Por Thiago Canettieri

Este texto será publicado em partes nos próximos meses nesta coluna. Leia as partes I, II, III, IV, V e VI.

CENA 6

Um helicóptero sobrevoa a ocupação, nele está um dos candidatos a prefeito nas eleições de 2016. Alguns dias depois, com uma grande comitiva, o candidato visita a ocupação – não mais do alto, mas de carro. Muitos moradores preparam a recepção, vestidos com bonés de apoio, adesivos e empunhando a bandeira do candidato, com seu número bem visível. As lideranças comunitárias o recepcionaram: abraços e sorrisos de ambas as partes. Sobem juntos até um mirante da área. As lideranças apontam e mostram a extensão da ocupação. É enorme, afinal, é o maior conflito fundiário da América Latina. O candidato observa atentamente e diz: Aqui também é Belo Horizonte, aqui também tem que funcionar. É ovacionado.

Um ano antes, a fim de concorrer ao pleito de 2016, um grupo de ativistas, militantes, movimentos e figuras públicas, se juntaram para formar um coletivo para disputar as eleições, constituído por um amplo espectro de indivíduos e que buscava romper com a forma tradicional de organização dos partidos. Usando um partido formal como plataforma para a difusão de suas pautas, o coletivo se filiou em massa ao partido e se tornou uma força considerável dentro das fileiras partidárias. Lançaram várias candidaturas para o legislativo municipal. Naturalmente, com a efervescência da luta das ocupações em Belo Horizonte, essa pauta ganhou visibilidade e entrou com destaque dentro do movimento. Foram eleitas duas vereadoras deste coletivo – um feito para o partido que até então não tinha ocupado uma cadeira sequer. Uma liderança da luta das ocupações ficou em terceiro na chapa, fundando – embora não institucionalmente – um regime de co-vereança.

Quando uma das vereadoras eleitas alçou voo para o Congresso Federal, a co-vereadora, liderança do movimento de ocupação, assumiu o posto. Sua pauta dialogava diretamente com o movimento das ocupações. Se reelegeu novamente em 2020 para a Câmara de Vereadores e em 2022 para a Assembleia do Estado de Minas Gerais. Atualmente é vice de uma das chapas que concorrem à prefeitura.

Em campanha eleitoral

Em uma avaliação dos Dilemas da luta por moradia[1], em São Paulo, o coletivo Passa Palavra, diagnosticou a formação de uma burocracia participativa e sua renovação. Ocupando os conselhos, as conferências e as esferas participativas da gestão urbana, a nova burocracia advinda dos movimentos conseguiu interferir nas condições gerais de produção e de reprodução da força de trabalho. Se as lutas sindicais dos anos 1970 culminaram no projeto democrático popular que teve na formação do PT seu auge, as lutas dos anos 1990 e 2000, quando o PT se torna situação no governo federal a partir de 2003, também passam pela formação de uma novíssima burocracia participativa. Quadros que vinham das lutas são incorporados à estrutura da gestão para apaziguar as massas, facilitar a comunicação e, porque não, garantir fundos públicos para as suas pautas. O modelo petista se reedita, ainda que com novo nome.

Desta maneira, os movimentos, escrevem os autores deste balanço crítico, “por mais que não sejam governo, ao agir de tal modo, passa a ser Estado”. Isto é, sua atuação já não está no enfrentamento e na disputa política, mas funciona “se voltando para as mesas de negociação com o poder público e, secundarizando o trabalho na sua própria base, que, cada vez mais desinteressada, só continua associada à organização pelo vínculo coercitivo das listas e pontos”.

Da nova à novíssima burocracia participativa, mudanças sociais profundas ocorreram. A inclusão pelo trabalho se tornou cada vez mais bloqueada por movimentos internos da própria dinâmica da acumulação[2]. Nessas condições, a gestão da produção e reprodução da força de trabalho assume uma nova faceta: já não se trata de força de trabalho para ser empregada pelas forças produtivas em ascensão. Se trata, no neologismo do presidente-sociólogo, de “inempregáveis”[3]. Nessa condição, a novíssima burocracia promove uma gestão de uma massa populacional sobrante (do ponto de vista do capital) e se associa à gestão da barbárie[4] – não por má-fé, mas por fechamento dos horizontes da política: “É isso o que dá para fazer”. “A correlação de forças não está favorável”.

Em especial, num contexto de ascensão da extrema-direita fascistizada. O bolsonarismo e seus congêneres certamente impulsionaram a decisão dos movimentos de Belo Horizonte de ocuparem a política. Esse se tornou o lema. Curiosamente, parece um desvio menos rebelde do chamamento no rescaldo de 2013, quando se gritava “Ocupa a câmara de vereadores”. Agora, de fato, ocupam a câmara (e a assembleia, e o congresso, e quiçá a prefeitura) – mas num sentido bastante diferente.

“Mas agora, quando os gestores do Estado e a burocracia participativa não apenas convergem como também, em dados casos, se confundem, não só as estratégias de mobilização de massas lhes são conhecidas como também é possível antecipá- las, contê-las e mesmo contorná-las ou direcioná-las” (Passa Palavra, 2014)[5].

A pressão imposta pela extrema direita, juntamente com o diagnóstico de um certo fechamento nos horizontes políticos, empurrou os movimentos de moradia para a institucionalidade. Mas, embora seja uma reedição do modelo petista, o alcance não é o mesmo: é apenas uma sombra disso – uma espécie de saída de emergência. Se antes, a entrada de novos personagens em cena[6] parecia gerar uma alta expectativa, a entrada dos novíssimos parece bagunçar o quadro que fornecia régua e compasso para compreender e intervir politicamente: o bolsonarismo, a igreja evangélica, o crime organizado, o tiozão conservador – tudo aponta para o caminho unidimensional da aposta eleitoral de quem, até a pouco tempo atrás, criticava radicalmente o pavimentado caminho petista.

Esses movimentos populares que se fortaleceram fora e até mesmo em oposição ao PT, agora entram e se juntam ao governo, repetindo o que aconteceu com os movimentos sindicais e ligados ao PT há anos atrás. No entanto, o tempo político é outro. O horizonte da nova república que prometia mudanças radicais (para quem?), embora nunca implementadas, saiu completamente de cena. O que sobra então? Participar da gestão de um colapso em curso. É curioso que esse ciclo de lutas por moradia em Belo Horizonte tenha surgido em oposição feroz ao Programa Minha Casa, Minha Vida para, hoje, ver os mesmos movimentos defendendo a sua reedição. Os últimos anos significaram um rebaixamento radical dos horizontes políticos. O ápice parece ser eleger alguém.

A bem da verdade, não é tanta novidade assim. Há dez anos, era publicado aqui no Passa Palavra:

“Aquilo que até não muito tempo se podia chamar com certa benevolência de aliança tática pode hoje ser a porta giratória de entrada na malha institucional dos conselhos, conferências, consultas e audiências públicas etc., com os resultados, para a mobilização anticapitalista, que já conhecemos: pede-se nas lutas apenas aquilo que já se sabe certo, para dar às massas mobilizadas a impressão de que foi sua luta, apenas, quem fez avançar sua pauta, sem que soubessem que toda a pauta já vinha negociada de antemão.”[7]

Contradição? Os mesmos movimentos que diagnosticam o “fim da Nova República” estão agora ocupando as suas instituições? Talvez não, pois a própria constituição dos movimentos só pôde se realizar encalacrada pela forma social que se impôs.

Seja como for, a luta no contexto da Nova República colocou no centro de suas reivindicações a ideia de direito social como forma de contrastar e tensionar com a constituição da economia nacional-dependente baseada nos vários dispositivos espoliativos[8]. O direito como contrapeso à espoliação[9]. Contudo, fez isso mantendo o caráter liberal da noção de direito (há outro caráter para o direito?), o que só pode constituir, no final das contas, um sujeito proprietário-consumidor-usuário. Afinal, este é o espírito do tempo neoliberal.

Seja pela “arquitetura do possível”[10] da autoconstrução ou pela luta por direitos[11], os movimentos das ocupações urbanas se amoldam aos novos tempos. A ideia dos movimentos sempre foi partir de uma pauta concreta “dos de baixo” para politizar e, assim, disputar a hegemonia da sociedade. A questão da moradia, pela sua inércia histórica e centralidade na reprodução social das pessoas e suas famílias, parecia ser uma pauta fundamental. Contudo, os movimentos não imaginavam que seriam “hegemonizados” pelas forças impessoais do capital.

Meios e fins das organizações políticas foram dominados por uma certa concepção de ação que desembocou no pragmatismo eleitoral. Rumo inexorável tributário da necessidade de massificação, mobilização dos movimentos populares. Ora: mobilizar muitas pessoas é também mobilizar muitos votos. Com isso, os repertórios foram se aproximando, cada vez mais, até o ponto de indistinção, das práticas que esses mesmos movimentos criticavam. Uma nova face da confluência perversa[12]? Como notam Isadora Guerreiro e André Dal’Bó da Costa[13], “nos últimos 30 anos, foi a legitimação e incorporação de determinados repertórios e práticas, que passaram a ser mobilizados com outra significação e consequência social”.

O sujeito portador de direitos, convertido ao sujeito proprietário-consumidor. Afinal, ele consome a mercadoria casa e é proprietário do seu título de eleitor. A demanda por moradia já não é usada como um meio para a politização. Quando enquadrada e normatizada pela institucionalidade da política habitacional, ela apenas pode repor esse mesmo circuito do direito liberal como parte de um processo de acumulação. E, dessa maneira, lutar por direito se transforma em um dispositivo de campanha eleitoral.

Notas

[1] Passa Palavra. 2014. Dilemas da luta por moradia. Parte I, II, III. Passa Palavra.

[2] Robert Kurz. 2014. Dinheiro sem valor: linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política. Lisboa: Antígona.

[3] Fernando Henrique Cardoso. 1997. Economia cria “inempregáveis”. Folha de São Paulo, 08 abril 1997.

[4] Marildo Menegat. 2013. Unidos por catástrofes permanentes: o que há de novo nos movimentos sociais da América Latina. Anais. VII Simpósio Nacional Estado, Poder e Sociedade Civil. Niterói: UFF.

[5] Passa Palavra. 2014. Dilemas da luta por moradia. Parte III. Passa Palavra.

[6] Eder Sader. 1988. Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores na Grande São Paulo (1970-80). São Paulo: Paz e Terra.

[7] Ibidem.

[8] André Dal’Bó da Costa & Isadora Guerreiro. 2020. As ocupações urbanas na macrometrópole paulistana: da potencialidade política ao amoldamento neoliberal. In: Thiago Canettieri; Marina Sanders Paolinelli; Clarissa Cordeiro Campos; Rita Velloso. (Orgs.). Não são só quatro paredes e um teto: uma década de luta nas ocupações urbanas da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Cosmópolis.

[9] Francisco de Oliveira. 1998. Os direitos do antivalor.

[10] Ermínia Maricato. 1979. Autoconstrução, a arquitetura do possível. In: Ermínia Maricato (Org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil Industrial. São Paulo: Alfa Omega.

[11] José Geraldo de Sousa Júnior. 1987. O Direito Achado na Rua. Brasília: Universidade de Brasília.

[12] Evelina Dagnino. 2004. Construção democrática, neoliberalismo e participação: os dilemas da confluência perversa. Política & Sociedade, n.5, outubro, pp.139-164.

[13] André Dal’Bó da Costa & Isadora Guerreiro. Idem, p. 407.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here