Por Fagner Enrique

 

Nota: O artigo abaixo diz respeito ao julgamento de uma ação de habeas corpus por um dos tribunais superiores brasileiros, onde foram aplicadas a legislação, a doutrina penal e processual penal e a jurisprudência brasileiras. Portanto, sempre que necessário, farei breves esclarecimentos que permitirão ao leitor leigo ou estrangeiro entender do que se trata.

 

No início de fevereiro deste ano, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça do Brasil (STJ) foi muito comemorada pela esquerda brasileira e, em particular, pelo movimento negro. Trata-se do julgamento do habeas corpus929.002, onde um homem negro, acusado de injúria racial por um homem branco, pedia o trancamento do processo penal movido contra ele no Estado do Alagoas.

O habeas corpus tem existência praticamente universal, pelo menos nos países de tradição democrático-liberal. No Brasil em particular, ele é definido como uma ação judicial, prevista na Constituição e no Código de Processo Penal, que serve para pleitear a concessão de uma ordem, denominada “ordem de habeas corpus” ou writ, emitida por um juiz ou tribunal para fazer cessar violência ou coação, atual ou iminente, contra a liberdade de ir e vir de uma pessoa. Por isso, o habeas corpus é comumente definido como um “remédio constitucional”. No Brasil, a ação de habeas corpus pode ser utilizada em inúmeras situações, inclusive para requerer o trancamento (ou extinção anômala) de um inquérito policial e o trancamento de um processo penal, isto é, sua extinção sem resolução do mérito, quer dizer, sem que o juiz ou tribunal cheguem a analisar a procedência ou não da acusação. Esse trancamento é excepcional: segundo a doutrina e a jurisprudência brasileiras, é preciso demonstrar, de maneira inequívoca, que a conduta do acusado é atípica (não configura crime); que existe alguma causa excludente de ilicitude, culpabilidade ou punibilidade, que possa ser reconhecida sem necessidade de dilação probatória; ou que não há justa causa para a ação penal (indícios mínimos de autoria e materialidade do crime).

Feitos tais esclarecimentos, vamos aos fatos discutidos no processo original, em que o homem negro foi acusado de cometer injúria racial.

Em todo processo penal temos a vítima, de um lado, e o acusado, de outro, salvo nas hipóteses de crime sem vítima. Pois bem. Antonio, um idoso branco de origem italiana, é a vítima, e Italo, um homem negro de 36 anos, é o acusado. Italo é parente de Adna, ex-companheira de Antonio. Esta teria pedido a Antonio que abrigasse Italo, seu sobrinho recém-saído da prisão, pedido que foi atendido por Antonio. Algum tempo depois, Italo teria começado a extorquir Antonio, que resolveu vender-lhe uma parte do terreno onde vivia. A venda do terreno não teria posto fim às desavenças e Italo teria iniciado uma série de xingamentos, ameaças e difamações contra Antonio e sua família. Por fim, em julho de 2023, Italo teria enviado uma mensagem ao celular de Antonio, dizendo que ele teria uma “cabeça europeia branca escravagista”.

Não vou entrar no mérito da ação, pois não tenho condições, nem muito menos a pretensão de analisar as alegações das partes e as provas apresentadas. Me limitarei a analisar a hipótese submetida à apreciação do STJ, isto é, se insultos raciais cometidos por pessoas negras, direcionados a pessoas brancas, são atípicos (não configuram crime).

Racismo estrutural?

O crime do qual Italo foi acusado é o crime de injúria racial, que era tipificado, na época dos fatos, no § 3º do art. 140 do Código Penal brasileiro, na redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003:

 

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. […] § 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de um a três anos e multa.

 

Atualmente, o crime de injúria racial não mais se encontra tipificado no Código Penal, e sim na Lei nº 7.716, de 1989, que define os crimes de racismo no Brasil. A Lei nº 14.532, de 2023, inseriu o art. 2º-A na Lei nº 7.716, cuja redação é praticamente a mesma, exceto pela menção à religião, que foi removida e mantida em separado na atual redação do art. 140, § 3º, do Código Penal. A pena, por sua vez, foi aumentada de 1 a 3 anos de detenção para 2 a 5 anos de reclusão, com previsão de causa de aumento de pena (em ½) se a conduta for praticada por duas ou mais pessoas em concurso.

A denúncia contra Italo, oferecida pelo Ministério Público, foi recebida pelo juiz da 1ª Vara Criminal de Corupipe (Alagoas), o que significa que a instauração do processo penal foi admitida, devido ao preenchimento dos requisitos legais e à ausência de fundamento para a extinção do processo sem resolução do mérito. Aqui se faz necessária uma observação: no direito processual penal brasileiro, não há previsão legal de recurso contra a decisão do juiz que recebe a denúncia. Resta ao acusado uma única alternativa: impetrar habeas corpus, endereçado, segundo as regras de competência vigentes, ao Tribunal de Justiça (nome dado aos tribunais estaduais brasileiros), ao Tribunal Regional Federal (nome dado aos tribunais federais brasileiros, distribuídos não por estados, mas por “regiões”) ou a um dos tribunais superiores. Nesses tribunais, os julgamentos são conduzidos por um colegiado de magistrados denominados desembargadores ou, no caso dos tribunais superiores, ministros. Nesse caso, o acusado deve requerer a concessão de ordem de trancamento do processo penal. Foi exatamente o que aconteceu.

Mas quais foram os fundamentos do pedido de trancamento do processo penal? Vários, mas o decisivo foi a alegação de atipicidade da conduta (os insultos raciais cometidos por Italo contra Antonio não configurariam crime de injúria racial, porque Italo é negro). O argumento é o seguinte: um negro não pode praticar injúria racial, pois a injúria racial é uma espécie do gênero racismo, e o racismo, por sua vez, é uma estrutura onde os negros ocupam uma posição subordinada. Logo, um negro não pode praticar o crime de racismo, pois o racismo estrutural coloca os brancos (sempre) em posição de poder e os negros (sempre) em posição de subordinação. Os crimes de racismo seriam, portanto, um conjunto de práticas delitivas tendo por objetivo conservar essa estrutura opressiva, cuja função é manter os brancos, e não os negros, em posição privilegiada.

O argumento é falho em todos os sentidos.

Racismo estrutural?

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Em primeiro lugar, é mais do que evidente que o racismo não tem cor.

O racismo é uma prática social. Toda prática social é uma relação social, e toda relação social é, pelo menos em última instância, uma via de mão dupla. O racismo só existe quando um grupo social cria formas de discriminação para favorecer sua ascensão ou supremacia social às expensas de um ou mais grupos sociais rotulados como raças inferiores. Esse grupo social tende a constituir a classe dominante numa dada sociedade, mas nenhuma dominação é absoluta. Por isso, a tendência é que os grupos dominados criem, nas brechas de autonomia e poder a seu dispor, outras formas de discriminação, direcionadas ao grupo racialmente privilegiado ou a outros grupos subalternos. No primeiro caso, trata-se de tentar inverter a relação de dominação estabelecida, enquanto no segundo trata-se de, mantendo intocada a estrutura racial em vigor, ascender socialmente às expensas de um terceiro grupo.

A tendência de reproduzir o racismo, no entanto, tende a ser neutralizada quando pessoas de diferentes grupos, que ocupam posições distintas e antagônicas na estrutura racial, estabelecem entre si relações de dependência recíproca e solidariedade, desde a camaradagem no âmbito das relações de trabalho ou a colaboração entre vizinhos, as solidariedades anônimas, passando por atividades culturais, festivas e desportivas, até relações íntimas de afeto e parentesco, e assim por diante, sem contar eventuais solidariedades políticas que possam transcender as estruturas de dominação. Mas como essas relações de interdependência e solidariedade nunca foram capazes de desestruturar completamente as hierarquias raciais, porque nunca foram capazes de desestruturar completamente as hierarquias sociais, o racismo sobreviveu como uma das práticas que permeiam o tecido social.

Ademais, a sociedade é dinâmica, não estática, quer dizer, existe algo a ser levado em consideração que é a evolução histórica das relações sociais. Nesse sentido, não é raro que, com o tempo, um grupo racialmente inferiorizado consiga inverter completamente a relação. A história não é feita apenas de permanências mais ou menos duradouras, mas também de mudanças, muitas vezes bruscas. E mais: num mesmo tempo histórico, convivem sincronicamente realidades díspares e contraditórias. Os oprimidos podem converter-se em opressores de seus antigos opressores, e em opressores de grupos ainda mais vulneráveis. A abundância de exemplos históricos está aí para quem quiser ver.

O racismo não é uma prática unilateral. O racismo sofrido por um grupo tende a se desdobrar no racismo que esse grupo impõe a outros grupos. A esquerda, no entanto, tende a ver o racismo dos oprimidos como uma manifestação de resistência, ao passo que os identitários o transformaram em projeto de poder. De um lado, miopia; de outro, estratégia. O que importa é que a reação racializada dos oprimidos nada mais é do que a reprodução do racismo do grupo opressor pelo grupo oprimido, no interior de um mesmo quadro.

Racismo estrutural?

Pretender, portanto, que um negro não possa ser racista contra um branco porque o racismo estrutural coloca o branco, sempre e invariavelmente, numa posição de poder, e o negro, sempre e invariavelmente, numa posição de subordinação é, no mínimo, um grande reducionismo.

Mas por que o STJ decidiu como decidiu? A resposta deve ser buscada em outro tribunal superior brasileiro, o Supremo Tribunal Federal (STF), e no meio universitário e acadêmico, hegemonizado pelo identitarismo.

 

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A injúria racial, de acordo com a jurisprudência do STF, é uma espécie do gênero racismo. Ou seja, obedece à mesma lógica. Até aí tudo bem. O problema é pegar emprestada uma definição de racismo proveniente do identitarismo: uma prática social que não pode ser praticada por grupos historicamente subordinados contra seus opressores históricos ou contra um terceiro grupo social.

Esse precedente — definir a injúria racial como espécie do gênero racismo, e o racismo como uma estrutura dominada exclusivamente pelos brancos — foi fixado no julgamento de outro habeas corpus, nº 154.248, oriundo do Distrito Federal e julgado pelo STF em 2021. Nessa ocasião, o STF aderiu totalmente à definição de racismo estrutural veiculada nos meios identitários. Inclusive, um dos autores utilizados pelo relator, ministro Edson Fachin, para fundamentar seu voto, foi Silvio Almeida, ex-ministro do governo Lula que em setembro do ano passado notabilizou-se por cair em desgraça, acusado de assédio sexual por Anielle Franco, outra ministra do atual governo. Silvio Almeida foi um dos principais divulgadores do conceito de racismo estrutural no Brasil, conceito hoje hegemônico no meio acadêmico e amplamente utilizado pelos movimentos identitários. Pois bem, foi partindo de referências teóricas do campo identitário que o ministro Fachin escreveu em seu voto que:

 

A injúria racial consuma os objetivos concretos da circulação de estereótipos e estigmas raciais ao alcançar destinatário específico, o indivíduo racializado, o que não seria possível sem seu pertencimento a um grupo social também demarcado pela raça. Aqui se afasta o argumento de que o racismo se dirige contra grupo social enquanto que a injúria afeta o indivíduo singularmente. A distinção é uma operação impossível, apenas se concebe um sujeito como vítima da injúria racial se ele se amoldar aos estereótipos e estigmas forjados contra o grupo ao qual pertence […] A atribuição de valor negativo ao indivíduo, em razão de sua raça, cria as condições ideológicas e culturais para a instituição e manutenção da subordinação, tão necessária para o bloqueio de acessos que edificam o racismo estrutural. Também ampliam o fardo desse manifesto atraso civilizatório e tornam ainda mais difícil a já hercúlea tarefa de cicatrizar as feridas abertas pela escravidão para que se construa um país de fato à altura do projeto constitucional nesse aspecto.

 

Foram lançadas, assim, as bases para que o STJ desse um passo além, definindo a injúria racial praticada por um negro contra um branco como conduta atípica, isto é, que não corresponde ao tipo penal e, portanto, não configura crime. Para o STJ, tal conduta poderia ser definida, no máximo, como injúria simples, mas não como injúria qualificada (racial). A injúria simples está tipificada no art. 140 do Código Penal brasileiro, que traz a seguinte definição:

 

Art. 140 – Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.

 

Tal decisão possui consequências mais graves do que à primeira vista possa parecer. A injúria simples consiste numa ofensa que atinge os atributos morais, físicos e intelectuais da pessoa. Portanto, mesmo que se reconheça a ofensa aos atributos físicos de uma pessoa branca por uma pessoa negra, essa ofensa não poderá ser classificada como uma modalidade de racismo. Além do mais, a pena cominada à injúria simples é muito mais branda, detenção de 1 a 6 meses, enquanto a pena cominada à injúria racial era, ao tempo dos fatos discutidos na 1ª Vara Criminal de Corupipe, reclusão de 1 a 3 anos, podendo hoje chegar a 7 anos e 6 meses. Ora, no direito penal, a pena consiste num juízo de reprovação social à conduta praticada pelo agente, que é de tal maneira lesiva aos bens jurídicos tutelados pelo ordenamento jurídico que esse mesmo ordenamento autoriza a privação de liberdade. Dessa maneira, o que o Estado brasileiro está dizendo é que o juízo de reprovação, a partir de agora, será consideravelmente menor se o autor do crime for negro e praticá-lo contra uma pessoa branca. Se acreditarmos na noção de prevenção geral da lei penal, isto é, que o direito penal tem a capacidade de exercer uma coação psicológica sobre o agente, demovendo-o da prática de crimes, a decisão do STJ terá o condão de estimular injúrias raciais de negros contra brancos, ante a certeza da impunidade ou de uma punição muito mais branda do que a que seria aplicada se os polos da relação fossem invertidos.

Não se pode perder de vista, ainda, a diferença entre rotular uma pessoa como autora de crime de injúria e rotulá-la como racista. No segundo caso, o peso é muito maior, muito mais danoso para o acusado, principalmente se levarmos em conta os linchamentos virtuais propiciados pela internet. Os brancos estarão submetidos ao processo de rotulação e “cancelamento”; os negros, em relação aos crimes de racismo, não. É claro que os negros costumam ser o principal alvo da rotulação social e as principais vítimas do poder punitivo (judicial e extrajudicial), o que ninguém nega, mas um Estado que atribui a si mesmo o “objetivo fundamental” de “promover o bem de todos” e combater todas as formas de discriminação (art. 3º, inciso IV, da Constituição brasileira) não deveria, evidentemente, estar criando condições favoráveis para tratamentos discriminatórios.

Além do mais, no Brasil os crimes de racismo são crimes de ação penal pública incondicionada, ou seja, o Ministério Público é, em regra, o titular do direito de ação, podendo denunciar aqueles que tenham praticado tais condutas sem necessidade de representação, isto é, de um requerimento formal da vítima, solicitando a instauração do processo penal. São também inafiançáveis e imprescritíveis, nos termos do art. 5º, inciso XLII, da Constituição. Desse modo, uma pessoa branca que cometa injúria racial contra uma pessoa negra estará sujeita a ser denunciada pelo Ministério Público a qualquer momento, podendo ser-lhe imposta uma pena maior do que a cominada ao homicídio simples (6 anos de reclusão). Por outro lado, uma pessoa negra, praticando a mesma conduta, poderá ser condenada por injúria simples, a uma pena privativa de liberdade que poderá ser substituída por penas restritivas de direitos (prestação pecuniária, interdição temporária de direitos, prestação de serviço à comunidade etc.), conforme preconiza o art. 44 do Código Penal brasileiro. Se a ação penal não for intentada contra ela no prazo de 6 meses, por queixa-crime ajuizada pela própria vítima, haverá extinção (decadência) do direito de ação, de modo que o autor do crime seguirá impune.

Portanto, considerar atípica a injúria racial quando cometida por negros contra brancos estimulará a criminalidade e a impunidade, algo que um tribunal deveria, em tese, procurar evitar. Além do mais, a decisão do STJ cria condições para a indignação e a radicalização do outro polo da equação: pessoas brancas que, sofrendo insultos racistas proferidos impunemente por pessoas negras, tenderão a reagir e reproduzir o racismo antinegro. A decisão proferida pelo STJ parece ter ignorado o fato de que o Brasil vem se radicalizando à extrema-direita já há alguns anos, e que a extrema-direita vem reabilitando o velho mito da “democracia racial” e tentando naturalizar o racismo explícito ou velado. A possibilidade de revitalização de antigos discursos sobre a supremacia branca, agora associados à noção de que os brancos vêm sendo cada vez mais injustiçados e oprimidos, é bastante real. Em vez da pacificação dos conflitos sociais, que é para o que servem — pelo menos de acordo com o discurso oficial — o direito e os tribunais, teremos uma radicalização dos conflitos sociais. A tentativa do STJ de ser politicamente correto, seguindo a linha do STF, como vimos acima, acabará estimulando o racismo, em vez de combatê-lo.

Observe-se que o STJ não procedeu a uma interpretação literal da lei penal. O antigo § 3º do art. 140 do Código Penal brasileiro dizia expressamente o seguinte: “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça”. Ou seja, em tese, o legislador tipificou como injúria racial qualquer ofensa, cometida por qualquer pessoa, contra qualquer pessoa, referindo atributos raciais. Ponto final. O problema é que o STF abriu um caminho que o STJ veio depois a trilhar. Primeiro houve a definição jurisprudencial do racismo como racismo estrutural, consagrando na jurisprudência a ideologia dominante na academia; depois houve a inserção da injúria racial nesse quadro, passando a ser definida como espécie de um gênero mais amplo. A liberdade com que o Judiciário tratou a matéria — sem remissões ao texto legal e recorrendo ao “estado da arte” da pesquisa acadêmica — foi o que propiciou a fixação da tese (absurda) de que só o grupo racialmente privilegiado, numa dada estrutura racial, pode praticar condutas racistas. Levando em consideração que o poder punitivo deve ser estritamente regulado pelo princípio da legalidade, a liberdade criativa dos tribunais superiores brasileiros é digna de espanto.

Racismo estrutural?

 

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No plano de fundo, temos um fato incontestável: os movimentos identitários foram muito hábeis em se apropriar da discussão teórica (acadêmica) sobre o racismo, de modo que os tribunais superiores acabaram buscando em representantes ideológicos do identitarismo as principais referências para a compreensão do fenômeno. O desejo de ser politicamente correto e a necessidade de proferir decisões aceitáveis para a comunidade acadêmica e para uma parcela muito ampla da opinião pública acabou unindo, de um lado, o Poder Judiciário e, de outro, os representantes ideológicos do identitarismo. Foi a junção da fome com a vontade de comer.

O Judiciário é hoje um dos protagonistas do debate político e está sujeito a um escrutínio cada vez maior da opinião pública. As decisões judiciais deixaram de dizer respeito aos interesses das partes envolvidas nos processos e passaram a viralizar constantemente nas redes sociais, sendo amplamente divulgadas na imprensa em geral e na imprensa especializada, o que está associado, do ponto de vista jurídico, ao fenômeno da hibridação dos institutos do direito romano-germânico (civil law) com os institutos do direito anglo-saxão (common law). Além do mais, os tribunais brasileiros, sobretudo o STF, converteram-se num dos alvos prioritários da extrema-direita e, em certos momentos, no porto seguro daquilo que restou da esquerda, domesticada para viver no conforto e sob a proteção das tutelas estatais. É claro que é do interesse dos tribunais que as decisões judiciais tenham aceitação social e legitimidade perante uma parcela expressiva da população. Quanto ao conteúdo das decisões judiciais, há de se notar que os tribunais têm seguido a mesma linha das grandes empresas, que vêm apostando nas políticas de responsabilidade social, ambiental e de governança como um impulso à produtividade. Essa ligação ao grande capital faz com que o Judiciário necessariamente vá buscar nas universidades os subsídios de que necessita para resolver conflitos sociais, tal como fazem as grandes empresas. O problema é que, no âmbito das ciências sociais, os trabalhos acadêmicos acabam referenciando sobretudo aquilo que é chancelado pelos departamentos universitários, o que cria um ciclo vicioso: a universidade se autorreferencia ideologicamente e fornece fundamentos teóricos para decisões proferidas pelas autoridades judiciárias, que acabam reforçando o prestígio dos referenciais acadêmicos adotados.

Já falamos da fome: falemos agora da vontade de comer. Os identitários pretendem hegemonizar os meios universitários e, a partir daí, pressionar por mudanças na distribuição de cargos e recursos financeiros no interior das empresas e dos órgãos governamentais. É evidente que decisões judiciais que conferem legitimidade à sua produção acadêmica e ao seu projeto político favorecem a empreitada. Outra linha de frente é a pressão sobre os legisladores, mas a lei muitas vezes adquire eficácia no caso concreto somente após um pronunciamento judicial favorável. Uma outra linha de frente é o terceiro setor, que entretanto também necessita de um marco legal e, eventualmente, de uma jurisprudência favoráveis. Atuando nessas três frentes, os identitários têm conseguido reestruturar as classes dominantes, provocando, no entanto, a reação daqueles setores da população que se viram prejudicados no processo, e que hoje depositam suas esperanças — já que não há outras, à esquerda — em figuras como Donald Trump.

Enfim, infelizmente parece não haver alternativas.

Estamos ilhados entre a estratégia de ascensão social dos identitários e a revitalização do velho supremacismo branco, numa versão anti-woke.

Racismo estrutural?

 

A arte em destaque é da autoria de Kathe Kollwitz (1867-1945). No corpo do texto, as quatro primeiras artes são da autoria de Francisco Goya (1746-1828). A última arte é da autoria de Marc Chagall (1887-1985).

8 COMENTÁRIOS

  1. Verum est, fateor cum gravitate: já não consigo discernir com segurança ontológica se me encontro, de fato, no escopo insurgente do Passa Palavra, esse locus originariamente consagrado à práxis autônoma e ao discurso combativo, ou se fui inadvertidamente trasladado — per lapsum mentis ou quiçá por força de um algoritmo capcioso — às venerandas páginas de órgãos doutrinários togados, a saber: Migalhas, Consultor Jurídico, ou o quase bizantino Jus Navigandi, onde o verbo, longe de mobilizar, paralisa; e a sentença, longe de interpelar, adormece.

    Eis que, com lastimável evidência, findou-se a era do vernáculo diáfano, do estilo corrente e comunicável, do verbo sem gravata. O Passa Palavra, outrora baluarte da clareza insurgente, precipitou-se sem rédeas no sorvedouro do bacharelismo togado. Tempora tristissima!

    O tema proposto — que, de per se, daria ensejo a prolixas e profícuas elucubrações — poderia mui tranquilamente ter sido desfiado sem violentar o sistema nervoso do leitor médio, este já acometido de cefaleia epistemológica ante tamanha torrente de vocábulos de nobre estirpe forense. O tema do escrito em questão — inflamável por natureza, passível de fomentar antagonismos reais e promover articulações combativas — foi objeto de um tratamento textual que beira o horror vacui.

    Ó miséria da forma! Aquele espaço — que, no alvorecer de seu empreendimento político-editorial, arrostava com admirável destemor as armadilhas do academicismo e os ardis do militantismo de gabinete — hoje se vê enredado nas malhas do latinório judicialesco, do hermetismo redacional e da prosápia bacharelesca de salão.

    O que era para ser pólvora virou parecer. O que era para ser palavra viva tornou-se relicário gramatical.

    A pena do autor, em vez de ser punhal, preferiu ser entalhe ornamental. O conceito, antes destinado à lida política concreta, foi sepultado sob camadas sucessivas de perífrases, subordinadas meândricas e tecnicismos jurídicos, expostos com tal volúpia que fariam corar de inveja um estadista do Império em pleno banquete oficial.

    O leitor, esse proletário do discurso, vê-se compelido a abandonar qualquer veleidade interpretativa autônoma para tornar-se intérprete exegético de um periérgico tratado de verbosidade militante. Não há argumento — há enfeite. Não há posição — há liturgia. A linguagem, em vez de se fazer veículo do dissenso, transmudou-se em filtro purificador da realidade, operando, com zelo farisaico, a assepsia política do conteúdo.

    E que ironia grotesca: quanto mais quente o tema, mais gelada a forma. A urgência do real jaz burocratizada. O conflito é convertido em doutrina. A política, esta sim, foi assassinada — não por seus inimigos declarados, mas por seus pretensos arautos, per excessum formae, com dolo eventual estilístico e premeditação barroca.

    Passa Palavra, que em tempos idos prometia circular a centelha, ora parece ocupar-se de encerar a lâmina. Onde antes se forjava a palavra como ferramenta de luta, agora se exibe o vernáculo como peça de museu. A linguagem — essa deusa iracunda — eclipsou o tema. A linguagem, ipse facto, asfixiou a discussão.

    Perdoe-se a franqueza, mas o debate jaz prejudicado ab initio. Prima facie, tudo convida à hipótese de que se trata de mais uma peça redacional fadada a fenecer em agonia lenta, esquecida nos escaninhos digitais da irrelevância — id est, admito que, após minha digressão presente, porventura haja algum espírito atento a essas minudências estilísticas, mas não se espera, a posteriori, qualquer desenlace mais substancial.

    Em suma: urge exorcizar esse espírito cartorial que, feito espectro togado, ronda e contamina a escrita política. Que da próxima feita se abandone o frasco de cristal e se beba diretamente da garrafa — pois não há revolução que sobreviva ao escrutínio de um revisor do STF.

    Fiat verbum, non ornamentum.

  2. O artigo analisa criticamente uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que determinou que um homem negro não poderia cometer o crime de injúria racial contra um homem branco. O autor argumenta que essa decisão, embora comemorada por alguns setores da esquerda, é perigosa e baseada numa interpretação equivocada do conceito de racismo estrutural.

    A Situação foi a seguinte: Um homem negro (Italo) foi acusado de injúria racial por ter enviado uma mensagem a um idoso branco (Antonio), chamando-o de “cabeça europeia branca escravagista”.
    A Ação Judicial transcorreu assim: A defesa de Italo entrou com um habeas corpus no STJ pedindo o trancamento (anulação) do processo, alegando que um negro não pode cometer injúria racial contra um branco. A lógica é que a injúria racial é uma forma de racismo, e o racismo é um sistema de opressão estrutural no qual os brancos estão em posição de poder e os negros, de subordinação. Portanto, um membro do grupo oprimido não poderia praticar racismo contra um membro do grupo opressor.

    O STJ acatou o argumento e considerou a conduta “atípica”, ou seja, não se enquadra no crime de injúria racial. A ofensa poderia, no máximo, ser considerada injúria simples (um crime muito mais brando). Essa decisão do STJ seguiu uma linha de pensamento já estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que definiu a injúria racial como uma modalidade do crime de racismo.

    O autor aponta que os tribunais se basearam em teorias acadêmicas ligadas ao identitarismo, popularizadas por autores como Silvio Almeida, que definem o racismo como uma estrutura de poder que só pode ser exercida pelo grupo dominante (brancos). Fagner discorda fortemente da decisão e da lógica por trás dela, apresentando os seguintes argumentos: a) o Racismo não tem cor: O racismo é uma prática social que pode ser exercida por qualquer pessoa ou grupo contra outro. Embora exista uma estrutura dominante, os grupos oprimidos também podem reproduzir lógicas racistas contra o grupo dominante ou contra outros grupos minoritários. b) a decisão cria um tratamento desigual perante a lei, onde um branco que comete injúria racial contra um negro responde por um crime grave, inafiançável e imprescritível, enquanto um negro que comete o mesmo ato contra um branco responde por um crime leve (injúria simples), com pena branda e que prescreve rapidamente. c) isso estimularia a impunidade e o conflito, pois essa brandura da lei para um dos lados pode estimular mais ofensas e gerar um sentimento de injustiça no outro polo, alimentando a radicalização de grupos de extrema-direita e supremacistas brancos, que se sentiriam “vítimas” de um sistema que os desfavorece. d) o Judiciário estaria ignorando a lei, que define injúria racial com base nos “elementos referentes a raça”, sem especificar quem pode ser o autor ou a vítima. Em vez disso, o Judiciário teria feito uma “interpretação criativa” baseada em uma ideologia acadêmica específica.

    A PARTE MAIS INTERESSANTE DO ARTIGO:
    O autor conclui que essa decisão é resultado de uma aliança ou confluência de interesses entre o Judiciário, que busca parecer progressista e ganhar legitimidade social, especialmente em um momento de ataque da extrema-direita, e os movimentos identitários, que usam a academia para influenciar decisões judiciais e políticas, visando maior poder e redistribuição de recursos.
    O resultado final dessa adoção ao politicamente correto é perigoso: a sociedade fica presa entre uma “estratégia de ascensão social dos identitários” e uma “revitalização do supremacismo branco” em reação, sem espaço para um debate mais equilibrado.

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    Para além da do identitarismo estar sendo capaz de se consolidar judicialmente, o que por si só poderia render muitos debates, acho que a principal questão que o autor propõe debater é a noção de “racismo reverso”, ou seja, a possibilidade de uma pessoa negra ser racista contra uma pessoa branca.

    Pelo que entendo os principais argumentos contrários a essa ideia baseiam-se na distinção entre preconceito individual e racismo como um sistema de poder estrutural e histórico. A ideia do Racismo como sistema “estrutural” de poder é a de que o racismo não se resume a atos isolados de discriminação ou preconceito, sendo antes e mais profundamente um sistema de opressão em que um grupo racialmente dominante detém o poder institucional, econômico, político e cultural para subjugar e marginalizar outros grupos. Nesse sentido, pessoas negras, por não ocuparem majoritariamente essas posições de poder na sociedade, não teriam a capacidade de exercer o “racismo” de forma sistêmica contra pessoas brancas. Mas então o que seria aquele ato citado no artigo? Seria preciso diferenciar Preconceito e Racismo. Qualquer indivíduo, de qualquer cor ou “raça” ou etnia, pode nutrir preconceitos ou cometer atos de discriminação contra outro indivíduo. No entanto, para que esses atos sejam classificados como racismo, eles precisariam estar inseridos em uma estrutura social que os valide e reforce, causando prejuízos sistemáticos a um grupo. Uma ofensa de uma pessoa negra a uma branca, como no caso do artigo, embora possa ser um ato de preconceito e deva ser combatida, não se beneficia de um sistema que historicamente oprime a população branca, por isso não seria um ato “racista”.

    De fato, a discriminação racial contra negros é fruto de um longo processo histórico de escravidão, segregação e negação de direitos que moldou as estruturas sociais e as desigualdades presentes até hoje. O “racismo estrutural” se manifestaria na maior taxa de encarceramento da população negra, na menor representatividade em cargos de liderança, na abordagem policial violenta e em diversas outras áreas etc. E também não se pode negar que não existe um sistema análogo que historicamente tenha oprimido e continue a oprimir sistematicamente a população branca.
    Outro argumento forte diz respeito ao fato de que as consequências do racismo para a população negra são devastadoras e se refletem em todos os indicadores sociais, desde a expectativa de vida até a renda média, enquanto a discriminação que uma pessoa branca pode eventualmente sofrer, não teria, em tese, o mesmo impacto em sua vida e em suas oportunidades, pois ela não faz parte de um grupo historicamente marginalizado.

    Por concordar com essas teses, confluentes com a ideologia identitária, em fevereiro de 2025, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em uma decisão unânime, firmou o entendimento de que não existe “racismo reverso” no âmbito jurídico [[https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2025/04022025-Racismo-reverso-STJ-afasta-injuria-racial-contra-pessoa-branca-em-razao-da-cor-da-pele.aspx]], reforçando a tese de que o crime de racismo pressupõe uma relação de poder e opressão histórica. Portanto, embora atitudes preconceituosas de pessoas negras contra brancas possam e devam ser repudiadas, elas não se configuram como “racismo reverso” por não estarem amparadas por uma estrutura de poder que as legitime e as torne um instrumento de opressão sistêmica.

    A questão é bem complexa, pois não se pode negar a tese de Fagner, de que está havendo uma violência a alguns princípios jurídicos, como por exemplo o princípio da isonomia (todos são iguais perante a lei), com consequências políticas diretas no sentido de fortalecer os dois identitarismos, o branco e o negro.

  3. Fagner,
    A tirada irônica do Galhardo ao seu texto é ótima, mas o problema é mais do que a forma: o recurso ao juridiquês encobre (ou talvez esteja justamente ligado) a um conteúdo muito frágil. Usando o jargão marxista, eu diria que é um texto imerso na ideologia. Não há crítica do direito, nem da raça — isto é, ele normaliza tanto os termos da justiça burguesa e a noção de que existem raças, perdendo de vista que ambos são construções históricas deste mundo que vivemos hoje (o capitalismo). Sem a história — mais exatamente, a luta de classes — na análise, a crítica ao identitarismo se reduz a termos liberais/republicanos (cuja linguagem técnica é a jurídica).
    Deixo esse comentário mais pela sensação melancólica de que a crítica ao identitarismo que travamos no Passa Palavra na década passada, que demarcou linhas no chão que foram muito importantes para a militância que vivia o refluxo de 2013, foi deixando escapar seu conteúdo crítico. Para precisar melhor o problema, me chama atenção o desenvolvimento, de lá pra cá, de tendências ditas “anti-identitárias” no debate público mais geral — especialmente na esquerda, com viés mais populista/nacionalista (tipo Nildo Ouriques); e na centro/direita, com viés mais liberal (tipo Antônio Rísero). Este texto, a meu ver, corresponde ao segundo viés, assim como boa parte dos últimos escritos sobre o tema que apareceram aqui no site. No entanto, entendo que uma posição anti-identitária elaborada a partir da luta de classes não deveria se confundir com nenhuma dessas duas tendências. Escrevo este comentário mais pela inquietação, por acreditar que precisa ser possível fazer uma elaboração efetivamente crítica do racismo, do direito e das identidades. Aproveitando a síntese do Galhardo, talvez o primeiro passo pra investigar o problema seja olhar pra pólvora ao invés dos pareceres.
    Abraço

  4. Galhardo lacrou, Caio gostou, mas ambos não gostaram do conteúdo e da forma do texto e gostariam que fosse outra coisa, escrita de outra forma. Ora, escrevam então…

    Da minha parte, não me deixo levar pela ilusão que embala quem acredita que a fagulha da revolução sairá da ponta de uma caneta, então deixo a discussão sobre a pólvora para os comentadores acima.

    Meu interesse foi situar a discussão, que ocorre no plano jurídico, para um público muito mais amplo, não necessariamente acostumado com a linguagem jurídica.

    O interessante é que o foco central do artigo é a crítica da decisão de um tribunal. Caio, no entanto, leu o texto – bem ou mal – e não viu crítica ao direito. Paciência… Também não viu luta de classes, nem definição do racismo como construção histórica. Novamente, paciência…

    * * *

    Pablo,

    É justamente isso o que eu penso: há uma convergência entre a norma jurídica, tal como vem sendo gestada pelos tribunais, e um setor do identitarismo, o que estimula a reação do outro setor e impacta diretamente sobre a classe trabalhadora (fator de divisão interna) e sobre a luta que ela trava (abertamente ou de maneira latente) contra ambos os setores (um que promove a ascensão de uma nova burguesia e tecnocracia e outro que reage a essa ascensão e tenta exercer um poder de obstrução).

  5. Não vejo sentido nessa reivindicação de um racismo reverso, ou seja, negar toda construção histórica do conceito de raça, e o naturalizar, como se de fato existisse raça. Esse texto realmente me preocupa por nada ter de uma crítica estrutural ao direito. Ao contrário, o autor, ao tentar “combater” o identitarismo com a ideia de um sujeito jurídico, apenas reforça essa abstração de uma igualdade perante a lei. Fagner tenta criticar o identitarismo, mas cai ele próprio na armadilha do legalismo burguês. Reafirmar a ideologia da igualdade formal e ignorar a função histórica do racismo na reprodução do capital é recair em um juridicismo liberal. Por fim, um debate que não serve para nada a não ser que se queira negar que raça é uma construção histórica, e aí acho que teríamos um problema ético né.

  6. Esse último comentário é realmente engraçado, porque foram justamente o “legalismo burguês” e o “juridicismo liberal” que acabaram de incorporar e de se pautar pela ideologia identitária. Saindo em defesa do “racismo estrutural”, com todos os negacionismos que isso envolve, e inclusive apelando para os orixás, a pessoa que comentou acima acolheu o mesmo direito burguês que, em sua opinião, deveria ter sido alvo de uma “crítica estrutural”. Um primor de coerência.

    * * *

    Acrescento ainda outra coisa: a análise de Marx, sobre como a igualdade jurídica serve para escamotear a exploração econômica, é útil para explicar as relações entre classes sociais, mas não serve para analisar o racismo enquanto construção social, pois o resultado é igualar conflitos raciais a antagonismos de classe. Dito de outra forma, projetar a análise de Marx sobre a luta de classes em conflitos ocorridos no interior de hierarquias raciais – que são sim uma construção histórica, o que foi expressamente reconhecido no texto – tem como consequência estimular conflitos entre os membros de uma mesma classe social. A consequência é abdicar da revolução social.

    Por fim, é interessante como, nesse tipo de discussão, o caráter abstrato da ideia de igualdade seja sempre denunciado como ideologia burguesa e certamente algo muito nefasto, quando é justamente a capacidade de abstrair e de não atribuir características sociais ou culturais (positivas ou negativas) a características biológicas que cria condições para a neutralização do racismo e a construção da solidariedade de classe.

    Mas tudo bem, eu entendo. Para que se mantenha a aparência de anticapitalismo é indispensável a profissão de fé marxista, denunciando o caráter burguês do direito (quando convém).

  7. Acho que a questão mais urgente a se pensar é o inegável processo de absorção burguesa e jurídica dos valores identitários, o que serve de termômetro para reconhecermos a hegemonia política desse grupo e dessa ideologia e indica os caminhos das lutas sociais nos próximos tempos, com reforço dos identitarismos e enfraquecimento do pouco que há de bom no universalismo burguês, e que foi resultado de séculos de luta dos trabalhadores. A questão não é o recuo para o legalismo burguês e sim o reconhecimento do quão problemático é estarmos em uma conjuntura em que esse legalismo está sofrendo alterações para pior, ao invés de ser superado em sua mesquinharia formal-burguesa.

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