Por Thiago Canettieri

Como sobrevivem cotidianamente os trabalhadores sem trabalho que residem nas periferias metropolitanas? Há algum tempo venho tentando refletir sobre essa questão. Apesar dos índices oficiais divulgados com tons alvissareiros, a realidade numa periferia não demonstra tanto sinal de otimismo com os rumos do mundo do trabalho. Apesar da alta histórica do emprego, as taxas de subutilização da força de trabalho (inclui a taxa de desocupação, taxa de subocupação por insuficiência de horas e a taxa da força de trabalho potencial – que não estão em buscando emprego, mas estariam disponíveis para trabalhar) não abrem espaço para otimismo. Embora tenha um comportamento declinante desde os anos da pandemia (impulsionada, sobretudo, pela “empregabilidade” produzida pela uberização), a taxa de subutilização da força (15,2%) de trabalho chega há mais do que o dobro da taxa de desocupação (6,2%), segundo dados relativos ao quarto trimestre de 2024 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE.

Observando essa realidade em campo numa periferia de Belo Horizonte desde 2021 [1], acompanho como muitas pessoas transitam nas linhas tênues que separam o emprego do desemprego, o formal do informal, o legal do ilegal [2], numa condição de enorme transitividade [3], colocando em xeque categorias estanques e engessadas.

Assim, com foco, como falei, nos trabalhadores sem trabalho, penso que é possível compreender um conjunto de transformações importantes na realidade das grandes metrópoles brasileiras: como se organiza a vida cotidiana? Como garantem a reprodução? Quais são os efeitos nas formas de organização e de luta política? Afinal, o trabalho sempre funcionou como um organizador importante para essas três esferas, atuando como um atrator das expectativas. Sem esse lastro, como compreender essa realidade?

No atual contexto de crise, como escreveu Veronica Gago [4], “o salário deixa de ser garantia privilegiada da reprodução”. Analisar a dinâmica de reprodução social nas periferias, portanto, pode ser um meio para compreender os (des)caminhos do capitalismo como um todo. Afinal, a produção daquilo que Michael Denning [5] chamou de “vida sem salário” não é necessariamente uma condição nova, mas uma condição que ganha cada vez mais importância à medida que avança a crise da sociedade do trabalho.

As dimensões do trabalho e do salário estão sendo reconfiguradas. Ainda que não tenham desaparecido desses territórios, nas últimas décadas tornaram-se flagrantes os modos de sobrevivência e reprodução a partir de uma combinação de estratégias que envolvem programas de assistência (formais ou informais), empreendimentos comunitários, endividamento (legais e ilegais), práticas rentistas, economias ilícitas e ações associativas. São estratégias para que os trabalhadores sem trabalho consigam algum dinheiro — afinal, ter dinheiro é condição necessária para sobreviver no mundo da mercadoria, como bem sabemos.

Novos conflitos surgem com novas fronteiras que separam os diferentes regimes de normatividade que regulam a vida cotidiana nas periferias. Essa coexistência de diferentes regimes de normatividade [6] e estratégias de reprodução tensiona constantemente com as lógicas formais, estatais e de mercado, sem, no entanto, opor-se, ou seja, a relação ocorre mais por complementaridade do que por oposição.

Deste modo, pensar os modos de reprodução dos trabalhadores sem trabalho, a meu ver, abre um espaço importante para refletir também sobre a política. Em especial, se lembrarmos que o mundo do trabalho ofereceu, durante muito tempo, a régua e o compasso para pensar a política. Ainda que no Brasil, sua origem colonial e escravocrata, tenha limitado radicalmente o horizonte de expectativas da classe trabalhadora pós-abolição, era pelo trabalho que a emancipação parecia ser possível [7]. O período varguista foi responsável por incutir na forma do trabalho uma certa expectativa de inclusão cidadã, que parecia orientar a ação política [8]. Mesmo uma posição revolucionária ficou, durante muito tempo, presa ao invólucro da forma-trabalho, assumindo esse ponto de vista como o ponto da crítica [9] (e não uma crítica da relação capital-trabalho).

A dissolução do trabalho resultante da crise imanente do capital obriga a uma reconfiguração. Por exemplo, para dar conta dessa transformação, Chico de Oliveira [10] passa a falar de “trabalho-sem-forma” para fazer referência à crise do trabalho informado diretamente pelo fordismo. Entretanto, podemos assumir aqui que não é apenas o trabalho que está sem forma, mas é a forma mesma do trabalho que entra em declínio [11]. Nesse contexto, os mapas políticos que existiam também começam a falhar. Como escreveram Um grupo de militantes na neblina [12], “Num tempo em que as respostas prontas para a velha pergunta ‘o que fazer?’ naufragam em meio ao nevoeiro, é preciso desconfiar dos mapas já traçados e explorar o entorno com atenção”. A unidade política esperada que era dada pelo trabalho já não funciona tanto [13].

Longe de querer dar respostas aos questionamentos, quero compartilhar alguns dos efeitos “políticos” que tenho observado em meu campo de pesquisa sobre os trabalhadores sem trabalho.

O primeiro deste efeito é uma individualização do projeto de classe. A expectativa de melhoria não é experimentada como algo coletivo, mas individualizado. Toda a narrativa em torno dos microempreendimentos, que faz ecoar a racionalidade neoliberal, é um indicativo disso. Frequentemente, interlocutores atribuem a capacidade de “melhorar de vida” única e exclusivamente ao empenho que conseguem imprimir na ralação cotidiana que estão sujeitos. Mesmo que exista aí nuances entre o sofrimento e a utopia, como bem nota Henrique Costa [14], eu diria que até essa estratégia entra em declínio. Já se começa a se perceber que não é possível contar apenas com o esforço, o suor e o mérito individual de cada um, mas também é preciso um golpe de sorte – talvez daí seja possível extrair uma leitura para o fenômeno das bets e dos cassinos on-line, no Brasil (e, sobretudo, em suas periferias).

Nas narrativas dos meus interlocutores a expectativa de um futuro com progresso e melhoria é substituída por uma certa resignação com o estado de coisas, muitas das vezes se valendo de uma gramática religiosa para explicar (e suportar) a condição que se vive. Essa frustração com uma promessa de ascensão social ou mesmo de transformação é um caminho, me parece, para compreender o contexto político contemporâneo, que possui uma estrutura apocalíptica até [15].

Trata-se de uma dinâmica de “declínio da ascensão”, ou seja, a expectativa de um horizonte de ascensão social se torna cada vez mais fechada e restrita, produzindo toda sorte de efeitos subjetivos e objetivos na reprodução social dessas famílias. A desclassificação social produzida pela crise e que obriga os sujeitos periféricos a experimentarem o encurtamento das suas expectativas em relação ao assalariamento também redunda em dessolidarização, o que acaba produzindo a circulação de um afeto de desânimo com a situação política contemporânea. Essa dessolidarização, embora generalizada, reproduz marcadores de raça e gênero, reforçando opressões históricas, mesmo no interior da classe trabalhadora sem trabalho.

Esse modo de interpretação revela a estrutura fraturada da posição política das periferias que não pode ser interpretada de modo monolítico. A maneira como os indivíduos interpretam suas condições objetivas de reprodução social varia de acordo com as experiências de vida e de seus laços sociais. Parece-me que, enquanto expressão das condições de reprodução material da vida, os discursos políticos também se tornaram mais fragmentados e diversos nas periferias urbanas do Brasil [16]. Assim, os vários modos de reprodução social crítica podem ajudar a compreender também o cenário político nesses territórios, pois a narrativa legitimadora que produzia uma pretensa unidade baseada no trabalho foi substituída por mil e uma virações que dificultam o compartilhamento de experiências, promovendo a fragmentação política.

Notas

[1] Thiago Canettieri. Periferias, reprodução social crítica e urbanização sem salário (Cosmópolis, 2024).

[2] Vera Telles. A cidade nas fronteiras do legal e do ilegal (Argvmentvm, 2011).

[3] Teresa Caldeira. Transitoriness: emergent time/space formations of urban collective life. In: Ash Amin & Michele Lancione. Grammars of the Urban Ground (Duke University Press, 2022).

[4] Veronica Gago. A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular (Elefante, 2018), p.10

[5] Michael Denning. Wageless life. New Left Review, n.66, pp.79-97, 2010.

[6] Gabriel Feltran. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo (Unesp, 2011).

[7] Lúcio Kowarick. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. (Brasiliense, 1987)

[8] Adalberto Cardoso. A construção da sociedade do trabalho no Brasil: uma investigação sobre a persistência secular das desigualdades (Amazon, 2014).

[9] Moishe Postone. Tempo, trabalho e dominação social (Boitempo, 2014).

[10] Francisco de Oliveira. Crítica da razão dualista | O ornitorrinco (Boitempo, 2003).

[11] Aqui valeria uma longa digressão sobre a diferença da minha formulação “trabalhadores sem trabalho” e do Chico de oliveira sobre “os que trabalham, mas não são trabalhadores” (Passagem na neblina, in: Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo, Fundação Perseu Abramo, 2002, p.17). Sem espaço para tal empreendimento, gostaria de enfatizar apenas que, para mim, a noção de trabalho está colada necessariamente à forma do trabalho abstrato e, portanto, da valorização do valor. Se uma determinada atividade humana não produz valor, portanto, não é exatamente trabalho, ainda que, continuem dependentes de vender sua força de trabalho para sobreviver (ou seja, são trabalhadores, mas sem conseguir vender sua força de trabalho). Para Chico, por outro lado, toda atividade parece ser trabalho, mesmo que essa atividade não produza o efeito de agregação que a ideia de “trabalhadores” carrega. Ambas as expressões, portanto, designam algo semelhante, mas visto de pontos de vista teóricos distintos.

[12] Um grupo de militantes na neblina. Incêndio: trabalho e revolta no fim de linha brasileiro (2022, p.07). Conferir também o texto “Sob neblina, use luz baixa e não pare”, de Isadora Guerreiro para este site.

[13] Uma reflexão bastante original sobre isso foi desenvolvida por Bruno Siqueira Fernandes. As corpo-políticas da produção do espaço: ensaios lefebvreanos sobre espaço, reprodução e política. (Tese. Doutorado em Geografia, UFMG, 2024).

[14] Henrique Costa. Um lugar ao sol: utopia e sofrimento no empreendedorismo popular paulistano (Tese. Doutorado em Ciências Sociais, USP, 2022).

[15] Vale conferir a vídeo-montagem realizada pelo Grupo de desorientação política “Sorriso amarelo”.

[16] Matthew Richmond. Narratives of crisis in the periphery of São Paulo: place and political articulation during Brazil’s rightward turn. Journal of Latin American Studies, v.52, n.2, pp.241-267, 2020.

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