propriedade do próprio corpo, da própria vida – num sistema e em metrópoles como os realmente existentes, em que lutamos para sobreviver, via de regra precariamente, muito começando por um teto prós corpos não adoecerem e morrerem.

    “Ao se conquistar o objetivo se perde?” Qual objetivo? Onde entra o teto, o principal objetivo, a posse ou propriedade do próprio corpo e da possibilidade de seguir vivendo, e lutando, nesta análise? “As ocupações são, portanto, mecanismos de criação de propriedades”, conclui o autor, uma das conclusões dessas 4 partes de artigo até aqui. Do ponto de vista conceitual, nos termos propostos a respeito da normatização jurídica da posse ou propriedade do teto, a comentarista Liv acima é mais consistente e precisa, neste território minado de vulnerabilidades, precariedade e inseguranças diversas. Só quem já ocupou bem sabe o que se passa nos dias, noites e madrugadas da favela deste ato coletivo de ousadia, sobretudo, por sobrevivências.

    Mas eu fico me perguntando como cai(ria) a leitura de um texto desse pra uma família sem-teto na periferia de uma metrópole ou megalópole urbana, a imensa maior parte delas. Entre permanecer sem teto, em situação de rua (portanto, mais que “insegurança”, de vulnerabilidade extrema de saúde e a mais básica condição de vida, situação que se multiplica exponencialmente em quase todas as metrópoles do país hoje), ou sobreviver na humilhação de algum aluguel pesado para o bolso ou ainda na humilhação de morar de favor em algum teto ou abrigo precário, da caridade ou benevolência de alguém ou alguma instituição, que muitas vezes lhe detesta, ou cair pra dentro de um terreno com lona preta e bambu, papelão, madeira e madeirite pra tentar em movimento coletivo nova possibilidade ou melhor sorte, por meio de muita luta, à própria vida, dos seus e das suas gentes, queridas também.

    Entre a vulnerabilidade extrema e a ocupação coletiva da construção ou reconstrução de outra chance para seguir vivendo, quem sabe sonhando com novos dias melhores, pisando no barro desse sonho de alvenaria, tentando, quem sabe, molda lo coletiva-mente com as próprias mãos junto a companheiros.

    Sem absolutamente qualquer idealização, de parte à parte, mas antes de qualquer análise e conclusão/definição normativa jurídica de posse ou propriedade do espaço, sempre precário e inseguro, sob gestões e indigestões diversas, tem o movimento de luta pelo mínimo necessário pra qualquer autonomia, um teto pra proteger os corpos, ainda vivos, tomar posse novamente das próprias chances de seguir vivendo, e quem sabe sonhando. Reinventar a possibilidade de sobreviver com um pouco mais, que seja, de autonomia sobre o próprio corpo, dos seus e suas, família, amigos, companheiros – pra seguir lutando por uma vida menos miserável.

    Tenho cá uma velha camisa de uma grande ocupação urbana em algum extremo de SP, de uns bons anos atrás, que ainda diz assim: “Antes eu sonhava, hoje já nem durmo.mais”. Antes de qualquer coisa, normas pretéritas ou futuras, é sobre viver.

  3. Camarada A, já me peguei pensando diversas vezes como a leitura de um texto como este soaria para um sem teto. Sempre chego a mesma conclusão: ininteligível como toda linguagem acadêmica, não ressoaria. É um texto mudo (assim como o debate a respeito de posse X propriedade), como tantos outros, infelizmente. E isso não é culpa necessariamente do professor universitário que não sabe (certa vez, aos prantos uma tia de cozinha coletiva tentou explicar uma situação dramática para uma plateia de turistas universitários que a encaravam com frieza, percebendo a apatia geral a tia controlou o choro e respondeu: “me desculpem, é que vocês não entendem”, e não entendiam mesmo, não tinham a miseria real em seu reportório, aquela miséria que se aprende na pele jamais nos livros) adaptar sua escrita ou do sem teto que não tem o repertório refinado o suficiente (algo que se adquire após com milhares de horas de estudo, ou seja, com privilégio de classe) para compreender a sofisticação da linguagem acadêmica. São polos explorados, mesmo que um mais explorado e outro menos, separados por um abismo. Um abismo útil aos proprietários. Todos os dias, os mais conscientes carregam suas pedras até o topo da montanha e a observam rolar de volta a posição inicial. Todos os dias contemplam isolados em si mesmos esse abismo.
    O que fazer? Continuar empurrando a pedra cientes de que provavelmente será um esforço inglório. Ninguém aqui viverá tempo suficiente para ver a mudança acontecer. Se ela um dia vier a acontecer, afinal anda sendo mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim da exploração capitalista.
    Quando falo em empurrar a pedra quero dizer o seguinte: trabalhar para que se tenha “um teto prós corpos não adoecerem e morrerem”, tomando de empréstimo as palavras do camarada. Colocar nossas energia em prol da luta por permanências. Permanentes condições mínimas para que uma criança possa estudar; permanentes condições mínimas para que essa criança possa crescer com o corpo e com a mente nutrida por referência adultas que, a revelia do capital, permanecem vivas e dando exemplo de revolta e dignidade; permanentes condições para um porvir quiçá disruptivo. Se é ocupando que se conquista essa permanência, então iremos ocupar. Se é estudando, então iremos estudar. Se é formando mentes capazes de refletir o mundo para além do que está dado, então formaremos. Cada qual com sua pedra, as vezes mais juntos, mais colaborativos, mas mesmo que sozinhos seguindo dia após dia no limite esgarçado das forças conscientes de heróis do absurdo (como diz Camus em Mito de Sisifo).

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