Por Passa Palavra
Nenhum indivíduo constrói, sozinho, relações de qualquer tipo; é preciso haver pelo menos dois para construí-las. E mesmo estes dois, se não conseguem contagiar outros a envolver-se também nas relações criadas entre si, se não conseguem fazer estas relações alastrarem-se no espaço e perseverarem no tempo, não terão construído nada de duradouro. O problema do indivíduo autônomo é, para nós, desprovido de sentido.
Não apenas por isto, mas igualmente porque o individualismo e a fragmentação social são necessários para a reprodução das relações de exploração e opressão sob o capitalismo. Porque sob o capitalismo, diferente do que já aconteceu nos impérios da Antiguidade e sob o regime senhorial, a classe explorada não apenas sustenta os exploradores, mas recebe deles o quadro e as modalidades em que se organiza.
Esgarçados entre a alienação e a plena realização pessoal (nos campos psicológico e cultural), entre a mais-valia e a autogestão (no campo econômico), entre a hetero-organização e a auto-organização (no campo político), os trabalhadores levam uma vida dupla sob o capitalismo: ao mesmo tempo em que se inserem no capital e o fazem funcionar, enquanto portadores de força de trabalho, os trabalhadores entram em choque com ele, e esta dualidade é tão sistemática que os administradores de empresa, situados no próprio cerne dos antagonismos sociais, sabem que gerir a atividade produtiva consiste acima de tudo em administrar conflitos.
Por isto mesmo a fragmentação e o individualismo são instilados por todos os meios na consciência dos trabalhadores – apesar de sua vivência no trabalho, enquanto peças da complexa engenharia social que é a empresa, ensinar-lhes o tempo todo o contrário. Percebem que nada se produz no capitalismo sem o esforço combinado de muitos, mas percebem nas partes que compõem este todo muito mais adversários que colaboradores.
E é no trabalho mesmo, é no interior da empresa – qualquer que seja seu nome: escritório, call center, fábrica, ONG, repartição, redação, escola, almoxarifado, canteiro, oficina, shopping center, garagem, armazém etc. – onde esta ideologia encontra seu solo mais propício. A fragmentação das funções, cargos e categorias; o estímulo à competição entre setores, e entre trabalhadores do mesmo setor, através de promoções e bônus de produtividade; a diferenciação salarial entre trabalhadores que exercem as mesmas funções mediante critérios de cor de pele ou de sexo; técnicas de gestão de pessoal voltadas à fragmentação do corpo social da empresa; a experiência da descartabilidade dos trabalhadores, demitidos por desobedecerem às regras da empresa ou por cumpri-las com mais zelo que o esperado pela gerência; é tudo isto o que leva os trabalhadores a conceber-se não enquanto coletivo de produtores associados, não enquanto classe, mas enquanto indivíduos em constante competição uns com os outros. No âmbito do trabalho, capitalistas e gestores dividem a classe para melhor governá-la.
Apesar disso, cada classe social, sendo igualmente uma entidade econômica, começa a assumir também uma realidade sociológica quando o acirramento dos conflitos sociais leva seus membros a uma tomada de consciência quanto à posição social que ocupam, adotando então algumas formas de vida comum e ostentando certos traços culturais que se destinam a proclamar a sua inserção nessa classe e, ao mesmo tempo, a sua distinção relativamente às demais. O reforço da sua posição prática nas lutas sociais permite que uma classe definida em si, no plano econômico da produção e da apropriação da mais-valia, adquira identidade cultural e política e assuma uma realidade sociológica para si, convertendo-se numa classe perante os seus próprios membros e os membros das outras classes.
A longo prazo, nos movimentos amplos e mais profundos, a luta de classes consiste na oscilação da classe trabalhadora entre as fases da dissolução da sua existência para si e as fases em que, depois de uma reorganização interna mais ou menos demorada, ela apresenta novos tipos de existência para si. Nas rupturas revolucionárias a classe trabalhadora surge com uma enorme coesão política interna e uma consciência fortíssima da sua identidade sociológica e cultural, enquanto a burguesia e os gestores se mostram internamente repartidos e inseguros quanto aos padrões culturais e políticos que devem seguir. Reciprocamente, durante os seus longos períodos de apatia a classe trabalhadora limita-se a uma existência econômica e, deixando de ter referências políticas e culturais próprias, os seus membros procuram – em vão – imitar formas de comportamento dos membros das classes dominantes.
Dado o fato de os trabalhadores estarem submetidos por seis a doze horas diárias às rotinas e disciplinas do trabalho, nestes períodos de calmaria, é inevitável que a competitividade, a fragmentação e isolamento promovidos pelos setores de RH, seja introjetada em suas mentes e transborde para outros lugares. Em outros casos, e cada vez mais, este princípios se encontram presentes mesmo em momentos de lazer. O hábito, neste caso, faz o monge, a reza, a missa e a religião inteira. É nas conversas de bar, nas portas das escolas enquanto se espera a saída dos filhos, nos intervalos das partidas de futebol, nos salões de beleza, nas baladas, nas filas dos caixas dos supermercados, nas correntes de Whatsapp, é lá onde pululam os elogios à “iniciativa”, ao “esforço próprio”, à “meritocracia”, é lá onde é recorrente a afirmação de que um fulano “não conseguiria sobreviver na iniciativa privada”, é lá onde se comenta a falta de “tino para negócios” ou de “profissionalismo” de um beltrano… (ver aqui) Estas são as pedras basilares com que burgueses e gestores constroem, à distância, a dissolução da classe trabalhadora também fora das empresas.
A situação muda quando os conflitos sociais se acirram. Os sucessivos cortes de ponto causados pelo atraso dos ônibus, trens e metrôs são comparados com a impunidade dos atrasos de gerentes, supervisores e donos de empresas. As constantes dificuldades em tirar o orçamento doméstico do vermelho são confrontadas não com a ostentação por vezes caricata de algumas figuras públicas, mas com as fotos da última viagem de férias do parente mais remediado. As exigências de aceleração do ritmo de trabalho sem aumento salarial em momentos conjunturais favoráveis ao consumo, tanto quanto os programas de demissão voluntária, as listas de demissões e mesmo o fechamento de empresas em conjunturas de recessão, tudo isto é comparado com a relativa estabilidade dos estratos mais altos da hierarquia da empresa. Cada pequena opressão e humilhação, cada agravamento da exploração no trabalho, tudo isto vai-se acumulando no corpo e na memória de cada trabalhador (ver aqui), até que levam a alguma ruptura, individual ou coletiva. O absenteísmo, o corpo mole, a dispersividade, o uso inteligente do seguro desemprego (ver aqui); o “sacode” no supervisor, o boicote a certas ordens, a reação contra demissões coletivas (ver aqui); greves ditas “selvagens”, ou com ultrapassagem da pauta sindical (ver aqui); tudo isto são sinais de que o individualismo, a fragmentação e a passividade podem ser rompidos nas lutas, qualquer que seja o alcance de seus objetivos.
Portanto, a luta pela autonomia pode ser definida inicialmente como luta contra o individualismo e a fragmentação social impostas por burgueses e gestores aos trabalhadores, como luta pelo controle da produção, como luta contra a hetero-organização, como luta pela auto-organização. É no processo desta auto-organização, é como parte deste processo que surgem as lutas contra a alienação psicológica e cultural e as lutas contra exploração econômica (ou seja, contra a mais-valia). Embora tenhamos, forçosamente, de considerar os três processos separadamente por necessidades de análise, trata-se de três dimensões indissociáveis das mesmas lutas.
Mas os trabalhadores, apesar de estarem sujeitos à exploração no trabalho durante a maior parte das horas de seu dia, via de regra – há exceções – não vivem enclausurados em seus locais de trabalho. Sua vida fora do ambiente do trabalho é também fértil em campos de luta.
A série Reflexões sobre a autonomia contém 6 partes, com previsão de publicação de uma parte a cada domingo.
JUST A LITTLE HELP ou ÍNDIO METROPOLITANO
“You don’t need a weatherman to know which way the wind blows.” Bob Dylan
Não concordo com o tipo de crítica em que o texto se concentra (como a crítica ao individualismo entre proletários), pois parece um chamado à contenção, auto-repressão, ao recuo do proletariado. Como se tivéssemos de renunciar ao que gostamos (nosso “individualismo”) para se dedicar a algo trabalhoso e sacricial que um dia será recompensado. Digam o que for, mas isso é heteronomia do proletariado, não autonomia.
A autonomia do proletariado só começa quando os proletários ultrapassam, superam, nunca quando eles se contém. Por exemplo: querem que sejamos individualistas reduzindo-nos a instrumentos? Então vamos até o fim: nosso individualismo impede que aceitemos sermos tratados como coisas! Os empresários dizem querer acabar com os monopólios? Então acabemos com o monopólio primário que é a propriedade privada! A burguesia se diz contra o estado? Então acabemos primeiro com a polícia e as prisões!
Mas, na minha opinião, o erro principal do texto é a ideia de uma autonomia de classe que começa pouco a pouco (trabalho de base, de “formiguinha”), e perdura a longo prazo no próprio capitalismo.
Toda a história do século XX mais do que prova que toda e qualquer forma de luta que perdura e convive com o que combate não só perdura porque fracassou mas também é forçada a passar a existir no mesmo plano do que busca combater (passando para o lado da contra-revolução), constituindo uma nova classe dominante (gangue/burocracia) concorrente com a velha, e/ou uma nova forma de extração de mais-valia (por exemplo, muito trabalho feito gratuitamente para a organização/empresa/autogerida), que mantém da “autonomia dos trabalhadores”, “soviet”, “comunismo” apenas o nome, mas confunde o proletariado, fazendo-o ir por caminhos suicidas fantasiosamente “realistas” durante décadas e talvez séculos.
Mas se não começa pelo “trabalho de base”, “de formiguinha”, começa por onde, então?
Manolo, não sei… Só sei que não me parece nada autônoma uma luta que exija ainda mais trabalho do que o trabalho que o proletariado já é forçado a fazer. Acho difícil alguém discordar que, nesta era de toyotismo, de trabalho sem jornada, a premissa absoluta de toda ação autônoma (isto é, contágio revolucionário, solidariedade proletária) é relaxar.
humanaesfera, você parece descrever como trabalhador aquele tipo de indivíduo que na Argentina é chamado de “pecho frío”. É aquele cara que vive criticando o capitalismo, mas na hora de defender o colega que foi demitido não aparece nas reuniões, não propõe nada, prefere não sacrificar o seu imobilismo confortável para lutar por um companheiro.
Acredito que o texto vai num sentido completamente oposto, mostrando que a autonomia das coletividades se baseia justamente nas opções autônomas de cada indivíduo em encampar lutas que são essencialmente coletivas, quando o capitalismo nos empurra para o individualismo e para a desmobilização. E como o trabalho costuma ser ao menos metade das horas de nossos dias (sem contar o sono, quando existe), nada mais lógico do que abordar os processos de “autonomização” a partir destes ambientes, para não entrar numa contextualização histórica que subjaz.
Engraçado a diferença. Na parte 1 do artigo, que só tava provocando o nome “autonomia”, choveu comentário, deu polêmica. Ai essa parte 2 vem falar de trabalho, conflito de classe, e parece que o interesse todo acabou…
Não, Lucas. Você está redondamente enganado. Os trabalhadores se solidarizam não por caridade e auto-imolação (clássica visão burocrática, heterônoma), mas porque o ataque a seus companheiros é compreendido como ataque a eles mesmos como indivíduos em livre associação contra os patrões (classe). É compreensível que burocratas e rackets expliquem a seus capachos que o sacrifício e a dor sejam o valor supremo, pois afinal é prometendo recompensar alto a infelicidade que eles mantém seu poder. Mas não é compreensível que quem defende a autonomia diga a mesma coisa.
humanaesfera, então confesso que não entendi o seu comentário. Você poderia apontar no texto o parágrafo onde se encontra esta visão burocrática do sacrifício e da dor?
O humanaesfera está pirando na batatinha. O trabalhador não é esse ser epicurista que só se solidariza com outros tendo em vista interesses individuais. Além disso é no mínimo engraçado ver o sentido de luta autônoma e de “trabalho” de base serem associados a “exigir ainda mais trabalho do que o trabalho que o proletariado já é forçado a fazer”. Como se lutar coletivamente com os camaradas por melhores condições de vida e mais tempo para relaxar já não fosse algo que carrega de sentido a ação do trabalhador e lhe parece totalmente inversa ao “trabalho”, sinônimo de exploração e desgaste e tortura, que ele sofre cotidianamente. Quem associa a luta e o trabalho de base a “trabalho” ou “profissão” ou “coisa chata que eu preferia não estar fazendo” é a militância pequeno burguesa, que milita ancorada em ideias cristãs de altruísmo. Pro trabalhador lutar não é “trabalhar”, é finalmente fazer algo por e para si mesmo, algo carregado de sentido. Se o “contágio revolucionário” e a “solidariedade proletária” só ocorrem com a premissa do “relaxar” e do “fazer o que quiser” enquanto plataforma ideológica e organizativa “autonomista”, não sei o que foram todas as revoluções que tivemos até hoje.
REMEMBERING υπομνημα Recuerdos de Ypacaraí OXENTE!
“Não se trata do que tal ou qual proletário ou mesmo o proletariado inteiro se represente em determinado momento como alvo. Trata-se do que é o proletariado e do que, conforme a seu ser, historicamente será compelido a fazer.”
MARX & ENGELS – A Sagrada Família.
Lucas e Pablo, fiz duas críticas muito simples (nenhuma delas falácias “ad hominem”). Uma delas é a crítica à ideia do texto de que uma espécie de contenção, recuo, auto-repressão – por exemplo, abandonar o individualismo por ser ideologia burguesa – é a premissa da luta autônoma. A isso contrapus que a luta autônoma é, ao contrário, superação, ou ultrapassagem, e tentei explicar o por quê. Dei o exemplo do próprio individualismo. A outra crítica é sobre a defesa no texto de uma luta de longo prazo que convive com e no capitalismo, mas cuja dinâmica é a meu ver fatalmente burocrática (e busquei explicar o por que), e que a implicação prática dessa perspectiva errônea é o chamado oco e permanente para um árduo, dolorido, interminável “trabalho de formiguinha”, “trabalho de base”. Meu intuito não é irritar vocês, mas apenas expressar outra opinião sobre luta autônoma e as razões que tenho para não concordar com esses dois pontos do texto. Saudações.
Concordo com a crítica do humanaesfera acerca da implicação prática do ‘trabalho de formiguinha’, no sentido de possuir uma tendência fatal de terminar em burocracia. Parece que a autonomia elucidada não foge da mesma lógica de fragmentação das lutas do trabalhador que o capital cria (e ‘anseia’ que assim seja para sempre) por meio de suas estruturas. Ora, o capital além de ser internacional não é transnacional? Então o proletariado como classe global não pode se organizar de forma que reforce uma localidade restrita de ação. Ora Camaradas, o fato de o quadro e as modalidades em que o proletariado se organiza ser dados pelo capitalismo, devia deixar claro que eles servem tão-somente para assegurar a reprodução das relações de exploração e opressão. Se primeiro tivermos que nos organizar dentro de determinado Estado Nacional (em suas divisões fragmentárias: bairros, municípios, fábricas, locais de trabalho, Estados, etc) nunca conseguiremos superá-lo, porque estaremos querendo ou não excluindo a possibilidade de alastramento da luta. Tal como disse Marx e bem citou Ulisses, historicamente o Proletariado é compelido pela estrutura histórica a agir de determinada maneira para superar a lógica exploratória a qual está submetido, e a meu ver somente se nos organizamos internacional e transnacionalmente desde o início é que poderemos superar o atual estado de coisas (como? Não sei. Só acho que não pode ser de outra forma porque a própria estrutura social assim exige para que a luta tenha a potencialidade de ser coletiva e radicalmente ativa). Acho que o trabalho de formiguinha também acarretará em uma forma ‘diferente’ de estrutura hierárquica de poder (tal como é qualquer poder político propriamente dito) que reforçará sua manutenção dentro dos quadros do capitalismo. Ao mesmo tempo, sei que uma organização transnacional do proletariado terá complicações extremamente complexas e potencialmente desastrosas (umas das questões: como fazer que tal organização se assente em bases horizontais e não verticais? Como seria organizada ‘fisicamente’ essa organização? Por fim, como dar unidade às fragmentadas (fisicamente) formas de lutas anticapitalistas? Questões que foram postas pela Internacional Comunista e que seguem sem serem resolvidas). O perigo da assimilação-recuperação das lutas está por todos os lados. Mas não consigo ver outra forma de superar uma lógica exploratória que é global. A autonomia que detemos para criar as estruturas de lutas para ação é relativa. E o problema crucial é exatamente explicarmos o que é essa ‘relatividade’ e como agiremos a partir dela. Não sei como que uma luta que se construirá desde o início respeitando os limites do Estado Nacional pode influenciar que as outras partes da Classe Trabalhadora façam a mesma coisa. Permaneceremos divididos, pois continuaríamos lutando fragmentariamente. Não sei como poderia sair disso tudo uma unidade que vise superar o sistema como um todo. O que estou dizendo, aliás, não significa que estaríamos pulando uma etapa do processo de construção da luta da classe trabalhadora. Mas tão-somente que essa ‘etapa’ (nacional) não é radical e tende inevitavelmente a não ser superada, tal como aconteceu com a URSS e sua ‘revolução’. O processo de construção da classe (para si) necessita ser internacional desde o início.
Diego, a “tendência fatal de terminar em burocracia” não é exclusividade das lutas construídas pelo trabalho de base. É, ao contrário, a regra geral para toda luta dentro do capitalismo: na medida que não o destrói, reforça-o.
Reconhecendo que a burocratização e a recuperação serão uma tendência sempre presente em qualquer luta, a saída é abdicar de lutar ou assumir os riscos da ação coletiva e vivê-la em suas contradições? Aliás, bom atentar pra isso: alguns comentários aqui parecem supor o trabalho de base como uma experiência absolutamente anticapitalista que perduraria “a longo prazo no próprio capitalismo”. Não se trata disso, é uma experiência contraditória, como qualquer luta.
E não é a primeira vez que humanaesfera traz essa discussão. O mesmo debate apareceu nos comentários de um texto sobre uma cooperativa autogerida de transportes no Uruguai publicado aqui ano passado (http://passapalavra.info/2014/10/99976/).
Como comentei na época: além de descolada da prática, essa defesa de esperar relaxadamente a revolução, como se fosse vir como uma irrupção global repentina e extraordinária, negando qualquer esforço organizativo, me parece ao final descartar a ação coletiva dos trabalhadores e jogar as apostas no desenvolvimento inexorável das forças produtivas. (Se aproxima um pouco até daquele discurso de que foi o twitter que fez a revolução no Egito…)
A meu ver, “chamado à contenção, auto-repressão, ao recuo do proletariado”, “renunciar ao que gostamos” é justamente o que faz essa posição. Aceitar a exploração sem luta que é sacrifício.
a defesa do individualismo como uma entidade existencial imune de ideologia é um obstáculo para qualquer debate marxista sério. O indivíduo é uma abstração. Tampouco o capitalismo é uma substância que contamina tudo e a todos que entram em contato com ele.
Se queremos ver a superação do capitalismo como um processo que se dê “naturalmente”, sem intencionalidades, então comecemos jogando toda a obra de Marx no lixo.
Não faça trabalho de base quem não quer, mas equiparar o trabalho dos que sim o vêm como algo importante com o trabalho dos burocratas, isso me parece uma postura reacionária.
Caio, concordo com todas suas observações. A tendência de terminar em burocracia (ser assimilada-recuperada em favor da exploração capitalista) sem dúvida alguma é a regra geral para qualquer tipo de luta social no sistema do capital.
O que eu estou querendo colocar em questão para discussão é que o trabalho de base assentado inicialmente em condições meramente locais seria a meu ver muito mais propenso em terminar por criar-reforçar castas burocráticas do que uma ação que tivesse desde o início cunho transnacional. A referida autonomia já nasceria com um defeito heteronômico. Não estou dizendo que devemos abdicar de lutar ou assumir os riscos da ação coletiva e vivê-la em suas contradições, mas sim que se a classe trabalhadora é uma classe global, devíamos construir nossos organismos para que o caráter fragmentário da ação da classe pudesse ser extrapolado desde o início. Só assim construiríamos uma teia de solidariedade e não um conjunto de unidades individualizadas. A meu ver, as mediações para rompimento da ordem devem ser construídas nesse sentido.
Sobre a questão de que a premissa de toda ação autônoma (isto é, contágio revolucionário, solidariedade proletária) seria relaxar, também discordo completamente. Relaxar só serviria como mecanismo de recuperação da força de trabalho (reforçando o desenvolvimento da mais-valia relativa: o fator dinâmico do desenvolvimento do capitalismo). Ora, o trabalhador ‘relaxar’ é também parte indispensável para a reprodução do processo exploratório do capital. Seria uma forma passiva de luta.
Trabalhei durante alguns anos num bairro onde as ruas não tinham CEP, e onde só as ruas principais tinham asfalto. Dá para conseguir estas duas coisas relaxando?
Trabalho num bairro onde as pessoas temem a cada chuva que tudo lhes caia sobre a cabeça, pois o bairro inteiro é uma encosta. Dá para melhorar as condições de vida aí relaxando?
Trabalhei numa empresa onde um supervisor costumava ligar câmeras de vigilância nos sanitários femininos para se masturbar. Dá para botar fim nessa história relaxando?
Trabalhei noutra empresa onde as reclamações trabalhistas eram respondidas, todas, com a mesma petição, mudando apenas o nome dos trabalhadores, porque a empresa já tinha vários juízes e desembargadores “na mão” para os casos mais drásticos, e confiava, nos casos mais simples, que o peão não ia resistir a ver os R$ 2.000,00 (valores de 1999) rotineiramente oferecidos pela empresa nas audiências de conciliação — quando às vezes tinham direito a indenizações por acidentes, por horas extras, multas etc. que batiam nos R$ 5.000,00 ou R$ 10.000,00. Dá para melhorar isso relaxando?
Surpreende-me muito que no debate inteiro, ao invés de usar-se a lógica para compreender o sentido da ação política, seja a própria ação política a ser tratada procusticamente nos moldes de uma função lógica. Daí à inação é um pulo, pois a lógica, como se sabe, é fatal em sua formalidade.
AÇÃO DIRETA OU MILITANTISMO? (*) e (**)
Ao longo de sua história, o proletariado sempre contrapôs a ação direta às manobras da social-democracia, instituição burguesa de contenção e enquadramento da luta de classes, cuja estratégia se baseia na representação e na mediação, por meio dos sindicatos e partidos. Ação direta, ou seja, sem intermediários, nem representantes, e protagonizada por todos: nas greves e manifestações, ocupando as ruas, na violência das insurreições etc. Ação direta, também, porque recusando mediações e delegações, combate sem tréguas a impostura democrática, representativa e cidadã.
Em Davos, Seattle, Praga, Bolonha… grupelhos militantes vociferavam, mastigando o cadáver da ação direta, que confundem (?) com a violência das manifestações. Mas a violência, por necessária que seja, não é suficiente para caracterizar a ação direta. O proletariado contrapõe sua ação direta ao parlamento, aos sindicatos, às eleições…, lutando autonomamente, de modo reproduzível e generalizável em todos os lugares. Esta ação direta – além de ser violenta e rechaçar qualquer tipo de mediação ou representação – é realizável pelos proletários onde quer que estejam, desde que lutem enquanto classe autônoma. Portanto, o que acontece nesses eventos, por mais sincera e corajosa que seja a atitude dos manifestantes, nada tem a ver com ação direta.
Certamente, o que acontece nesses eventos é parte da ação (heterônoma, segmentada e espetacular) do proletariado. Além disso, as organizações presentes não impulsionam as lutas cotidianas, o aqui-agora da resistência proletária em todos os lugares (pois o capital está em todos os lugares), mas enaltecem o próprio ativismo, essa caricatura frenética da ação direta que apresentam como a mais válida de todas.
O cúmulo da mistificação ocorre quando tentam atribuir a tais eventos um caráter pré-insurrecional que eles não têm. O que poderia haver de efetivamente anticapitalista nessas manifestações que ocorrem em lugares determinados pelo calendário dos encontros da burguesia mundial? Pois é isso que chamam de ação direta contra o capitalismo mundial.
Quem defende a realização desses eventos antiglobalização ignora ou esquece que, com exceção dos proletários que lá vivem e que saem (?) às ruas para se manifestar, somente um punhado de militantes, pretensos representantes e dirigentes do proletariado de diferentes países, comparecem. O fato de que sejam abnegados e combativos, lancem pedras ou coquetéis molotov contra o aparato repressivo da burguesia etc., em nada muda seu caráter de ‘representantes’ de um proletariado cuja maioria os ignora.
Muito diferente seria se os proletários de cada país onde se realizam essas farras capitalistas ocupassem as ruas e tentassem impedir sua realização, e que proletários de outros países atuassem na coordenação e centralização dessas lutas em outros locais.
O que afirmamos é que a maioria dos proletários simplesmente não pode – se é que lhe interessa… – ir aos lugares em que tais eventos ocorrem. Quem comparece é uma pequena minoria, que tem condições de trabalho privilegiadas em termos de remuneração e de tempo livre para se deslocar. Em alguns casos, grupos de revolucionários fazem um imenso esforço para enviar uns poucos militantes a esses eventos. Mas é óbvio que, em geral, só os dirigentes dos sindicatos e dos partidos, que funcionam por representação e são fundamentais para a dominação democrática do proletariado, têm recursos para se deslocar permanentemente. Nada menos estranho, portanto, do que a predominância, nessas manifestações, dos mandarins políticos e sindicais, dos serviços secretos de vários países e a indefectível polícia.
A ação direta proletária é a de todos os dias, nas lutas autônomas contra os patrões, contra a burguesia que está diante de nós, contra os partidos e os sindicatos que querem perpetuar a escravidão assalariada. Sim, é preciso generalizar a luta, radicalizá-la e torná-la mundial, coordená-la; estimular o intercâmbio militante entre os proletários revolucionários de todos os países e combater o capital em todos os lugares. Mas é contraproducente e nocivo acreditar que os proletários do mundo se manifestarão, de forma cada vez mais massiva, num determinado lugar e hora, contra esses eventos, até liquidar o capitalismo.
Ainda que pudéssemos e quiséssemos, seria absurdo concentrar a luta do proletariado de todos os países num só lugar, porque não se trata de destruir a mercadoria em tal ou qual cidade ou mesmo país. Nossa ação direta, nossa luta como revolucionários proletários e internacionalistas, é para destruir o poder do capital. Em todos os lugares, no mundo inteiro.
(*)Publicado em outubro de 2001 (http://www.oocities.org/autonomiabvr/ars0.html) em Amigos da Revolução Social # 0.
(**) Para Diego Lennon Polese e Pablo McCartney Polese – beAMONGtween others passapalavrantes.
Manolo e demais, falei em relaxar obviamente me referindo às lutas no trabalho (o texto não é sobre isso?), como oposição ao trabalho e como premissa primária da luta autônoma (no trabalho e além). Ao contrário de defender o relaxamento como panaceia, tive de falar dele para criticar o militantismo (crítica que aliás é também um desdobramento das ideias do texto que o sábio Ulisses colou acima). Então vou esclarecer melhor essa crítica.
O militante parte do princípio de que “ele age” e que existe ou possa existir alguém que “não faz nada”. Mas, pelo contrário, se existimos, agimos. Não é preciso esperar uma panelinha de militantes para agir, a não ser numa luta heterônima. O que é preciso então? Agir como se é (um proletário), isto é, como igual. Primeiro apresentando opiniões e propostas (quanto aos meios e aos fins) tal e qual os outros iguais apresentam as opiniões e propostas deles. As propostas podem ser aceitas ou rejeitadas, adaptadas por outros ou não, difundidas ou não, e num “raro” momento sim e noutros momentos “normais” não. E o que uma assembleia decidir cada um pode concordar ou não, cumprir ou não. Isso não depende de apelos morais (por exemplo, criticar o “individualismo” como ideologia burguesa), mas de se a decisão coletiva é compreendida ou não como aumentando a capacidade de agir e pensar dos próprio proletários contra aquilo que os submete e/ou lhes causa sofrimento (pois há decisões coletivas boas ou ruim; por exemplo, suicidas). Como igual, posso apresentar meus desejos comunistas libertários e internacionalistas como um objetivo que me move. Pelo contrário, se chega alguém fazendo “trabalho de base”, já começa feio, porque pressupõe que “ninguém age” e que “ele age”. Fica mais feio ainda quando o militante alega “não ter objetivos” mas só “servir”. O que os proletários não deixam de perceber é que o militante age em nome de uma panelinha, buscando usar gente como instrumento assim como os patrões já usam.
Há também o efeito clássico do militantismo que é destruir a luta autônoma submetendo a luta de classes à polarização intra-capitalista entre duas classe dominantes concorrentes: burocratas (esquerda) e empresários (direita). A militância costuma falar em “a esquerda isso”, “a esquerda aquilo”, como se essa metade do capital fosse um agente da história ao invés da classe.
Se estamos falando de luta autônoma, vocês realmente acham que todas essas questões são irrelevantes, não pertinentes, imaginárias?
Diego Polese, concordo com tuas colocações sobre agirmos de forma lúcida sobre a necessidade de uma perspectiva de classe global. Se alguns proletários (numa “fissura”, numa “rede produtiva alternativa”, numa “empresa autogerida”, num país, numa região…) adquirem propriedade dos meios de vida, no mínimo eles próprios passam à classe proprietária explorando os demais proletários. Para o proletariado, se há saída, a saída é lúcida. Lucidamente ela só pode ser concebida como simultânea e universal.
Acho que todas essas questões são irrelevantes, não pertinentes e imaginárias. E que o anti-ativismo é tão prejudicial à luta de classes que Leo Vinicius deveria arder no mármore do inferno por ter traduzido “Give up activism” sem ter traduzido junto “The necessity and impossibility of anti-activism”.
Quando traduzi a primeira vez o Give up Activism acho que esse outro texto em resposta nem existia ainda, mas não tenho certeza, precisaria ver as datas. Há bastante tempo eu gosto mais da resposta também. Uma dialética muito bem explicitada.
De qualquer modo, obviamente o “Abandone o Ativismo” não é uma apologia de não se fazer nada. Ainda mais se se toma como autocrítica produzida num movimento de ‘ativistas’. A crítica incide mais num papel de ativismo que distancia esses grupos das pessoas comuns e não enxerga o que existe de potencialmente transformador no fazer delas. E acho que no todo foi a leitura que prevaleceu no Brasil também.
* quem está demandando que, como “Novidade” realizemos trabalhos de base com escala transnacional deveria voltar vinte anos no tempo e acompanhar o chamado “movimento antiglobalização”.
* quem está falando em dissociação e vanguardização pela realização do trabalho de base poderia relatar as experiências de trabalho de base que tem realizado.
* ainda é tempo de traduzir este outro texto.
Humanaesfera,
Disse Walter Benjamin que “convencer é infrutífero”. A isso uma pessoa de ideias radicalmente opostas às suas e aos que estão aqui criticando as lutas realmente existentes a partir de parâmetros lógicos (e transhistóricos) em torno do que elas “deveriam” ser e não são, comentou certa vez:
“A frase do W.B. faz pensar.
Juntei velhas idéias do barbudo:
A consciência não é senão o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo real de vida. Não basta que o pensamento busque a realidade, é preciso que a realidade busque o pensamento. E o que é a vida senão atividade?
A lógica é o dinheiro do espírito.” (a frase encontra-se nos comentários de: http://passapalavra.info/2013/01/71616)
Abraço
Pablo