Por Arthur Moura
A crítica ao modelo “influenciador” como forma de neutralizar a radicalidade é indispensável, mas não pode ser feita de modo mecânico. Se afirmarmos que toda presença nas plataformas digitais já está, de antemão, totalmente capturada pelo espetáculo, caímos em um determinismo que apaga a dimensão da contradição. Isso seria um erro semelhante ao do reformismo, que acredita ser possível usar o Estado burguês contra a dominação de classe. O Estado, por sua própria natureza, não pode ser transformado em instrumento de emancipação; ainda assim, suas estruturas não são homogêneas e podem ser atravessadas por tensões quando a luta de classes irrompe. Essas contradições, porém, não mudam sua essência repressiva, apenas revelam sua fragilidade momentânea. O mesmo ocorre com o espaço digital: constituído pela lógica da mercadoria e do algoritmo, ele permanece parte do espetáculo, mas pode apresentar fissuras transitórias, que não devem ser confundidas com uma saída emancipatória. O problema central não é a ferramenta em si, mas a forma como, integrada ao espetáculo, ela molda a crítica em mercadoria e canaliza a rebeldia para dentro da ordem.
O que diferencia Jones Manoel não é apenas o fato de usar o YouTube ou o Twitter, mas o modo como seu projeto se organiza inteiramente dentro dessa lógica, adaptando conteúdo, estética e horizonte político às exigências do engajamento e da monetização. Uma crítica radical à forma-influenciador precisa, portanto, expor esse mecanismo sem cair no moralismo ou no tecnodeterminismo, apontando que o desafio real não é “usar bem” as redes, mas romper a dependência estrutural delas e rearticular a comunicação com formas de organização que escapem à lógica mercantil. É nesse ponto que se coloca a tarefa de construir circuitos alternativos de comunicação proletária, baseados em redes de solidariedade, imprensa independente radical e circulação material que não dependa do algoritmo. A questão é recolocar a comunicação como momento da organização, e não como carreira de indivíduos que se projetam no mercado da atenção.
Na conjuntura brasileira de 2025, essa função ganha uma centralidade ainda maior. O lulismo, embora tenha recuperado o governo federal, vive uma crise de legitimidade. Seu projeto de conciliação, fundado na promessa de administrar o capitalismo dependente com reformas sociais limitadas, está corroído tanto pela ofensiva permanente da extrema-direita quanto pelo desencanto de amplos setores populares diante da estagnação econômica e da continuidade da precarização. Ao mesmo tempo, a extrema-direita não se dissolve, mas se reorganiza em novas formas, disputando base social com pautas morais, securitárias e nacionalistas. Nesse cenário, o progressismo precisa renovar seus símbolos de legitimação. O PT já não consegue mobilizar o imaginário da juventude como nos anos 2000, e figuras tradicionais da esquerda perdem apelo.
Ao articular essas dimensões — a crítica dialética à forma-influenciador, as consequências práticas da vulgarização e a atualização da conjuntura — fica claro que Jones Manoel é menos uma figura isolada e mais uma engrenagem fundamental na reprodução do progressismo em crise. Ele funciona como mediador entre a tradição reformista do PCB, o aparato cultural do lulismo e a estética digital que organiza a juventude contemporânea. A função histórica de sua figura é neutralizar a possibilidade de que o marxismo volte a ser identificado com a revolução, mantendo-o no terreno da cidadania administrada. Contra essa lógica, a tarefa é resgatar a radicalidade em seu sentido pleno: organizar a autoatividade da classe, construir práticas de autogestão, romper com a chantagem do isolamento e afirmar que a crítica não é mercadoria, mas arma. O dilema segue posto com a mesma clareza de Rosa Luxemburgo: reforma ou revolução, socialismo ou barbárie. Enquanto figuras como Jones atualizam a reforma em chave digital, a barbárie avança. A única resposta real está em recolocar o marxismo em seu terreno original: a destruição da ordem capitalista e a emancipação autônoma do proletariado.
A forma-influenciador precisa de palcos com alcance massivo para converter reputação em poder — e os grandes podcasts operam como correias de transmissão do capital de atenção. Na prática, o influenciador ajusta tom, temas e forma à moldura do palco; em troca, recebe audiência, legitimidade e acesso. Esse arranjo é particularmente visível quando observamos a trajetória recente de Jones Manoel em circuitos como o Flow. Não se trata de “ir onde o povo está”, mas de aceitar uma condição de clientela num mercado controlado por plataformas privadas cujo modelo de negócio é a atenção — e cuja gramática editorial foi construída, testada e escalada por figuras que normalizaram a presença da extrema-direita e da política-espetáculo. O Flow Podcast foi fundado em 2018 por Bruno “Monark” Aiub e Igor “3K” Coelho (com Gianzão na direção), inspirado no Joe Rogan Experience, com a estética da “conversa de bar” e a promessa de “liberdade total” de pauta. Tornou-se rapidamente um dos podcasts mais vistos do país, recebendo de Lula a Bolsonaro e presidenciáveis como Ciro Gomes e Sergio Moro (há episódios dedicados a Lula e Bolsonaro; Ciro e Moro também passaram pelo programa). Em 2022, Monark foi desligado após defender a existência de um partido nazista, gerando uma crise reputacional e financeira; o próprio Estúdios Flow admite que o faturamento mensal — então em torno de R$ 1,5 milhão — “caiu a zero” após o cancelamento. A empresa, reestruturada sob a liderança pública de Igor, voltou a crescer; em 2024, a nova CEO anunciou aumento de 50% do faturamento e, em 2025, a imprensa de negócios reportou projeção de R$ 17 milhões no ano (dados de mercado, não auditados publicamente). Ou seja, longe de “mídia alternativa”, trata-se de um negócio escalado da creator economy, com metas, portfólio e governança empresarial. O palco “neutro” é um ativo, e a “pluralidade” — receber tanto Lula quanto Bolsonaro — é um modelo de captação de públicos divergentes sob uma mesma mercadoria: audiência monetizável.
A distinção prática entre Igor e Monark não altera a função do palco. Monark, após a queda, migrou para o Rumble com viés assumidamente direitista; Igor reposicionou o Flow como “mediador” e manteve a lógica de convidar polos antagônicos sob o verniz da imparcialidade. Em entrevistas, Igor se apresenta como crítico “de ambos os lados” para sustentar a autoridade do anfitrião-árbitro, preservando o modelo de negócio da equidistância — crítica rotativa às figuras do dia e manutenção das portas abertas a quem entrega pico de tráfego (Lula, Bolsonaro etc.). A chave é entender que o palco é a mensagem: ele transforma política em conteúdo e o conflito em entretenimento. O convidado entra como fornecedor de atenção; o programa, como operador de captura. É nessa moldura que se inscreve o clientelismo midiático de Jones Manoel. Em agosto de 2025, Jones esteve no Flow #479 por 3h38, e também no Flow News #004 (com direito a promoção nas próprias redes). Não são aparições pontuais: elas marcam o pertencimento do influenciador ao circuito que organiza a pauta do dia como show e, ao mesmo tempo, o legitima perante um público amplo como “a voz marxista que dialoga com todos”. A troca é clara: o programa recebe um “comunista explicador” que ajuda a compor a imagem de pluralidade; o convidado recebe volume de tráfego, novas inscrições, convites subsequentes e capital simbólico útil para a passagem do conteúdo à política institucional.
Aqui, o paralelo com Tragtenberg é direto. Em Ideologia e Burocracia, Maurício Tragtenberg mostra como a burocracia — estatal, partidária, sindical — profissionaliza a mediação entre base e decisão, deslocando a iniciativa dos de baixo para aparelhos especializados. A forma-influenciador opera como burocracia comunicacional: separa quem fala e capitaliza do conjunto que escuta e consome; fabrica porta-vozes permanentes; e converte a participação em passividade engajada (curtir, comentar, compartilhar). Esta é a verdade material do personalismo: não é traço psicológico; é forma social que surge quando a crítica precisa de meios privados para circular. O personalismo gera paternalismo (“o professor popular que explica a realidade”), populismo de plataforma (lives, desafios, “quem ganhou o debate”), e mitificação da coerência (“ele aguenta qualquer palco sem se vender”), precisamente porque a coerência é medida pelo desempenho no palco, não pela construção organizativa fora dele.
Quando o militante se torna cliente dos palcos, o critério de sucesso muda: não é mais o que organiza, mas o que viraliza. Isso obrigatoriamente empurra a teoria para formatos que rendem retenção (pílulas, slogans, takes “quentes”), e ajusta o conflito de classes a uma dramaturgia que precisa caber no roteiro do host. É por isso que “ir ao Flow” não é neutro: o palco não acolhe um discurso; ele enquadra o discurso e o redireciona para sua própria finalidade — a circulação rentável. Não por acaso, a lista de convidados ilustra a lógica de normalização do antagonismo sob a mercadoria audiência: de Bolsonaro a Lula, de Ciro a Moro, passando por quadros do MBL como Kim Kataguiri; a “pluralidade” é o business model, não um princípio democrático. Uma questão central para compreender o fenômeno Jones Manoel é perceber que sua recorrente participação em debates com fascistas e conservadores não se apresenta como um enfrentamento, mas como uma associação objetiva, ainda que disfarçada sob o manto da polêmica. É fundamental destacar que o fascismo, enquanto forma de reorganização da dominação burguesa, não se combate em arenas midiáticas espetacularizadas, mas na luta de classes concreta, na organização popular e no desvelamento crítico de suas raízes históricas e materiais. Ao aceitar reiteradamente o convite para estar ao lado de agentes do fascismo em podcasts, mesas redondas ou lives, Jones se insere numa lógica que, em vez de desestabilizar, legitima os fascistas como interlocutores válidos. A associação não é formal, mas estrutural: na medida em que compartilha palco, narrativa e linguagem com eles, ele contribui para a reprodução da forma-espetáculo da política, na qual as fronteiras entre esquerda e extrema-direita se dissolvem em performance e marketing digital.
A chave para compreender essa dinâmica está na crítica marxista à ideologia. Ao invés de se posicionar como antagonista radical, Jones se acomoda ao papel de “representante da esquerda radical que dialoga com todos”, convertendo a luta em produto de entretenimento. O que aparece como combate é, na realidade, uma simulação cuidadosamente calculada. O fascista entra fortalecido, pois sua presença diante de uma figura que se reivindica comunista é legitimada como parte do “debate democrático”. Jones, por sua vez, aparece como mediador supostamente racional e ponderado, consolidando sua imagem de intelectual acessível e de “comunista midiático” capaz de circular entre polos opostos. Trata-se de uma simbiose espetacular: ambos se beneficiam em termos de visibilidade, capital simbólico e circulação nas redes, ao mesmo tempo em que a consciência crítica do público é desviada para a ilusão de que a disputa ideológica se dá na forma de diálogos cordiais entre inimigos históricos.
Essa associação não pode ser naturalizada. Ela precisa ser compreendida como uma estratégia consciente de inserção no mercado da atenção. Não há qualquer ganho revolucionário em disputar espaço com fascistas sob os termos da indústria cultural digital, mas há sim um ganho de audiência e prestígio individual. Dessa forma ocorre a neutralização da crítica: o fascismo aparece como uma “opinião” dentro de um cardápio de ideias, e o comunismo como sua contraparte domesticada, incapaz de ultrapassar o limite da encenação midiática. A crítica radical se transforma em mercadoria de nicho, enquanto o fascismo se torna cada vez mais normalizado. Portanto, afirmar que os encontros entre Jones e fascistas configuram uma associação é ir ao cerne do problema. Não se trata de imputar cumplicidade ideológica no sentido estreito, mas de denunciar a função social que esse modelo cumpre: estabilizar o campo político dentro do espetáculo, oferecer ao fascismo uma plataforma de legitimidade e, ao mesmo tempo, adaptar o comunismo a um formato aceitável para o capital. A associação está no pacto silencioso de que, ao final, ambos saem vencedores no jogo da visibilidade, enquanto a luta real contra o fascismo — que exige organização, teoria crítica e ruptura — permanece bloqueada. É preciso desmascarar esse pacto, sob pena de reproduzir o ciclo histórico de neutralização que sempre perseguiu a esquerda em suas formas reformistas e midiáticas. Nesse sentido, além de cínico, Jones é cumplice.
Mas o ponto decisivo é o significado de alguém que se diz de esquerda capitular ao mais alto grau da burocracia estatal. Quando a crítica “chega lá”, ela não domina a máquina; ela é dominada por seus imperativos: coalizões, governabilidade, disciplina fiscal, controle policial, comunicação de risco. No Brasil real, isso significa reconduzir a juventude inquieta ao cidadanismo: participar, votar, comentar — enquanto a estrutura da propriedade, do trabalho e da violência estatal permanece intocada. A “coerência” que muitos veem numa liderança que “topa qualquer palco” é a coerência de manter aberto o funil que vai do like à urna, sem jamais tocar no núcleo ontológico da dominação: a forma-Estado e a forma-mercadoria. No plano subjetivo-político, esse circuito produz vaidade funcional e cinismo metódico. Vaidade funcional: a figura pública aprende a performar autoridade (eu explico o mundo) porque precisa manter a comunidade de fãs que sustenta o negócio. Cinismo metódico: sabendo que o palco exige ambiguidade, a liderança domina a retórica de “falar com todos” — inclusive com apresentadores que deram palco a Bolsonaro e normalizaram a extrema-direita —, e apresenta isso como “maturidade estratégica” ou “dever pedagógico”. A plateia, por sua vez, encontra alívio moral: pode dizer-se marxista sem romper com a sociabilidade que financia o palco. É a identidade segura de que falávamos: radicalidade como cultura, não como ruptura.
Diante disso, o “clientelismo” de Jones não é exceção ética; é efeito de forma. A forma-influenciador precisa servir a alguns templos para existir na escala que ambiciona; a forma-podcast precisa servir-se de certas vozes para reconstituir credibilidade após cada crise. Não se trata, portanto, de “não ir”; trata-se de não se tornar cliente. Um militante que entra e sai do palco com objetivos organizativos concretos (construir comitês, greves, redes de apoio, caixa de luta, formação vinculada à prática) está em disputa com o palco. Um influenciador que depende do palco para renovar sua autoridade está em clientela. A diferença aparece no dia seguinte: houve organização real? Houve convocatória para ação que não seja audiência? Houve endereçamento material a trabalhadores e territórios — ou apenas mais um funil para novas aparições e, agora, para uma candidatura presidencial?
A publicação deste artigo foi dividida em 7 partes, com publicação semanal:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5
Parte 6
Parte 7
As imagens que ilustram o artigo são obras de Carlos Zilio.






Particularmente, acho que cabe explorar um outro aspecto no contato entre Jones e o campo fascista: a sua apologia ao nacionalismo. Como muitos sabem, essa apologia já o colocou organicamente em contato com membros do duginismo brasileiro, que até ontem publicavam na Revista Opera. Existe também uma cumplicidade teórica histórica entre os stalinistas e os fascistas
L de SP, você tem alguma referência acerca desse contato do Jones com Duginistas brasileiros? Pergunto porque já ouvi falar algo sobre isso, mas como “ouvir falar” não são fatos, queria saber se tens algo mais concreto.
Ademais, sim, a defesa dos nacionalismos nas “nações oprimidas” (ou proletárias, como quiser chamar) é porta de entrada pro fascismo, algo que permeia não apenas o meio do stalinismo, mas do leninismo como um todo e inclusive algumas meios anarquistas.
Abraços!
Antonio, deve estar falando do André Ortega, que circulava livre, leve e solto nos círculos do stalinismo enquanto divulgava, entrevistava e participava de eventos sobre Dugin. Chegou a ir pra zonas de guerra na Rússia (“novorussyia”).
Tinha várias fotos fazendo a “quenelle”.
Rolou um dossiê dele e desde então sumiu da internet até onde eu sei.
Porém,
Sim sim, eu lembro do André Ortega! Faz anos que não ouço falar dele, mas lembro sim do cidadão. Lembro que ele foi uma das figuras da assim-chamada “Esquerda” que começou a se aproximar ideologicamente de maneira mais explícita ao fascismo russo putinista e ao fascismo duginista, pelo menos na minha percepção. Isso foi em meados de 2013-2015, quando do Euromaidan + Formação de Donetsk e Luhansk + Anexação da Crimeia pela Rússia.
Acho que foi mais ou menos por essa época que surgiram os grupos Nova Resistência (fascista duginista) e Nova Pátria (que se diz/dizia marxista nacionalista, e “coincidentemente” tem um logo quase idêntico ao dos duginistas).
Sim, o caminho vai por aí como vocês citaram. Acredito qu3 se fosse escavado, encontraríamos mais outros pontos de contato orgânicos além desse que vocês citaram, em especial entre apologistas da Coreia do Norte/Juche aqui no Brasil.
Não sei se já tiveram curiosidade para pesquisar, mas uma parte razoável da extrema-direita é apologista da Coreia do Norte, inclusive membros da Attomwaffen (a qual foi, ao que tudo indica, responsável pela ameaça ao próprio Jones). Uma parte destes apologistas, ligados ao grupo Rural People’s Party, nos EUA, teve inclusive contato com o regime norte-coreano (https://www.nknews.org/2013/05/white-power-and-apocalyptic-cults-pro-dprk-americans-revealed/).
Se não estou enganado, o próprio Ortega viajou à Coreia do Norte. Não me surpreenderia se houvesse entre os apologistas do Juche que por vezes circulam entre esses meios stalinistas gente que é na verdade rojipardo.
Sobre as pontes entre anarquismo e trotskismo e o fascismo via nacionalismo, estou de acordo. Pesquisem, se tiverem paciência, sobre o Nacional-Anarquismo de Troy Southgate…