Por Passa Palavra

Por alguns anos foi comum o Passa Palavra publicar balanços de sua atuação (por exemplo, aqui e aqui). Nos últimos anos este hábito se perdeu, seja por conta de uma falta de fôlego interno, por uma automatização de processos ou por uma avaliação de que pouco haveria para acrescentar ao que já fora dito. Neste momento, em que estamos em uma crise aguda, retomamos este velho hábito. O leitor mais atento já há de ter notado uma perda de vivacidade no site, seja pela redução de análises assinadas pelo coletivo, pela diminuição de publicações, ou pelas discussões em círculo nos comentários; para que a situação se altere faz-se necessário encarar o problema, ou ao menos levantar hipóteses de como chegamos aqui.

O Passa Palavra surgiu, se alimentou e cresceu, junto com um campo do movimento de esquerda que convenciou-se chamar de campo autônomo. Muito já foi debatido sobre o que seria essa tal autonomia e não nos interessa em absoluto repisar esse debate. O importante é reconhecer que este campo no qual surgimos não existe mais. Um movimento que teve seu berço nos assim chamados movimentos antiglobalização, contando com um grande intercâmbio entre países, locais de atuação, práticas militantes, se viu — diante de uma mudança na conjuntura global, com o fechamento de regimes e o crescimento da extrema-direita — completamente incapaz de atuar globalmente. O exemplo mais evidente foi a total incapacidade organizativa de atuar de forma coordenada perante os desafios da pandemia, completamente dispersos e incapazes de lidar com a morte de milhões de trabalhadores.

Outro fator central nessa desagregacão dos espaços autônomos foi a deriva identitária, seja pela lógica interna de competição dentro dos coletivos, seja pelo ambiente persecutório criado dentro dos movimentos sociais. A crítica a uma determinada forma de combater o machismo, o racismo e a homofobia passou a ser encarada com uma oposicão à luta per se. Simultaneamente, reforçou-se a gramática identitária de uma certa direita, que se afirma branca, masculina e heterossexual. Essa disputa e construção de identidades estanques passou a pautar a forma de se pensar política, não deixando espaço para formas de reflexão que buscassem outras maneiras de encarar o machismo, o racismo e a homofobia.

Os movimentos sociais passaram também por uma série de transformacões. Aqueles propriamente autônomos, como o Movimento Passe Livre (MPL), foram completamente destruídos internamente por suas próprias tensões. Já aqueles como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) e Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) se descaraterizaram por completo, funcionando hoje em dia, ou bem como uma marca que serve apenas para diferenciacão social, como uma identidade politizada à esquerda, ou como correia de transmissão de dirigentes partidários, ou ainda como gestor de populações miseráveis (conferir aqui e aqui). Sendo assim, qual o sentido de buscar uma inserção nos movimentos quando eles se caracterizam dessa forma? Ao mesmo tempo, como manter contatos militantes ou divulgar iniciativas de base que possam eventualmente ocorrer se não tivermos alguma inserção?

A transformação de movimentos em marcas também é acompanhada por uma mudança do que se entende por militância política. Ser de esquerda passou a ser apoiar os movimentos nas redes, ou divulgar suas ações, ou defender seus candidatos ou, ainda pior, comprar o arroz orgânico, usar um boné ou ir no bar que pendura bandeiras variadas em suas paredes. O público progressista difuso que anteriormente se interessava em ir em uma manifestação contra o aumento do preço da passagem do transporte público, ou participar de um debate sobre autogestão, ou organizar um sarau em determinada comunidade, hoje deslocou seu interesse político para defender ações do governo nas redes, ou criticar de maneira jocosa as inaptidões intelectuais de figuras de extrema-direita, quando muito participando como público de manifestações que mais se parecem com showmícios, intercalando discursos de parlamentares e personalidades progressistas.

Outro desafio que enfrentamos é o carreirismo acadêmico. Parte dos artigos e debates travados neste site foi feita por doutorandos, ou jovens doutores, também militantes, que aqui escreviam, formulavam, refletiam. O aprofundamento de críticas variadas a este espaço tornou-o, para muitos, desabonador do currículo. Qual vantagem tem um candidato a bolsas ou ao cargo de professor em se associar a um site tão antipático? Vale muito mais publicar no site de alguma editora pretensamente crítica, ou em qualquer outro site de esquerda, nos quais o debate inexiste nos comentários. Eventualmente ainda enviam para cá algum texto que sabem que seria recusado em outros espaços. Muitos também entraram na lógica de se afirmar em redes sociais como “influenciadores” de esquerda, pois daí também vem seu sustento e prestígio, vendendo cursos, conseguindo contatos, aparecendo dentro de uma lógica de destaque individual pouco relacionada com a construção coletiva outrora almejada.

Apesar de tudo isso, a classe trabalhadora continua em movimento — eppur si muove! Nas últimas décadas passamos pelo que talvez foi a maior onda de revoltas populares da história, com derrubadas de governos, reconfiguração dos sistemas políticos e algumas conquistas parciais. No entanto, essas revoltas não têm se convertido em melhorias duradouras nos padrões de vida dos trabalhadores. Muitas, inclusive, refluíram em retrocessos brutais. Além disso, a maioria delas se caracteriza por serem ideologicamente difusas — quando não francamente reacionárias.

Diante desse cenário, qual o nosso papel enquanto veículo de comunicação em tempos de influencers e redes (anti)sociais? Surgido com o objetivo de noticiar as lutas, apoiá-las e pensar sobre elas, temos tido cada vez mais dificuldade em desempenhar essas tarefas. As mudanças nas formas de comunicação de militantes e movimentos — cada vez mais centradas em personalidades e voltadas à logica do “consumo de conteúdos” —, somadas ao esvaziamento interno do nosso coletivo editorial, a falta de colaboradores externos e a pobreza do debate público, nos fazem duvidar se ainda há espaço para um site anticapitalista como o Passa Palavra.

Por outro lado, nos perguntamos se existem outros espaços onde os debates que marcaram nossa história (a burocratização dos movimentos sociais, a crítica ao identitarismo, o registro de pequenas lutas, etc.) possam se dar. Aprendemos com um velho camarada que se apenas nós podemos dizer algo, é nossa obrigação dizê-lo. Mas faz sentido continuar se falamos sozinhos? Isto deveria ser tarefa de muitos. Mas, infelizmente, poucos são os que a assumem para si. Como sairemos desse labirinto?

As obras que ilustram este artigo são de Mark Rothko (1903-1970)

15 COMENTÁRIOS

  1. Peço licença pra dar pitaco sem ajudar, mas já que o coletivo abriu o debate, compartilho o que me vem à mente.

    Na luta anticapitalista, nenhum processo organizativo deve ser visto como eterno, nenhum espaço deve ser insubstituível; afinal, nossas formas estão ligadas à crítica e combate de um mundo que queremos superar. Mas se agora acabasse o Passa Palavra, faria falta um Passa Palavra.

    De fato, o site foi muito mais vivo ali por 2009-2014, quando se ligava a debates de um movimento também mais vivo: MPL, críticas à burocratização das lutas, rupturas do MST, crítica do Fora do Eixo, debate do identitarismo etc. Lembro que o Especial de 100 Anos da Revolução Russa foi uma iniciativa para reanimar o site num momento de crise. Retrospectivamente, aquele ainda era um período muito mais ativo do que hoje!

    Outros balanços já consideraram o quanto a internet mudou (quantas revistas de esquerda estavam online em 2009? Sem falar nas redes sociais).

    Mas eu acrescentaria algo mais na análise, sobre um tipo de desenvolvimento político que é próprio do amadurecimento dos grupos. No início do site, tempo de mobilizações, as discussões engajavam um leque mais amplo de posições. Pra dar um exemplo, no início saía um tanto de coisa dos especifistas aqui. Com o tempo, cada corrente foi constituindo seus próprios veículos de comunicação online, dispensando o Passa Palavra. E o próprio Passa Palavra também foi definindo mais sua linha – processo inevitável de acúmulo conforme o coletivo editorial vai travando debates. Esse processo também está associado ao refluxo do movimento e não é necessariamente negativo, ainda que em alguma medida seja restritivo.

    Voltando ao que escrevi no início, se as pernas e a energia são escassas e cansadas, acho que a questão seria: no que o PP é indispensável para nós hoje?

  2. Vou comentar aqui: Sou preto, pobre e de periferia e morador de ocupação. Acompanho o site faz tempo, muitos artigos bons e interessantes que agregam conhecimento e diferentes visões sobe vários assuntos pertinentes. A questão é que vivemos no tempo do espetáculo, onde a imagem ao invés da escrita consegue atingir um público muito maior que textos ou artigos. Outra questão que acho pertinente é em relação á linguagem, quando se utiliza de discurso e linguagem academicista, restringe bastante o público que vai ler e compreender. Espero que o Passapalavra não acabe, mas que se recicle e continue ativo, pois se sucumbir, será mais um espaço que se perde.

  3. Epitáfio

    Aqui jaz o coletivo Passa Palavra.
    Não resistiu ao próprio sectarismo e dogmatismo. A prepotência, a arrogância, a vaidade e a aversão ao diálogo, quase sempre presentes na maioria de seus integrantes, enfim inviabilizaram a continuidade do coletivo.
    Sucumbiu a autofagia decorrente de grupos fechados sobre si mesmos.
    Como era de se esperar. Até que durou muito…

    Bem, se este comentário não foi bloqueado e você leu até aqui, então talvez seja possível começar a conversar contigo sobre as agruras do Passa Palavra.

    • Crise? Crise de quem?
    A crise do Passa Palavra vem a ser, nem mais nem menos, a crise da esquerda revolucionária.
    Não se tratam de problemas e dificuldades inerentes e exclusivos deste coletivo em particular, mas do atual modo de viver da esquerda revolucionária.
    Sim! Porque a Revolução é um Modo de Viver. Porque é um processo e não um espectro rondando em torno.

    ☆ A crise da Esquerda Revolucionária é também uma crise de conceitos. Sem uma brutal quebra de paradigmas ela continuará vagando por um labirinto sem qualquer saída.

    • Tudo começa, e acaba, pelo sectarismo e o dogmatismo
    Exemplo gritante?
    Neste mesmo artigo de epitáfio o coletivo reconhece que《surgiu, se alimentou e cresceu》no campo da Autonomia.
    E logo em seguida é peremptório: 《Muito já foi debatido sobre o que seria essa tal autonomia e não nos interessa em absoluto repisar esse debate.》
    Já sabem tudo… Já debateram tudo… Nenhum interesse em praticar uma constante e transformadora autocrítica.
    Aliás um postura amplamente disseminada na Esquerda Revolucionária.
    O resultado são sempre os epitáfios: 《 O importante é reconhecer que este campo no qual surgimos não existe mais.》

    ☆ Compreendida como meio e fim, a Autonomia vem a ser a forma como a Revolução se materializa num processo de lutas concretas tendo como alicerce a organização pela base.
    • A Vida só é bela para os ressuscitados
    A Esquerda Revolucionária ainda pode ressuscitar? Ou se condenou a girar no vazio sinistro entre seus epitáfios?
    A Esquerda Revolucionária está disposta a reciclar seus conceitos? Seus integrantes desejam se levantar dos mortos?

    “trazer os mortos à vida
    não é nenhuma grande mágica.
    poucos estão completamente mortos:
    sopre as brasas de um homem morto
    e uma chama viva se levantará.
    então conceda-lhe a vida, mas considere
    que o túmulo que o abrigou
    agora não pode ficar vazio:
    você com suas roupas manchadas
    nele você deve se aconchegar deitado.”

  4. Devia ter amado mais
    Ter chorado mais
    Ter visto o sol nascer
    Devia ter arriscado mais
    E até errado mais
    Ter feito o que eu queria fazer
    Queria ter aceitado
    As pessoas como elas são
    Cada um sabe a alegria
    E a dor que traz no coração
    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar distraído
    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar
    Devia ter complicado menos
    Trabalhado menos
    Ter visto o sol se pôr
    Devia ter me importado menos
    Com problemas pequenos
    Ter morrido de amor
    Queria ter aceitado
    A vida como ela é
    A cada um cabe alegrias
    E a tristeza que vier
    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar distraído
    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar
    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar distraído
    O acaso vai me proteger
    Enquanto eu andar
    Devia ter complicado menos
    Trabalhado menos
    Ter visto o sol se pôr

  5. Passa Palavra anuncia seu provável encerramento… 4 comentários… ARKX tem razão… Ulisses fica calado…. Seria o Ragnarok autonomista? O “refluxo das lutas” é sempre um belo subterfúgio para a não realização de uma verdadeira autocrítica, dá um ar de autoridade analítica e de objetividade histórica. “Caímos! Mas, caímos de pé! Saímos por cima! Temos razão, mas falamos para ninguém! Onde estão nossos semelhantes?!”. Nunca ARKX foi tão lúcido… Mas, quanto o próprio coletivo é responsável por essa diáspora de leitores (e de membros)? A autonomia começou com os movimentos antiglobalização?! É compreensível que não queiram mais discutir essa questão, fogem ao debate. A autonomia proletária é tão antiga quanto a própria classe e quanto suas tendências burocratizantes, assim como a não-crença é tão antiga quanto a religião. Mas, para o Passa Palavra, tudo começou em Gênova e em Seattle… No Brasil, foi em junho de 2013 com o MPL… Sintomático, não?! Nem chegaram ao Maio de 68… Incrível que o chefe desse coletivo tenha deixado passar isso sem remeter a Varlin, o que diz muiito sobre o que ele próprio se tornou. Infelizmente, o Passa Palavra já não existe mais há muito, muito tempo…

  6. Ainda aqui encontro vozes que não sejam somente de papagaios, nao concordo com tudo e nem quero concordar. Na igreja a galera concorda contudo. Por isso ainda um espaço necessario !
    Ainda mais quando irritam alguns comentadores chatos para cara#$ ,confudem o mural de debate com espaço de comentarios do instagram ! Querem ser ironicos, mas são irritantes e superficiais em suas “criticas”. (retiranto o primeiro comentario).

    Realmente o passa palavra é antipático e por isso importante, não procura so atenção e aceitação.

    (PAssa Palavra)- ” Mas faz sentido continuar se falamos sozinhos? Isto deveria ser tarefa de muitos. Mas, infelizmente, poucos são os que a assumem para si. Como sairemos desse labirinto?- ”
    Ai é algo mais amplo mesmo que extrapola a escala do site e se repete em sua quase totalidade pelo globo todo!

  7. Se o site parar, não tendo publicações novas, os textos antigos e dossiês(HK, Revolução Russa-100 anos, Greve dos Caminhoneiros de 2018, Tarifa Zero, Junho de 2013, Guerra Russo-Ucraniana)continuarão online?

  8. Curioso. Os comentários refletem parte das razões da crise interna que o Passa Palavra escancara ao público. Alguns comentaristas raciocinam como se um texto como esse surgisse ex nihilo, do nada, sem história, nem causa, nem produtor, como simples fenômeno incondicionado. Outros querem dizer ao Passa Palavra, desde fora, como deve, ou não, ser o que é. Ninguém quer ler o texto pelo que ele é: um pedido de ajuda.

    Penso que o problema é ao mesmo tempo mais simples e mais profundo.

    Num nível mais simples, o coletivo confessa publicamente nesse editorial que está esvaziado, e precisa de braços para tocar o trabalho cotidiano de gestão do site. Todo esse editorial melancólico, autojustificativo, introspectivo, por vezes fatalista, poderia estar contido nesta simples frase. A confissão está na “falta de fôlego interno”, na “redução de análises assinadas pelo coletivo”, na “diminuição de publicações”, no “esvaziamento interno do nosso coletivo editorial” e na “falta de colaboradores externos”. Só não leu quem não quis. Aliás, o Passa Palavra faria muito melhor se houvesse ficado nesta confissão e neste pedido de apoio, com uma chamada pública para novos integrantes, porque daí em diante o editorial foi só ladeira abaixo.

    Num nível mais profundo, essa longa racionalização da própria crise de braços para o trabalho cotidiano é apresentada ao público como uma crise política. Afinal — é o que fica subentendido na leitura do artigo — deve haver alguma razão pela qual não se tem encontrado gente disposta a tocar esse trabalho, e essa razão deve — do ponto de vista do Passa Palavra — estar enraizada em problemas políticos mais profundos.

    O Passa Palavra surgiu como coletivo em 2009, congregando desde alguns integrantes que se poderia classificar de modo muito controverso como sendo da “geração de 1968” até outros assumidamente da “geração antiglobalização”. De lá até hoje, é bem provável que tenha incorporado outros integrantes mais novos. O que o texto fala, nas entrelinhas, é da crise de pessoas com mais ou menos esse perfil.

    Além disso, o artigo evidencia como pessoas com esse perfil geracional enxergam no exterior problemas que bem podem ter raízes internas. Em resumo: jogam para o público problemas que são da própria constituição interna do coletivo. É um hábito das gerações militantes que integraram o coletivo, visto em qualquer lugar onde se possa ter militado. Se é isso ou não, jamais saberemos — pois não há ninguém no Passa Palavra que possa expor ao público como estão as contradições internas do coletivo editorial e fazer-lhe a crítica pública.

    Mas não é apenas de uma crise geracional ou de uma crise interna que se trata, como essa minha datação pode dar a entender a alguns. É algo com vários fatores operando em conjunto.

    Para explicar meu ponto de vista, vou comentar os principais pontos pelos quais o Passa Palavra avalia sua própria crise, deixando a seguir meus comentários.

    1) O “campo autônomo” não existe mais, porque completamente incapaz de atuar globalmente.

    Convenhamos, para um militante político isto não é um problema; é uma condição para a ação. A própria frase que quase encerra o artigo o demonstra: “se apenas nós podemos dizer algo, é nossa obrigação dizê-lo”.

    Afinal, se o movimento antiglobalização dos anos 1990/2000 existiu, é porque muito antes, em algum lugar, pessoas começaram a se organizar para reivindicar terra, trabalho, meios de produção, melhores condições de vida, etc., e encontraram ao longo da jornada outros envolvidos em lutas semelhantes.

    Movimentos políticos e sociais nunca são permanentes. Existem, de certo modo, em “ciclos”, em “ondas”. Aquele “ciclo” dos movimentos antiglobalização dos anos 1990/2000 já estava extinto em 2009, quando surgiu o Passa Palavra. Foi isso um obstáculo para seu surgimento? Sabemos que não.

    Esta premissa, portanto, me parece bastante equivocada. Creio que o Passa Palavra deve reavaliá-la, pois parece simples justificativa racionalizada da própria incapacidade de ver o que está à sua volta, além de negar o Ponto de Partida nº 4. Há outras razões para o que digo, que ficarão evidentes mais adiante.

    2) A deriva identitária e sua gramática pautaram a forma de se pensar política, não deixando espaço para formas de reflexão que buscassem outras maneiras de encarar o machismo, o racismo e a homofobia.

    O que parece ser uma premissa muito concreta não resiste a uma análise mais aprofundada.

    De fato, essa “deriva identitária” e sua “gramática” são muito fortes nos meios políticos atuais, sob diversos nomes (“polarização”, “radicalismo”, etc.). A extrema-direita concebe-se a si própria de modo identitário, exigindo certas performances como critério de pertença: “patriotismo”, “conservadorismo”, “cristianismo”, “anticomunismo”, etc. No “campo progressista” é dificílimo encontrar quem não recorra a um vocabulário conceitual de origem pós-estruturalista sobre “corpos”, “lugares”, etc., que, quando misturado com a “virada linguística” generalizada nas universidades e assimilado por certos movimentos sociais, transformaram-se nessa “deriva identitária” que pouco avança além da “defesa da democracia”. Quem volta os olhos para o ínfimo e irrelevante campo da extrema-esquerda neostalinista também encontra muitas exigências performáticas: “nacionalismo”, “projeto nacional”, “geopoliticismo”, “defesa incondicional do legado soviético”, “defesa incondicional do socialismo chinês”, etc.

    O vocabulário identitário, como qualquer vocabulário de nicho, circula em certos meios, não em outros. O peso dado pelo Passa Palavra a esse vocabulário demonstra em quais meios seus integrantes andam circulando, e em quais não estão. Demonstra com quem querem estabelecer um diálogo crítico, e com quem não querem. Aliás, ao mobilizar uma “gramática” do identitarismo, em vez de qualquer outro termo, o próprio Passa Palavra demonstra não estar imune à circulação desse vocabulário.

    Mas vejam, quando eu vou à feira e lá discuto o que está causando o aumento do preço do quiabo, esse vocabulário não tem vez. Quando acompanho um movimento de luta por moradia numa reunião em algum órgão público para discutir, por exemplo, a reforma no teto de uma ocupação no Pelourinho que está para cair, esse vocabulário não tem vez. Quando discuto com desenvolvedores de software que querem criar um aplicativo alternativo para entregadores, esse vocabulário não tem vez. Em suma: quando questões concretas entram em pauta, surge outro vocabulário, mais voltado a questões pragmáticas e menos afeito a performances.

    Ora, para o Passa Palavra isso não é segredo nenhum. Nunca foi. Para o Passa Palavra, em seu Ponto de Partida nº 4,

    Politizar não significa substituir esses temas por outros diferentes, mas inserir os problemas particulares num contexto geral, assim como a consciência de classe resulta da compreensão de que os problemas sentidos por cada indivíduo se ligam, de uma ou outra maneira, a problemas mais gerais. […] falar de política é integrar o particular no geral, o individual no social.”

    Nesta versão do Passa Palavra da leitura marxista do velho problema filosófico dos universais, é desse vocabulário do concreto, do singular, do particular, do sensível, do imediato, do imanente, do feijão-com-arroz, que se começa. Neste lugar, qualquer discurso identitário entra em curto-circuito, porque não tem eficácia, nem a promove.

    Ora, se o Passa Palavra tem desde sempre na máxima concretude a chave para lidar com o identitarismo, parece que não tem um problema com o identismo propriamente dito, mas sim uma perda de propósito, ou uma duplicidade de discurso. Voltarei a esse assunto mais à frente, pois há algo ainda pior.

    Ao levantar a questão do campo autonomista e sua crise, o Passa Palavra reconhece a fragmentação política em que vivemos e, mesmo sem querer, cria para si próprio um campo identitário onde se insere. Essa identidade nunca foi estável, sempre esteve em disputa, e foi eficaz por muito tempo. Ao identificar a morte morrida do campo autonomista e criticar o identitarismo, o Passa Palavra se insere nesse mesmo campo autonomista moribundo, dá pistas que apontam no sentido da superação dessa identidade, porque desgastada, aponta as falhas de setores da esquerda tomados pelo identitarismo… mas não se coloca em lugar algum. Não diz a que veio. Não aponta qual é seu horizonte estratégico. Sequer remete aos seus pontos de partida, documentos fundantes escritos em 2009 e revisados em 2020. Não se pergunta qual a validade do que vai ali escrito. Seguem válidos? Então o coletivo continua como está. Estão superados? Precisam, portanto, de debate interno para revisão. Não há mais identidade com eles, ou o debate interno se tornou impossível? Que se extinga o coletivo, então, e se discuta a viabilidade de manter o site como um arquivo.

    3) Não há mais sentido em buscar inserção em movimentos sociais que atuam como marcas de identidade “esquerdista”, ou como correia de transmissão de dirigentes partidáros, ou como gestor de populações miseráveis.

    Com esta afirmação inserida no contexto geral de sua crise, o Passa Palavra inventa uma estranha modalidade da lei de ferro da oligarquia de Robert Michels: apoiado num artigo de 2013 sobre os rumos do MST e num clássico editorial de 2010 sobre burocratização nos movimentos sociais, o Passa Palavra decreta a inelutabilidade do fenômeno burocrático e, nas entrelinhas, confessa render-se. (Nem tantas entrelinhas assim, pois a “automatização de processos” confessada pelo coletivo pode ser lida como sintoma de burocratização interna.)

    Não parece o mesmo Passa Palavra que, dez anos atrás, publicou este editorial:

    os trabalhadores viverem, na prática, duas vidas: aquela em que são mera força de trabalho para o capital, e aquela em que são sujeitos políticos autônomos. Numa de suas vidas, vivem de acordo com as regras, hábitos, conceitos, ideologias, práticas etc. impostas pelos burgueses e gestores; noutra delas, inauguram práticas, hábitos, conceitos, regras, ideologias etc. capazes de construir relações sociais novas, que ao se desenvolverem no tempo e no espaço podem vir a substituir o capitalismo. A tensão entre estas ‘duas vidas’ dos trabalhadores resulta em que suas lutas oscilam entre a total integração aos quadros ideológicos e práticos do capitalismo e a total ruptura com ele. Entre estes dois polos de um plano lógico situam-se as infinitas variações e misturas verificáveis num plano histórico entre integração e ruptura, entre exploração e autogestão, entre alienação e plena realização pessoal, entre heterogestão e autogestão. Aquilo que num plano lógico pode ser expresso como dois polos nada mais é que a extremação de características de lutas sociais complexas, na tentativa de extrair elementos que permitam situá-las num continuum de lutas entre classes em tempos e lugares diferentes.”

    Pode ser que não seja, mesmo. Afinal, tudo muda. πάντα ῥεῖ. Apesar disso, há um problema muito sério, seriíssimo, quando se lê esse editorial de 2015 e esse editorial de agora em conjunto.

    Para explicar o problema, voltemos ao caso da transformação do MST numa grande empresa capitalista. Se o Passa Palavra leva a sério o que disse em 2015 — suponho que leve, porque referenciou em seu artigo a série onde aquela transcrição se insere — não seria o caso de simplesmente “abandonar” qualquer relação com o MST sob a justificativa de “burocratização completa”, mas de reconhecer nos assentados o potencial para romper com essa burocratização; consequentemente, seria o caso de buscar restabelecer contatos, reconstruir pontes, para assim se solidarizar com os trabalhadores rurais vitimados por essa exploração.

    Em suma: o Passa Palavra se equipou teoricamente para fazer a crítica da burocratização nos movimentos sociais; reconheceu corretamente que a burocratização nas cúpulas não se dá sem o consentimento passivo das bases; mas não se colocou o problema do que fazer para romper esta dialética. Quando o fez — ver aqui e aqui — foi porque havia gente nos movimentos disposta à ruptura, e gente suficiente no coletivo para segurar o rojão.

    Se o Passa Palavra não tem pernas e braços suficientes para a tarefa no momento, tudo bem, isso é compreensível. Acontece nas melhores organizações. Mas vejam, uma coisa é assumir publicamente que não se tem gente suficiente para a tarefa e pedir ajuda; outra muito diferente é entrar em contradição em público para não reconhecer os próprios problemas. Não parece coerente dizer, ao mesmo tempo, que se propõe a criticar a burocratização de movimentos sociais e lutar contra ela, e ao mesmo tempo afastar-se exatamente das organizações onde tal burocratização começa a produzir efeitos nocivos. Deste modo, sequer se concebe a possibilidade de a “burocratização” e “degenerescência” destes movimentos ser “um campo de lições a tirar para a próxima fase de lutas” (Ponto de Partida nº 3), exceto se tais lições forem especulativas e dogmáticas, dissociadas de qualquer concretude e sem relação com os desenvolvimentos posteriores à análise de 2013 (que, aliás, não foram poucos).

    É a isso que chamo de “perda de propósito”. É muito sério. Vejam, não estou a dizer: “voltem a dialogar com o MST!”. Não é disso que se trata. É que os rumos do MST foram apresentados no editorial como paradigma de todos os movimentos sociais existentes, sem exceção. Paradigma inescapável, inelutável, irrefreável, incontornável, inevitável. Praticamente uma força do destino. Maktub, diriam alguns. A lei de ferro da oligarquia em pleno funcionamento. Se não é isso o que o Passa Palavra quis dizer, precisa corrigir-se em público — com urgência. Do contrário, fechem as portas.

    4) Mudou-se o perfil de militância, que passa apenas a ser uma performance voltada para o consumo de certos produtos, ou a defesa de certas figuras.

    A leitura é correta, mas excessivamente simplista. O problema não é o contexto, mas o que o Passa Palavra faz com ele. Não basta simplesmente falar da mudança nos meios de comunicação; deve-se tirar consequências práticas. Não basta continuar replicando conteúdo do site em redes, como se tem feito até o momento; deve-se pensar em algo mais.

    Veja-se, de um lado da equação, o fenômeno dos influenciadores de esquerda, que está sendo lido pelo Passa Palavra por uma ótica que me parece equivocada. Trata-se de uma nova modalidade do “militante liberado”, nada mais, nada menos.

    Vejamos a questão de forma comparativa. O movimento socialista clássico tinha, a seu modo, um star system próprio. Publicistas de renome escreviam para a imprensa operária como jornalistas pagos. Não era incomum receberem dinheiro pelas conferências e palestras que faziam em certos meios, ou mesmo pelos livros que publicavam. Com efeito, apesar do apoio financeiro direto prestado por suas organizações ou por amigos e parentes ser de extrema relevância para seu sustento, não é como se não tivessem seus meios próprios de subsistência.

    Vejam o caso de Rosa Luxemburg como paradigma. De 1907 a 1914, foi professora na escola do Partido Social-Democrata, onde ganhava um salário pequeno, mas estável, para ensinar economia. Além disso, era jornalista do partido, recebendo pelo que saía publicado em seu nome no Die Neue Zeit.

    Outro caso bem conhecido é o de Piotr Kropotkin, que, durante décadas no Reino Unido, França e Suíça após rejeitar os títulos e o patrimônio de sua família nobre, sustentou-se com conferências públicas remuneradas, colaborações jornalísticas e venda de seus livros, aliás popularíssimos. Não era rico, mas essa renda da atividade publicística, somada com uma vida austera e apoio logístico e financeiro de amigos, simpatizantes e grupos anarquistas, permitiram-lhe escapar à fome.

    Entre os mais conhecidos, um exemplo clássico de quem comeu o pão que o diabo amassou foi — sempre ele! — Errico Malatesta. Quase nunca teve renda estável, viveu longos períodos na pobreza, sustentou-se com vários ofícios manuais (eletricista, técnico de motores, tipógrafo, encadernador, consertador de máquinas de costura), destinou o pouco que recebeu de herança para a imprensa anarquista, os jornais que fundou mal davam lucro, muitas vezes ele mesmo bancava sua impressão com o pouco dinheiro que tinha…

    As diferenças de contexto são muitíssimas, mas as linhas gerais permanecem as mesmas. Eu não preciso ser um gênio da informática para descobrir, por exemplo, que uma campanha de financiamento colaborativo de Paulo Galo gera entre R$ 6.070,00 e R$ 6.262,00 mensais. No mesmo lugar, descubro que Carolline Sardá tem campanha que arrecada entre R$ 2.802,00 e R$ 3.813,00. Nenhum chega perto de Rita von Hunty, que já passou de R$ 28.310,00 mensais só na campanha de financiamento do Tempero Drag, ou Jones Manoel, que arrecada muito mais de R$ 11.430,00 mensais na campanha de financiamento do Farol Brasil.

    Todos esses influenciadores, sem exceção, fazem algum tipo de “trabalho de base”, entendendo como “trabalho de base” fazer conferências, palestras e cursos. Nesse aspecto, não fazem nada além de seguir a tradição do “militante liberado”.

    Se, por um lado, há quem viva do publicismo, por outro há — e sempre houve — quem o consuma. Vejamos novamente a questão de modo comparativo.

    Hoje pouco se tem ideia do volume da tiragem de certos jornais socialistas muito conhecidos no final do século XIX e começo do século XX; em alguns casos, concorriam com certos jornais “tradicionais”. Em seu pico na fase legal (1912-1914), a Pravda bolchevique chegou a concorrer em tiragem com periódicos médios como a Peterburgskaya Gazeta. Em certos períodos após a Primeira Guerra Mundial, o Avanti! do Partido Socialista Italiano chegou a concorrer com o liberal Corriere della Sera. O Vorwärts do SPD não alcançava mais que a metade da tiragem do liberal Berliner Tageblatt, mas superava em muito o respeitado Vossische Zeitung.

    O esforço das equipes de certos periódicos socialistas nesse período sempre foi no sentido de ampliar a tiragem, pois ampliá-la significava ampliar o alcance do ponto de vista das organizações que os animavam. Por outro lado, se o aumento da tiragem era sustentado, é porque havia um público leitor interessado no ponto de vista socialista/comunista/anarquista sobre certos fatos. Pouco importam as razões; esse público queria saber o que pensavam os pensadores sobre a conjuntura, sobre os fatos mais quentes do momento, sobre os grandes assuntos de todos os tempos. Ao assinarem ou comprarem exemplares avulsos, tornavam-se consumidores habituais daquele conteúdo. Eram, guardadas as enormes diferenças de contexto e forma, seguidores.

    Vista a questão por esse ângulo, o fenômeno dos influenciadores digitais de esquerda foi até espantoso num primeiro momento, mas não foi nem um pouco improvável, tampouco impossível. Tinha certo pedigree, linhagem, antecedentes. O fato de influenciadores como Jones Manoel e Chavoso da USP ultrapassarem 1 milhão de seguidores em certas redes sociais deveria servir para mostrar que sim, há espaço para certas leituras da sociedade — mas isso supõe que, além de fazer a crítica à “forma-espetáculo” dos influenciadores, se olhe para o público que os segue. É um público que quer também o que o Passa Palavra tem a dizer — mas que o Passa Palavra tem se esforçado pouco para alcançar.

    Afinal, tenho minhas dúvidas se, em outros aspectos de suas vidas os integrantes do Passa Palavra não usam as redes sociais. No trabalho, nesses tempos malditos de “empreendedorismo de si próprio”, duvido muito que não as usem para divulgar seus cases de sucesso; se essa minha hipótese estiver correta, também não duvido que não dispensem pagar a algum gestor de mídias sociais para produzir algum conteúdo, ou dar uma linha editorial. Na militância, duvido muito que não façam convocatórias, divulguem boletins, convoquem reuniões usando redes sociais. Tampouco duvido que construam perfis militantes — individuais ou coletivos — que, para serem eficazes, precisam aumentar seu alcance e, portanto, seu número de seguidores.

    Nos dois casos, se minhas suspeitas estiverem corretas, teríamos o caso em que dizem uma coisa sob o manto do Passa Palavra, mas fazem outra em suas vidas pessoais, profissionais e militantes. É isso o que chamo “duplicidade de discurso”. Se essas minhas suspeitas estiverem corretas, fazem bem em fechar as portas, porque nada justifica reclamarem das redes sociais no Passa Palavra, criticarem seu uso, mas seguirem construindo influência fora dele.

    Nada disso tem a ver com influenciadores digitais, ou com seu público. Tem mais a ver com falta de leitura de contexto, e consequentemente com falta de estratégia enquanto veículo de comunicação. Não deixaram de existir lutas, mesmo aquelas com as características desejadas pelo Passa Palavra. O que acontece é que o Passa Palavra não demonstra ter estratégia para lidar com o pouco que suas pernas permitem, tampouco para projetar algum crescimento do coletivo.

    Um exemplo. Esses dias conversava com um camarada sobre as recentes paralisações de trabalhadores da construção civil no canteiro de obras que virá a ser a fábrica da BYD em Camaçari: começaram com uma manifestação pelo fim da jornada 6×1 — “demanda estritamente proletária“, bem ao gosto do Passa Palavra — e seguiram adiante com uma greve que, enquanto escrevo, já dura alguns dias e inclui antigos trabalhadores terceirizados da Ford, cuja fábrica foi demolida para a construção da fábrica da BYD (ver mais aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui).

    Antes de alcançar veículos mais tradicionais de comunicação, imagens e vídeos dos protestos e da própria greve já circulavam em redes sociais, e projetaram na Bahia o nome do Movimento Luta de Classes (MLC), corrente sindical da União Popular (UP), esta última por sua vez o partido legal por onde se candidatam nas eleições os militantes do Partido Comunista Revolucionário (PCR).

    Lutas como essa acontecem o tempo inteiro, mais ou menos por todo lugar. Entretanto, elas não aparecem mais no Passa Palavra, ou pouco aparecem. Não seria difícil a integrantes do Passa Palavra, com duas ou três trocas de mensagens, alcançar qualquer delas. Se não o fazem, não é apenas porque faltam pernas e braços; é porque não faz parte de sua estratégia fazê-lo. Se o coletivo fala publicamente de sua produção interna e da de colaboradores externos, sem mencionar qualquer outra fonte de informações, é porque em sua estratégia essas são as suas duas únicas fontes de material publicável, e elas andam rareando. A estratégia está falhando por falta de reação adequada ao contexto — mas o Passa Palavra culpa o contexto pelas falhas de sua estratégia.

    O que se verifica é que essas lutas não são mais veiculadas no site, por diversas razões — entre as quais a falta de proximidade entre os integrantes do coletivo e aqueles envolvidos nessas lutas. Para buscar aproximação ou reaproximação, é preciso ter alguma estratégia; para ter estratégia, é preciso saber bem o que se é, seu próprio lugar em meio aos pares, quem são seus aliados, quem são aqueles com quem se pode manter algum mínimo diálogo em meio às discordâncias menores, e quem são aqueles com quem não se dialoga nem fudendo. Principalmente: saber quais vias de mão dupla se pode estabelecer, e com quem.

    Vou criar aqui uma situação hipotética para exemplificar o que quero dizer. Do ponto de vista que adoto, não se deve, nunca, partir do princípio de que informações sobre lutas e movimentos sociais devam convergir para o Passa Palavra; deve-se partir do contrário, de que o Passa Palavra tem algo muito mais concreto e material a oferecer a essas lutas que sua crítica. Com a ubiquidade dos celulares e a massificação de redes sociais voltadas para o audiovisual (Instagram, Tik Tok, etc.), o texto perdeu a centralidade, mas um website pode ser um repositório indexável (não “mais seguro”, apenas indexável) de pequenas notícias curtas produzidas no calor das próprias lutas por aqueles nelas envolvidos. A partir desse material indexado, pode-se produzir muita coisa interessante como reflexão, e demonstrar aos pares que há, sim, interesse em suas lutas. Reaproximações começam por aí.

    Ainda quanto a estratégias: o Passa Palavra não tem a menor ideia do que fazer quando não lhes é encaminhado material para publicação. Como se vê publicamente, os editoriais andam ficando cada vez mais minguados, e os artigos assinados não parecem seguir uma linha editorial coerente. Duvido que a totalidade dos textos publicados mais recentemente sejam 100% de autoria de membros do coletivo. Isto me sinaliza que o Passa Palavra não sabe “tapar buracos” editoriais criando, com antecedência, algum material que possa ser preparado com antecedência. Lembro de iniciativas muito importantes como o especial sobre o Bolsa Família, as críticas ao neodesenvolvimentismo nos artigos agrupados como “Nunca antes na história deste país”, a série de traduções sobre a Revolução Russa. Em 2023, saíram alguns artigos interessantes sobre os 10 anos das lutas de 2013. Tudo isso são efemérides, datas previsíveis, que podem gerar algum material encomendado com bastante antecedência. Imagino o coletivo batendo cabeça enquanto aguarda pela divina providência, quando poderia resolver o problema com um mínimo de planejamento.

    Já me estendi bastante sobre esta parte do assunto. O resto, é a discussão sobre lideranças carismáticas, mais velha que Weber, à qual não vale a pena retornar, nem assumir como justificativa válida para o que quer que seja.

    5) O carreirismo acadêmico impede a publicação em um site antipático, crítico, que não gera nem retorno para o currículo, nem simpatia.

    Mais uma generalização apressada, que revela muito mais sobre o Passa Palavra do que seus membros gostariam de admitir.

    Tanto o Passa Palavra quanto seu público leitor mais tradicional são formados por gente que, bem ou mal, orbita as universidades, e encontrou ali tanto uma referência de linguagem, quanto um certo perfil de comportamento. Sociólogos, arquitetos, antropólogos, contadores, economistas, cientistas políticos, advogados, farmacêuticos, biólogos, engenheiros, psicólogos, filósofos, etc. — é desses que estou falando. Claro, essa não é a totalidade do público leitor do Passa Palavra, mas é parte bastante representativa dele. Isso tem consequências importantes.

    Não é exclusividade do Passa Palavra o tom um tanto acadêmico dos textos, que aliás eu mesmo tanto adotei no que escrevi e saiu aqui publicado. Já tive oportunidade de ver manifestos políticos de mais de uma organização política das grandes na extrema-esquerda (não vou dizer quais) redigido com sistema de referência autor-data à la ABNT. O cacoete é generalizado entre nós. Não está em questão sofisticar ou “rebaixar” a linguagem — defendo que qualquer assunto pode ser tratado em qualquer meio, desde que se tenha linguagem clara e bom raciocínio lógico — mas somente o fato de que, na forma e em certos conteúdos, o tom acadêmico é forte no Passa Palavra.

    A contradição entre vida acadêmica e vida militante, aliás, se resolve muito facilmente com uma das mais antigas ferramentas militantes: pseudônimos. A qualquer um interessado nessa vida dupla, basta um pseudônimo maroto e voilà!, está definitivamente separado o que entra no Lattes e o que não entra.

    Pessoas com esse nosso perfil costumam ter um “ciclo de vida militante” que — tirando exceções muito honrosas — vai até os primeiros anos da vida profissional. Este pode ser um dos nós da crise no Passa Palavra: não há mais o mesmo tempo disponível para dedicar ao coletivo que se tinha quando se era estudante. Os boletos cobram caro.

    Ao lado desse perfil, há outro: o de gente que orbita movimentos sociais como apoiadores, mas não os integra. Que gosta de estar informado sobre o tema, mas não passa disso. Novamente: há exceções muito honrosas a esta regra, mas o fato de haver exceções confirma que há uma regra. Não há problema algum em apoiar as lutas de outros camaradas; pelo contrário, uma sólida rede de apoiadores é condição necessária para o avanço de qualquer luta social. O problema com o status de apoiador é duplo: está em não haver implicação mais pessoal e direta com as lutas que apoia; e em não perceber qual o seu próprio lugar nas relações de produção, quais suas demandas específicas enquanto trabalhador, como se organizar com outros nas mesmas condições e, a partir desse sujeito coletivo, construir solidariedade com outros. Sem isso, movimentos sociais viram objetos, pura e simplesmente. Basta ver quantos apoiadores com perfil próximo a esse participam das assembleias de seu sindicato para confirmar se não é esse o caso — não digo nada quanto a organização no local de trabalho, oposição sindical, etc., indico apenas esse lugar absolutamente passivo de simplesmente erguer ou não o braço numa assembleia. A luta é sempre de um outro, quase nunca de si próprio. Este pode ser outro dos nós da crise: lutas há, só não se está perto delas.

    Puxo esses assuntos para mostrar como a crítica ao carreirismo acadêmico é apressada. Não respeita nem o meio em que o Passa Palavra circula, nem os próprios colaboradores que, na falta de uma estratégia editorial clara por parte do Passa Palavra, enviaram colaborações que, ao serem publicadas, impediram o site de chegar a um fim prematuro. Parece cômodo, depois de publicar tanto material de “carreiristas”, acusá-los de “carreirismo”. Digo “cômodo” para não dizer outra coisa que seria igualmente desrespeitosa com o Passa Palavra, nem recorrer a insinuações ou ataques ad hominem absolutamente desnecessários para o debate.

    FINALIZANDO

    Fecho esse comentário já bastante longo com um apelo simples ao Passa Palavra: sejam claros no que querem.

    Se querem ajuda, sejam explícitos. Digam do que precisam, e peçam apoio ao seu público. Na falta de estratégia melhor, é como lançar mensagens ao mar em garrafas: eventualmente alguém as lerá, e pode ser que venha ao resgate.

    Se querem simplesmente anunciar que os integrantes do coletivo editorial não estão dando mais conta, anunciem o fim do site, e discutam com o público o que fazer com o acervo, pensando inclusive em estratégias de manutenção técnica e financeira.

    Só não venham depois reclamar que ninguém entende o Passa Palavra.

  9. ☆ Da capacidade de firmar alianças e integrar experiências
    • 31º Curso Anual do NPC: Comunicação e Mobilização da Classe Trabalhadora
    https://nucleopiratininga.org.br/vem-ai-o-31o-curso-anual-do-npc/

    Exemplo da programação

    • Do planejamento à ação: mão na massa na comunicação da classe trabalhadora
    Mesa 1 – Comunicação Sindical: Luciano Fetzner (Bancários/RS), Leticia Montadon (Sinpro/DF), Diego Marques (ANDES), Claudia Costa (Conlutas)
    Mesa 2 – Comunicação Popular: Erica Vanzin (MST), Simone Lauar (Garotas da Maré), Rozinaldo Miani (UEL), Claudia Santiago (NPC), Camila Marins (Brejeiras) e Geremias dos Santos (Abraço)

    • Comunicar para Resistir: a força da comunicação nas crises atuais
    Palestrantes: Heloisa Villela (ICL), Altamiro Borges (Barão de Itararé), Antonio Martins (Outras palavrs) e Arlete Rogoginski (Sindijus-PR)

    • : A classe trabalhadora brasileira
    Palestrantes: Marcelo Badaró, Giovanni Alves, Gerlane Pimenta, Luciana Mendonça e Flavia Braga Vieira

    • Sobre o NPC: O que queremos
    Nosso objetivo central é melhorar a comunicação dos trabalhadores para construir um mundo com justiça e sem exclusão. Para isto criamos o Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC). O ponto de partida é a certeza de que sem comunicação não há possibilidade de os trabalhadores lutarem para alcançar a hegemonia política na sociedade.
    https://nucleopiratininga.org.br/o-que-fazemos/

  10. Manolo,

    Deixei de ler seu comentário aqui: “Ninguém quer ler o texto pelo que ele é: um pedido de ajuda”. Considero essa afirmação bastante autoritária para um “libertário”, para não falar da recorrente arrogância. Vi acima comentaristas que leram o texto por aquilo que entenderam que ele expressa: arrogância (novamente) e ausência de autocrítica, explicando a ausência de interessados em contribuir com o site pelo citado “refluxo das lutas”. Será mesmo este o motivo? Mas, parece que Manolo quer controlar o que e como os leitores devem pensar, ao ditar a “linha justa” da compreensão alheia. Isso demonstra o atual círculo vicioso deste espaço. Além disso, sugiro que você publique seu “textão” (como sempre) em forma de artigo. Não que eu pretenda lê-lo, mas me parece mais adequado em termos de legibilidade. Leia como quiser este comentário Manolo, não “pelo que ele é”.

  11. Anarcochevique ortodoxo,

    eu digo o que penso, você diz o que pensa, e cada um veste a carapuça que lhe couber. Aliás, obrigado pela demonstração.

  12. Para um formador, basta uma pessoa ali interessada. Mesmo em caso de atrasos, ainda assim, vale a pena estar lá por aquele um. Para um escritor, basta um leitor interessado. Mesmo que este leitor só nos leia em um futuro distante, ainda assim o registro é indispensável.
    Para um coletivo editorial anticapitalista basta o que? Um público vasto de comentadores e um e-mail lotado de solicitações externas de artigos? Se houver um artigo por mês, é um artigo por mês. Se houver um acesso ao site por dia, é um acesso ao site por dia. Não seria arrogância da parte do coletivo deixar de atuar só porque sua atuação não atinge as grandes massas que se desejaria atingir?
    Agora, se este artigo for o que Manolo interpreta ser, um pedido de ajuda, faço coro: o coletivo precisa ser mais claro quanto a isso.
    Há também um outro aspecto: Estes dias eu li no Grundrisse o seguinte trecho: “É absolutamente necessário que elementos separados à força, mas essencialmente ligados, se revelem por erupção violenta como separação de algo essencialmente conectado. A unidade se restaura violentamente.” Li e por um instante me desliguei do texto. Não é sem violência que o capital separa o homem de seu fazer especificamente humano, o trabalho (então alienado). E também não é sem violência que o capital está separando, como um próximo passo, como a próxima fronteira a ser espoliada violentamente, a ser tomada pelos tentáculos sangrentos e asfixiantes da burguesia, o homem aquilo que também é especificamente humano, que é seu intelecto em um nível ainda mais profundo, que é a capacidade de produzir sinapses para as mais simples tarefas. A inteligência artificial (“que não é inteligente, muito menos artificial”), serve para asfixiar nossas mentes, já bastante prejudicadas pelo trabalho alienante da exploração capitalista, a nossa já pouco tão estimulada capacidade de pensamento!
    Eu sei de exemplos reais, e vocês devem saber também, de pessoas usando a Inteligencia Artificial para responder mensagens de texto pessoais no Whatsapp! Nem mais mensagens de texto, pequenas comunicações, as pessoas estão dispostas a formular. O coletivo elenca neste texto uma série de situações, mas essa ele deixa passar, essa que pra mim é a mais chocante! Em um tempo histórico em que os jovens não mais ensinados a escrever redações, em que a atividade de escrita nas faculdades é um dialogo entre uma mente de poucas sinapses, praticamente inativas, e a inteligência artificial, qual é a importância de um site que reúna textos escritos por pessoas para pessoas com mentes ativas?
    Neste mundo cada vez mais virtual e desértico no campo do pensamento, precisamos de algumas janelas, alguns oásis para seguir respirando (mesmo quando esses oásis nos decepcionam com suas brechas editoriais de conteúdos provenientes da esquerda pró-capital, o que não é raro aqui no Passa Palavra).

  13. Acompanho o Passa Palavra desde o seu lançamento, em 2009. Já colaborei mais ou menos ativamente para/com o coletivo. Há um bom tempo, porém, sou apenas leitor, mas leitor habitual, eventualmente comentando também. Apesar de todos os limites e idiossincrasias que qualquer coletivo relativamente pequeno possa ter, nós sempre encontramos aqui, sobretudo, análises críticas rigorosas e incômodas que, na maior parte das vezes, só aqui conseguimos encontrar (e repercutir, dialogar, polemizar, no melhor sentido…). Um possível final de ciclo deste Coletivo e nosso Jornal seria ou será uma grande perda para a extrema esquerda autonomista que assim persiste buscando sobrevida aqui e acolá. Se for inevitável o fim da veiculação de novos textos, também torço muito para que o acervo desses 16 anos de produção e circulação de palavras bem pensadas permaneça acessível para sempre podermos revisitar, relembrar, difundir esta experiência editorial que foi única no Brasil e em Portugal nessas duas últimas décadas. Fica aqui também a nossa enorme gratidão a todo mundo que colaborou ativa e voluntariamente para manter o PP autônomo e vivo até aqui. Um forte abraço a todos!

  14. “Apesar de tudo isso, a classe trabalhadora continua em movimento — eppur si muove! Nas últimas décadas passamos pelo que talvez foi a maior onda de revoltas populares da história, com derrubadas de governos, reconfiguração dos sistemas políticos e algumas conquistas parciais.”

    E talvez nem seja “apesar de tudo isso”, mas com tudo isso junto e misturado mesmo.

    Tantas vezes li por aqui comentários irônicos sobre a sempre anunciada crise final do capital, e agora vejo o Passa Palavra se esforçando para anunciar uma crise final do seu projeto sem tocar seriamente em nenhum dos seus pontos de partida (que justificaria descer do trem ou a desistência da partida). Quem não concordou com a leitura do Manolo – que em boa parte é também a minha – talvez tenha levado a sério demais o “tudo isso” que supostamente implicaria em uma desrazão para o coletivo seguir com o seu projeto e a sua aposta. Também concordo com a liv, afinal as lutas estão acontecendo e é preciso noticiá-las, pensar sobre elas, pensar com elas. Só o desvio disso é que implica fazer do Passa Palavra menos do que ele já mostrou que pode ser – o oásis como disse liv. E ainda tem outra coisa, de um modo geral todo mundo aqui nessa caixinha de “resposta” sempre aponta coisas importantes, mostrando que um dos patrimônios e diferenciais do Passa Palavra são os debates e intervenções que ele suscita.

    O cenário de hoje não é o de 2009, e não é o de 2011, nem o de 2013-2014, nem o de 2015-2016, é o de hoje. Eu gostaria de retornar ao trabalho de dentro, e desconfio que pelo menos uma metade de quem já atuou de dentro também gostaria de retornar, mas pelo ressentimento que o texto estampa parece a questão não é nem dificuldade para reconhecer que o coletivo tá precisando de mais gente pra tocar o barco do dia a dia, isso está dito, minha leitura aqui é que os camaradas estão com uma dúvida muito grande sobre a pertinência do projeto mesmo. Manter o Passa Palavra vivo e relevante é um diletantismo ou uma ação/militância real em prol dos interesses históricos do proletariado?

  15. Enquanto discutíamos aqui, o Passa Palavra foi até as redes sociais e fez um belo apanhado dos protestos contra a falta de luz em São Paulo. É um bom caminho! Deve ter havido algum problema técnico com os comentários por lá, pois não se pode comentar. Mas isso se resolve com o tempo. Parabéns!

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