Por Thiago Canettieri
Em um texto já clássico deste site, Caio Martins e Leonardo Cordeiro refletem sobre a experiência do Movimento Passe Livre (MPL), já em um rescaldo de 2013, quando, definitivamente, a fervura entornou do caldeirão. Quem se lembra das ruas, já há mais de dez anos, sabe muito bem que ali era confronto — a imediatidade com que explodiam, os rojões de um lado e as balas de borracha de outro não deixam espaço para dúvidas. O conflito contra a tarifa do transporte público. Como notam, acertadamente, a natureza dessa luta em específico, diferentemente de “outros movimentos urbanos — de moradia, por exemplo — dificilmente ultrapassam o limite de sua ocupação ou bairro, nas lutas contra o aumento, a mobilização tem a tendência a tomar conta de toda a cidade, a se generalizar como revolta”.
Para eles, a revolta — palavrinha-chave para compreender 2013 — se refere a “um processo de fôlego curto, mas explosivo, intenso, radical e descentralizado. As primeiras manifestações atuam como ignição de uma mobilização que extrapola o controle de quem a iniciou – que perde toda a capacidade de interrompê-la. Há uma escalada de ações diretas: ocupação massiva e travamento de importantes artérias da cidade, enfrentamento com a polícia, ataques ao patrimônio público e privado, saques”.
Por um lado, os jovens militantes do MPL sabiam muito bem o que poderia acontecer quando lançavam a primeira marcha contra o aumento de 20 centavos. Uma manifestação pequena aqui, que explode e incendeia todo um país. Era essa a intencionalidade por trás da mobilização. Claro, não há ingenuidade em acreditar que a explosão ocorra espontaneamente — “depende quase sempre de um polo altamente organizado da luta, uma organização que elabora e formaliza seu sentido e lhe garante alguma coesão”, escrevem Caio e Leonardo.
A medida que junho avança, a revolta esquenta o inverno brasileiro daquela longínqua data:
Greve geral, ocupação dos prédios públicos, tomada da cidade por barricadas em cada bairro, expropriação de frotas… eis alguns desdobramentos que o ascenso popular abria à imaginação às vésperas do anúncio da revogação do aumento. É precisamente a ameaça de um enorme salto organizativo dos trabalhadores que alarma a classe dominante – o “caos social” bate à porta e deve ser contido pelo governo, cedendo. A tática histórica das lutas contra o aumento, que aqui chamamos de “revolta popular”, aposta para seu sucesso nessa ameaça e, no entanto, depende, ao mesmo tempo, de que ela não se realize. Para conquistar a reivindicação central, a revolta deflagra um processo explosivo, que é necessariamente freado no momento em que se atinge a conquista.
Se a tática é eficiente, o salto organizativo já nasce castrado e vai existir apenas como vislumbre. A breve perda de poder sobre as ruas permite entrever outro poder, um poder popular, tão palpável quanto inalcançável naqueles dias. Ao existir justamente na tensão entre uma minoria altamente organizada e uma maioria não organizada, a revolta popular limita a si mesma. Pois, ao mesmo tempo que, na luta contra o aumento de São Paulo, a população agiu diretamente sobre sua vida, não é menos certo que existia um comando que decidia o que fazer. Se depois de junho uma parte da esquerda avaliou que o problema no processo era a carência de uma “direção revolucionária”, nos parece o contrário: nas revoltas contra o aumento, o que falta – e por isso se trata de revoltas – é horizontalidade, ou seja, poder direto dos que estavam nas ruas sobre o que estavam fazendo, algo que depende da existência de estruturas enraizadas no dia a dia dos trabalhadores.
A revolta popular deve sair do controle — é nessa perda de controle que se permite conceber, pensar, sentir, viver uma transformação social, ainda que inconstante e muito breve. E, assim, junho passou; a revolta arrefeceu e foi administrada. Por um lado, forças repressivas aprenderam a dispersar as marchas, a destruir barricadas. Por outro lado, de dentro das revoltas, despontaram interesses partidários institucionais que colocaram essa energia para girar a máquina de disputa de votos. “Os protestos entram nos cálculos dos políticos, da imprensa e das seguradoras. A rua como fim em si mesma é um beco sem saída”. Dessa maneira, Caio e Leonardo apontam para o esgotamento da tática da revolta popular, não por deixar de existir, mas porque não foi possível ir além dela.
Dizer que a tática histórica que aqui chamamos de “revolta popular” se esgotou não é, em nenhuma instância, decretar o fim da revolta – aquela atitude que há séculos pulsa entre os dominados. Ao contrário, esta nunca esteve tão presente: desde junho, a disposição à luta só cresceu. Mas o que construímos além dessa disposição? Milhões saíram às ruas e, de volta à casa, ao bairro, ao local de trabalho, voltaram à rotina de sofrimentos e humilhações (talvez um pouco mais indignados)? Embora tenha produzido ecos, o momento de mobilização não conseguiu ir além de si mesmo, não encontrou continuidade em um momento de organização.
Alguns anos mais tarde, Francesc e El Quico escreveram outro texto para este site que ecoa as formulações apresentadas. Com um ano de pandemia e dois de governo Bolsonaro, os conflitos na sociedade brasileira se acumulavam. O trabalho urbano ganhava uma nova fisionomia, marcada agora pela gestão algorítmica do trabalho precarizado, que aumentou na pandemia. E nesse cenário, Francesc e El Quico identificam que a esquerda se retirava do conflito – para eles, há nas fileiras da esquerda, um temor pelo conflito que acabam “imobilizando sua capacidade de imaginar conflitos que não terminem por voltar-se contra ela mesma”. Daí se deriva o caráter restauracionista do progressismo brasileiro, enquanto “os reacionários se tornaram progressistas no sentido de que querem acelerar o tempo e adiantar o futuro”, como escreve Felipe Catalani.
Assim, a esquerda via-se enredada na manutenção governamental da administração securitária do colapso social — o que necessariamente resulta na incapacidade de transformar o mundo. Mais do que isso, como se olha essa situação com os olhos de um passado idílico, carece na esquerda os instrumentos epistemológicos e organizacionais para pensar a partir desse novo terreno social. O mapeamento cognitivo que fez sentido para a esquerda, baseado num mundo do trabalho relativamente estável e em instituições democráticas e republicanas mais ou menos consolidadas, parecia dar régua e compasso à ação da esquerda.
O capital, enquanto processo cego, automático e contraditório, não permite que sua existência seja sempre idêntica ao longo da história. Enquanto forma social, o capital se reproduz de modo contraditório. Na medida em que busca aumentar a produtividade do trabalho para abocanhar uma fatia sempre crescente de mais-valor, ele impede a valorização de acontecer, pois, no mesmo golpe, expulsa o trabalho vivo das tramas produtivas. Assim, em sua ânsia de valorização, acaba tornando a si mesmo anêmico de valor. Essa dinâmica contraditória foi primeiramente exposta por Marx, mas foi mantida como contribuição marginal à esquerda marxista. O diagnóstico de Marx envolveu reconhecer a necessidade da crise. Contudo, essa leitura foi negligenciada pelas organizações políticas que se diziam inspiradas em seus escritos. Há causa para essa situação controversa: o diagnóstico não cabia na gramática política, que, desde antes de Marx, já colocava o trabalho como categoria privilegiada da ação política. Colocar ênfase na crise do trabalho e em sua obsolescência significaria a dissolução de sua gramática política — o que definitivamente aconteceu.
Seja como for, essa interpretação marxiana ficou relegada às correntes subterrâneas do marxismo e apenas germinou novamente quando se tornou patente a situação descrita por Marx um século antes. A crise se instalou à medida que os desenvolvimentos das forças produtivas, propiciados pela revolução da robótica, da programação e da microeletrônica, se disseminavam: a elevação da produtividade é tamanha que o trabalho, enquanto mediação social, torna-se estruturalmente supérfluo ao capital. Situação percebida não só pelos marxistas subterrâneos, mas também pelo nosso presidente-sociólogo tucano: agora há os inempregáveis.
Esses estão fora do mundo do trabalho — a sobrevivência dessa classe crescente depende da viração. Uma vez que uma massa de “ex-proletários virtuais” já não encontra como se inserir nessa gramática política, o mapeamento cognitivo que permitia estruturar a prática política por meio das organizações vai ao chão. A despeito, é claro, do sincero apego de muitos em relação a essas formas, o que ocorre nas últimas décadas do século XX e se intensifica ao longo do século XXI é a dissolução dessas formas sociais. As categorias que determinaram a existência social por muito tempo vêm se erodindo. Trata-se de uma impossibilidade lógica de continuar a utilizá-las para substancializar o mapeamento cognitivo de nossa realidade em crise.
A complexidade não diminuiu em nada — o mundo não se tornou mais transparente porque as determinações de existência impostas pelo processo social do capital entraram em debacle. Ao contrário, a situação embaralha ainda mais nossa capacidade de tomar ações comensuráveis à realidade social. Embaralha-se porque as formas pelas quais era possível estabelecer a transitividade entre as escalas, do local ao global, do específico ao geral, também são corroídas pela crise.
O capitalismo de crise contemporâneo colocou um desafio, podemos dizer, metapolítico para a tradição que se dedica não só à interpretação do mundo, mas também à sua transformação. Para pensar uma resposta comensurável com a realidade do novo tempo do mundo é preciso pensar uma resposta comensurável com a realidade em que uma organização política se encontra.
Sem mais um mapa da realidade, “É por aí que se deve compreender a ressurreição periódica e intempestiva do trabalho de base e certas noções meio franciscanas de solidariedade e autodisciplina” – como escrevem Franscesc e El Quico. Curiosamente, às vezes, as saídas são mais fetichistas do que a porta de entrada nessa realidade social em desagregação.
Se, por motivos de desposessão originária, as pessoas em todo o mundo tornaram-se trabalhadoras, durante um tempo, essa condição de reprodução social compartilhada servia de âncora política para a ação. Agora, parece que “a única alternativa é seguir na correria sem fim, se virando em condições mais e mais adversas”, como ensina a Masterclass de fim do mundo. A reprodução social passa agora por uma miríade de estratégias que frequentemente prescindem da forma-trabalho, o que, claro, produz efeitos políticos profundos, como tentei escrever em um texto anterior para este site. Nessas condições, a ação política toma a forma de motins que não permite o acúmulo de forças:
Sem o antigo “horizonte de ‘conquistas’ a serem acumuladas, numa perspectiva mais ampla de integração progressiva”, o que resta às lutas do nosso tempo é refluir aos poucos ou escalar imediatamente, assumindo, sem qualquer mediação, formas insurrecionais (sem antes e depois).
Há luta, insurgência e conflito na sociedade, “tão intensos quanto descontínuos, sem jamais assumir formas estáveis” – continua a Masterclass.
Na viração das esquinas, entre “empregos de merda” e “trampos” temporários – ali onde não há nada de promissor à vista a não ser cair fora –, a insubordinação irrompe com a mesma urgência, o mesmo imediatismo da produção just in time. Os conflitos explodem como um gesto desesperado, um grito de “foda-se” em que se misturam “sofrimento, frustração e revolta”, frequentemente sob a forma de um ato de desforra individual – ou, quando muito, coletiva. Assim como a recente onda de deserções do trabalho nos Estados Unidos e em outras partes do mundo, a debandada dos call centers nos primeiros dias da pandemia no Brasil era um sinal de recusa a uma rotina que, para arcar com a “normalidade” em colapso, torna-se ainda mais infernal. A cada nova emergência – sanitária, ambiental, econômica, social –, gira o parafuso da intensificação do trabalho, todos integralmente mobilizados num esforço sem fim em que não se formam senão “experiências negativas”. Se os “não-movimentos” trazem uma boa notícia, contudo, ela é justamente essa: eles “indicam que o proletariado já não tem nenhuma tarefa romântica”, sem ter nada a esperar e também nada a perder.
Voltemos a 2013. Caio e Leonardo, no primeiro texto resenhado aqui, notam que “ Se não saímos de 2013 com um aumento na organização dos de baixo, talvez o terreno para essa organização esteja mais fértil. Ao apontar para algo vivo para além do cotidiano morto de consensos e consentimentos, junho quebrou o feitiço”. Se essa afirmação “envelheceu mal” como se diz, não é por erro de análise dos camaradas no calor do momento, mas porque a própria realidade agudizou suas contradições em direção ao cenário de desagregação social e de motins sem acúmulo. O que interessa, contudo, é o questionamento levantado pelos autores ao final do texto: “Como fazer com que o vislumbrado passe do possível para o real? É, no mínimo, indispensável superar a centralidade da tática de revolta e formular uma perspectiva estratégica mais ampla, a perspectiva de uma recusa mais potente, enraizada no cotidiano. É preciso construir o que se tornou imaginável.” Questão que foi acompanhada por outras colocadas por Leo Vinicius, em um comentário ao texto: “É possível ir além da ‘revolta popular’ quando a tarifa aumenta (e lembrando que são relativamente poucas vezes que há manifestações com forte adesão quando elas aumentam), em direção a uma construção/situação de conflito permanente? É possível ir da greve na cidade-fábrica à construção do conflito permanente na cidade-fábrica? É possível construir um conflito cotidiano, permanente no transporte coletivo, que torne cada vez mais insustentável a forma de organização/gestão do transporte, abrindo caminho para a tarifa zero? Se sim, como?”
Quando se navega de dentro da crise, encontramos um cenário de crise que acumula adversidades, dificultando a construção da centralidade da tática da revolta. O mundo do trabalho entre o emprego de merda, a uberização, e o empreendedorismo; a renda familiar carcomida por pagamento de juros dos endividamentos sucessivos ou da fantasia nas apostas online; a presença irremediável de recursos dos programas assistenciais do Estado ou das igrejas, entre tantos outros. Contudo, essa mesma crise parece oferecer possibilidades de ação que não colocam a centralidade no conflito, mas sim no território.
Por território, entendo o conjunto de relações de reprodução social que ocorrem em um determinado espaço. O território é o lugar onde o cotidiano acontece. São várias as experiências militantes que parecem produzir uma sobrevida temporal das experiências de luta a partir da construção de um vínculo territorial. As ZADs, as ocupações, os territórios liberados. Baruq, da ocupação em BH, Kasa Invisível, compreende a importância de se construir infraestruturas reprodutivas para liberar pessoas das relações sociais capitalistas, permitindo que mais energia seja dispendida em organização e em luta (inclusive na produção de revoltas populares) do que a energia gasta no trabalho.
Desta maneira, pensar o território é pensar em como conferir perenidade à revolta, que é, por natureza, fugaz. É dar continuidade a algo descontínuo. Um território pode surgir de uma revolta — não foi isso que aconteceu, por exemplo, na Paris de 1870 ou em Capitol Hill, de 2020? É no território que é possível a fusão entre política e cotidiano, militância e reprodução. Nessas condições, a ação política não se torna um momento de interrupção dos fluxos da cidade, mas estende-se ao cotidiano. Mesmo nos casos efêmeros, como a Comuna (72 dias) ou a Capitol Hill Autonomous Zone (23 dias), há um saldo: a transformação se colou ao cotidiano.
Claro, se um determinado território vai se tornar uma plataforma eleitoral, de comércio ou mais um bairro comum — perdendo seu vínculo com uma política de transformação social —, o tempo revelará. Ou então, pode ser massacrado, despejado e perdido. Frequentemente, esse parece ser o destino dos territórios.
Não se trata aqui de negar os conflitos — ou não apostar nos conflitos como faíscas para incendiar o rastilho de pólvora de uma vida desgraçadamente incorporada ao colapso que vivemos. Por exemplo, Wohleben reconhece que “O que importa é identificar, nesta ou naquela situação, como práticas anônimas, sem dono e inapropriáveis, originárias da vida cotidiana, são magnetizadas por conflitos, e qual o alcance potencial que cada uma delas ainda pode ter.”
Voltemos, mais uma vez, a 2013. No dia 27 de junho de 2013, numa ocupação da prefeitura de São Paulo convocada pelo Movimento Passe Livre (MPL) no contexto da onda de grandes manifestações que tomou as ruas de todo o Brasil, ocorreu uma aula pública com Paulo Arantes. O professor tratou de responder a seguinte questão: Como se explica o fato de que um milhão de pessoas tomaram as ruas das metrópoles brasileiras em menos de uma semana? O próprio filósofo já descarta a resposta usual que atribuía importância à internet e às novas redes sociais, que tentava explicar Occupy Wall Street, Primavera Árabe ou a experiência das acampadas dos Indignados espanhóis. Para tanto, Paulo Arantes faz uma resenha de um artigo de Gladwell no qual busca pensar as condições da livre associação com potência de transformação.
Gladwell então recupera uma pequena história do movimento negro por direitos civis na segunda metade do século XX nos Estados Unidos, uma sociedade profundamente segregada. A história é sobre quatro jovens negros, calouros na North Carolina A&T, uma faculdade para negros. Eles entraram numa lanchonete e se sentaram na área destinada aos brancos (os negros deviam se alimentar de pé no balcão). Um deles pediu: “um café por favor”. A atendente recusou e lembrou os jovens que não poderiam se sentar naquele local, mas insistiram no pedido e não saíram da posição a despeito do risco de serem linchados. Brancos, que provavelmente estavam dispostos a tomarem tal atitude, se colocaram logo atrás dos jovens negros e proferiram as ameaças mais terríveis contra eles, mas, ainda assim, continuaram sentados até o fechamento da lanchonete e, no dia seguinte, retornaram ao mesmo local e repetiram o pedido. Continuaram durante a semana inteira, enquanto corria a notícia por todo o Estado, e, em menos de dez dias, caravanas de negros que se organizavam foram até a pequena cidade do interior de 50.000 habitantes, até o momento em que esses peregrinos militantes eram equivalentes a metade da cidade.
O que interessa é notar as condições que permitiram tal ato de existir e de lograr sucesso. Paulo percebe três características fundamentais: i. vínculos fortes entre os envolvidos, de amizade e camaradagem – ou seja, uma rede através das quais ações podem repercutir e se acumular; ii. a implicação do corpo de cada um em uma situação de risco compartilhado com seus amigos – uma vez que o corpo negro faz diferença no sistema de opressão racializada e; iii. o envolvimento em uma mesma causa, ou seja, a capacidade de adotar uma perspectiva comum, a partir da qual as perturbações sociais produzidas pelo “experimento” dos estudantes podiam ser reconhecidas e transmitidas entre todos os que se engajaram na luta.
Essas características marcaram, por exemplo, a experiência política dos Black Panther Party: trata-se de uma forma de organização comunitária para que jovens negros permaneçam vivos, atrelada fortemente aos vínculos cotidianos, aos riscos corridos e ao compartilhamento da pauta. Frequentemente esquecidos, os Panteras Negras organizaram, por mais de uma década, o programa de cafés da manhã para as crianças das comunidades negras onde atuavam.
Esse tipo de atuação desloca o eixo que tradicionalmente caracterizou a prática política. Nesse formato clássico, o espaço da política é um espaço separado da vida cotidiana — baseado nas ideias de representação que informaram tanto a democracia formal quanto a ação de muitas das organizações revolucionárias por aí. Uma forma de organização da política, direcionada ao que estou chamando aqui de território, produz uma aproximação, um amálgama entre o gesto político e a prática reprodutiva cotidiana. Como escreve Wohleben, “Podemos até dizer que o verdadeiro movimento começa no momento em que as pessoas deixam de procurar alguma fonte externa para legitimar suas ações e passam a confiar e agir de acordo com sua própria sensibilidade, sua própria percepção do que faz sentido e do que é intolerável. A partir desse momento, todo o aparato da política oficial começa a entrar em colapso, permitindo que todos vejam que ele é o inferno gerencial que realmente é.” O mesmo autor reconhece que o verdadeiro horizonte dessas ocupações do espaço não é interromper o fluxo da economia, mas “produzir bases territoriais habitadas” e que, assim, permita colocar a ação política no “mapa da vida cotidiana”.
Duas citações podem, talvez, iluminar meu argumento. A primeira, de Marx, nos Manuscritos de 1844:
Quando artesãos comunistas formam associações, o ensino e a propaganda são seus primeiros objetivos. Mas, sua própria associação cria uma necessidade nova – a necessidade da sociedade – o que parecia ser um meio torna-se um fim. Os resultados mais notáveis desse fato prático podem ser vistos quando operários socialistas franceses se reúnem. Fumar, comer e beber não mais são meios de congregar pessoas. A sociedade, a associação, o divertimento tendo também como fito a sociedade, é suficiente para eles; a fraternidade do homem não é frase vazia, mas uma realidade, e a nobreza do homem resplandece sobre nós vindo de seus corpos fatigados.
Cento e setenta e cinco anos depois, Torino e Wohleben, escrevem:
Foram estas últimas lutas que mais claramente provaram a eficácia estratégica de armar “lugar” como elemento de ataque, de converter a habitação vital de um território de vida intensa em um meio de deslegitimação da gestão estatal e econômica. Ao mesmo tempo, a manobra dos Coletes Amarelos é diferente. Em vez de muitas pessoas de toda a Europa convergindo em duas ou três “zonas a defender”, as rotundas de Coletes Amarelos permanecem próximas da vida cotidiana. Esta proximidade à vida cotidiana é a chave para o potencial revolucionário do movimento: quanto mais próximos os bloqueios estiverem da casa dos participantes, mais provável é que esses lugares se tornem pessoais e importantes de um milhão de outras formas. E o fato de ser uma rotunda que é ocupada em vez de uma floresta ou um vale retira o conteúdo prefigurativo ou utópico desses movimentos. Embora isto possa parecer, à primeira vista, uma fraqueza, pode revelar-se uma força.
Apesar da distância histórica, elas se encontram ao elucidar uma questão de método: é no compartilhamento de um território, a partir de práticas cotidianas de reprodução da vida, que reside a possibilidade de transformação. Como escrevem Torino e Wohleben, “É a constituição de lugares coletivos que forma o núcleo destituinte/revolucionário do movimento, que supera a oposição entre a revolta e a vida cotidiana”. A ação política transformadora não estaria fundamentada essencialmente no local de trabalho ou na figura do trabalhador, nem na identidade territorial delimitada, nem em um evento de verdade, muito menos em uma campanha eleitoral apoteótica, mas sim em questões de reprodução social que atravessam o tecido social e constituem um território. Talvez esteja aí o lugar para pensarmos uma estratégia política para o tempo presente.





