A libertação que só advém com a superação do sujeito automático. Por Arthur
Leia aqui a 5ª carta de Helo a Arthur.
Ouro Preto, 1 de junho de 2016
Minha Helo,
Li com curiosidade e com um pouquinho de ceticismo sua última carta. Primeiro quero dizer, que aconteceu aqui algo muito grave entre Vanessa e Rogério, mas que vou resolver com alguma facilidade até.
Lembra-se de Irene? A nossa longa conversa sobre a moça surtiu algum efeito. Ela está bem melhor e os sintomas fraquejam. Agora me coloco algumas questões que sua carta suscitou. Algumas questões que estão ligadas a vida intelectual e a práxis.
Os intelectuais estão presos, principalmente em terras tropicais, a conviver com o ocaso de suas produções, parece-me mesmo que a crítica radical ao capital se encontra suspensa, embora, nenhum outro momento histórico fosse tão oportuno à crítica.
É nossa tarefa fazer jus ao nome de crítica radical. Temos mesmo que nos despedir daquela ortodoxia funesta, nos distanciar de todo dogmatismo que grassou por aqui desde, não se espante, 1922.
Isso se faz necessário pois, tal como o capital ― e suas forças produtoras e reprodutoras sociais ― esbarra hoje num limite interno, também os intelectuais de extrema-esquerda e sua crítica tornaram-se integrantes do seu objeto de crítica.
Isto significa que aquela crítica já de toda conhecida tornou-se atualmente obsoleta como o próprio capital. É preciso analisar criteriosamente os problemas advindos dessa situação.
Não é preciso ir muito longe para saber que o desenvolvimentismo, ou melhor, a busca da modernização capitalista atualmente encontra empecilhos lógicos. Do mesmo modo, a esquerda teve papel preponderante na salvação do capital.
Penso muito a respeito da “nova crítica” que surgiu. Com Harvey, com Meszáros, com Raymond Williams, com Terry Eagleton. Há ainda aí aquela dicotomia mal resolvida na relação entre capital e trabalho.
Mal resolvida no sentido de que se ignora o fato de que esta dicotomia marca justamente a manutenção da própria dicotomia que, não obstante, é fundamental para as relações de produções e reproduções do capital.
Por isso, acredito piamente que Postone instaurou um mal-estar na crítica anticapitalista. Mal-estar que embora tenha sido levado adiante por uma pletora de críticos assentados na “crítica do valor”, não fora bem resolvida por estes.
Acredito Helo que há muitos motivos para que a crítica do valor tenha se convertido numa seita da geografia (USP), e vou expor logo abaixo. Principalmente uma crítica que pensei cá com meus botões a Kurz.
Por enquanto, acredito que a ponderação que se seguirá é importante para se refletir em alguns pontos nodais da crítica. É preciso lembrar que o trabalho e sua circunscrição ao operariado faziam parte da ascensão do próprio capital.
Nesse sentido, de fato a reflexão teórica, seguida pela práxis, estava determinada pela forma dos desdobramentos ― avanços, recuos e superação ― do capital como força motriz da sociedade.
Infelizmente, a teologia do trabalho ganhou espaço central no interior dos movimentos operários. Acredito que o sucesso da coisa chamada neopentecostalismo tem inclusive muito em comum com a supervalorização do trabalho.
Sabemos, contudo, que aquilo que se oculta na ideologia neoliberal é justamente o limite da reprodução do valor porque a própria relação do desenvolvimento do trabalho foi afetada gravemente pela produtividade.
O fato do trabalho, no entanto, ter se tornado uma atividade específica no interior do capital não significa que ele não existia antes da modernidade como querem afirmar alguns teóricos dessa corrente.
Essa minha afirmação crítica a crítica do valor, porém, não vai no sentido corrente do marxismo tradicional de que é preciso libertar o trabalho. Não. É preciso se libertar do trabalho.
Isso fica evidente; se libertar do que sobrou do trabalho entendido como uma atividade produtora e reprodutora das formas sociais no interior do capitalismo, entendido com Meszáros, como sistema político.
Naturalmente com essa constatação há uma profunda ruptura com a ideia de uma ação emancipatória e pós-capitalista que se guarda circunscrita as tradicionais formas contestatórias do movimento operário.
Há um curto-circuito que precisa ser resolvido com a mediação entre a teoria e a prática. Mas, principalmente o resgate do primado do negativo como forma de aprofundamento crítico deve ser posto em prática.
Sendo assim, fica evidente que o que quero dizer é que é preciso estudar. Estudar profundamente e refletir sobre as tragédias ocorridas com a história do movimento socialista mundial.
É preciso entender o capital em sua totalidade, porque ele enquanto sistema é um sistema global cujos tentáculos hoje estão espalhados por todos os continentes. É preciso entender como o fetichismo engendra as formas de vida sob sua égide.
Desse modo, não se pode parar na peculiaridade do fracasso socialista é preciso entender o que engendrou esse fracasso a partir da adoção econômica nesses países que fizeram a revolução, mas não ultrapassaram o processo de modernização do capital.
Por exemplo, está evidenciado que a crítica revolucionária, porque radical, esbarrou, durante muito tempo, nos limites gerais da forma como o capital fomenta as relações sociais.
Foi com o aprofundamento da análise do fetichismo que se abriu a possibilidade de compreensão daquilo que impulsiona as formas de sociabilidade e a construção da sexualidade a partir da necessidade de valorização capitalista.
Nesse aspecto, durante muitos anos o marxismo tradicional, por assim dizer, comeu bola. Isso porque seus adeptos sempre negligenciaram o aspecto de formação das estruturas que englobam a sociabilidade no capital.
Infelizmente, era necessário muita água passar por debaixo da ponte para que as análises da obra de Marx retomassem o seu caráter verdadeiramente emancipatório (revolucionário e crítico) que se ocultou graças, sobretudo, ao marxismo de partido.
Tivemos a sorte de nascer depois da queda do muro de Berlim e do desmantelo da URSS. Digo isso porque, uma vez mais, o ambiente crítico se oxigenou ao se livrar das bestialidades produzidas pelo bolchevismo e pelo comunismo oficial.
Entendo que deve ser muito difícil para aqueles que vieram antes de nós, ver ruir todas as formas ideológicas até então tidas como radicais e revolucionárias. Mas, a crítica é impiedosa e não moralista.
Deveriam estar felizes. O que ruiu com suas convicções foi o próprio processo de modernização do capital que encontrou limites geográficos, espaciais e tecnológicos para seu processo de valorização empreendido pela necessidade do trabalho.
O trabalho se torna dispensável e o capital pela primeira vez desde então se torna retrógrado. Agora, ele, mais que tudo, se torna contraproducente para as ciências e o avanço da técnica.
O capital revela então sua verdadeira faceta: a necessidade de manter o trabalho nos limites óbvios de sua valorização. E é aqueles que o detestam que vão dar sobrevida aos seus suspiros agonizantes.
Precarização, perda de direitos, terceirização, aumento substancial no exército de reserva revelam os soluços do capital. O sangue já escorre por todos os países “inferiores” e tinge de vermelho o Mediterrâneo na fuga desesperada dos refugiados.
O protestantismo do escasso movimento operário já não dá conta das pautas emergenciais de uma época de urgência e horizonte decrescente. Só agora foi possível analisar, sem impedimento ideológico, a dissociação binária gerada pelo fetichismo.
Kant não existiu à toa. Essa dissociação sexual gerada pela própria forma-capital, isto é, pela maneira do desenvolvimento do capitalismo como força social, cindiu o terreno da sociabilidade realizando uma divisão social da sexualidade.
Nesse sentido, é preciso dizer que o capital tem gênero. Seu gênero é o masculino. A aparência de neutralidade esta ocultada pela própria realização do fetichismo. Sua verdade está na fundamentação encalçada pelo trabalho abstrato.
Não é à toa, também, que a mulher ainda não foi completamente assimilada ao interior das formas de produção e reprodução impressas pelo capital. O capital como sujeito automático e, portanto, negativo se afirma na dissociação binária entre os sexos.
Por isso aquela universalidade não é somente falsa, como afirma Kurz, mas, constitutivos reais das relações de desigualdade impressas pelo capital em suas variadas formas. Assim, podemos pensar também, a relação do negro e dos homossexuais.
Há infindáveis consequências teóricas com essa observação, que vão desde a construção semântica, até a fundamentação institucional. Os próprios desdobramentos conceituais estão ligados à forma patriarcal como a universalidade capitalista foi gerada.
Nesse ponto, temos que se atentar querida Helo, pois aqui há evidentemente um perigo de reduzir às relações sociais àquelas econômicas. Não se trata disso, pois o fetichismo e a crítica empreendida por Marx naturalmente ultrapassa o economicismo.
A questão que fica em pé é a da famosa frase: “eles fazem, mas não sabem o que fazem!”. A relação mágica da mercadoria que impulsiona a nossa relação demonstra duas coisas: 1) a noção de sujeito é quimérica; 2) o sujeito da relação é o capital.
Freud vai mostrar com grande sagacidade a diluição da categoria sujeito. Sujeito procurado pelo marxismo tradicional até hoje (risos). Analisar a universalidade do capital como excludente coloca uma expansão teórica para o feminismo.
Essa crítica Helo necessita acabar com o ponto de vista da identidade sexual. A essencialidade é uma banalidade e se coloca algo que está para além da busca de igualdade, qual seja: a libertação que só advém com a superação do sujeito automático.
É isso que possibilitará superar a relação patriarcal imposta pela modernidade em sua aderência ao capital como estrutura central para realização social. Por isso a relação desigual impregnada de machismo está objetivamente inscrita no mercado.
E aqui, minha namorada das namoradas, entra algo importante para refletir. Tudo que eu disse até agora tem a ver com uma preocupação que tenho pela sua prática maluca de seguir uma militância cega.
Parece-me que há sempre um desespero em atrelar imediatamente a crítica à práxis. Parece que há de todo uma exigência central que corrói a teoria na imposição por respostas que se tornem uma ação no mundo.
Assim, a prática adentra a teoria e caímos num sociologismo que acima de tudo corrobora e mantém os erros de sempre. Não se é mais pensado em termos categoriais e o empirismo domina toda a análise.
Por isso é preciso reafirmar, minha caríssima, o primado da paciência do conceito. E evidentemente chamar atenção para o fato de que práxis não é algo empírico como o marxismo de partido, assim, disseminou.
Isso só será possível com o distanciamento do entendimento tradicional não apenas da relação entre teoria e práxis, como dos próprios conceitos e como eles foram mobilizados durante o século XX.
Veja só, não estou falando de uma negação peremptória ao nosso legado teórico e histórico empreendido pela luta revolucionária, mas devemos colocar as questões e os conceitos em sua conjuntura.
Nesse sentido, temos muito o que comemorar. Podemos observar tudo do ponto de vista privilegiado dos fins dos tempos (Risos). Há para nós superação e não ruptura como afirma a crítica do valor.
Uma superação que vise acabar com a teologia do trabalho e da dissociação sexual empreendida pela produção e reprodução social sob a égide do capital. Superar é preciso, e a negação aí é de todo dolorosa. Trabalho do luto.
E tendo isso posto peço encarecidamente que entenda meu ponto de vista. Há necessariamente importância na militância. Em estar com os oprimidos e com aqueles que sofrem as mazelas do capital, no entanto, a crítica é fundamental.
Uma práxis sem reflexão está condenada ao vazio. De nada adianta se envolver numa prática cega sem uma análise contundente. Fazendo isso as confrontações e respostas efetivas postas pela crítica não serão captadas.
Não se pode sobrepor a prática à teoria.
Tendo dito isso passo agora a minha crítica ao Kurz. Algumas observações que fiz de maneira provisória e que precisam amadurecer para, com isso, chegar há alguma conclusão.
Kurz de maneira brilhante (mas, não original) demonstra como a noção de sujeito está diluída e imbricada ao próprio modo de funcionamento (ou circuito) do fetichismo. Sendo “figura” preponderante no esclarecimento.
Fica demonstrado em sua análise a abstração, ou melhor, a metafísica do sujeito enquanto “ilusão socialmente necessária” para manutenção (ou regulação: produção e reprodução sociais) do moderno sistema produtor de mercadorias.
Acredito firmemente que Freud, mais que qualquer outro, tenha dado a esse conceito algo muito mais relevante e angustiante e, ademais, extremamente doloroso para uma sociedade em que o sujeito é pensado como o “super indivíduo” completo. Me parece ainda que na sua análise, Kurz enxerga um sujeito de fato (sujeito automático que ele tem a infelicidade de considerar apenas como um oximoro) e um sujeito de direito, que precisa ser mantido no nível da ideologia do esclarecimento.
Sujeito que em verdade não existe senão enquanto forma de dominação. Por isso, a dominação sem sujeito. Ora, mas isso que aparece como logicamente inviável é na realidade social capitalista o que é viável. E esta é a contradição do capital que Kurz não vê.
Para Kurz esse sujeito nada mais é que o processo de desenvolvimento do valor ou a valorização do valor que ― e embora, não use esse termo, porque está muito afastado de Hegel ― subssume todos os indivíduos a seu processo.
Mas é justamente esse processo que circunscreve em si a totalidade do capital que Kurz, ao se deter somente na forma da mercadoria, não consegue entender. A oposição recíproca do capital não é apenas entre capital e trabalho, mas também entre realidade e abstração.
Por isso Helo, fecho com ele em alguns pontos essenciais de sua teoria. Mas, são os pontos inessenciais que expressa a verdade de sua análise. E nesses acho que se encontra o calcanhar de Aquiles dele.
Dos vãos e buracos de sua análise positivada, chama atenção a tentativa da busca antropológica para sustentar o conceito de fetichismo. Kurz parte de um pressuposto tradicional de que a ideologia é simplesmente um engano, uma visão turvada da realidade.
Ali ele me lembra muito o marxismo de partido. Fazendo isso, ele transporta o conceito de ‘segunda natureza“ como algo positivado. Lugar onde reina o maldito fetichismo que impede o homem de enxergar a verdade sobre si mesmo.
Eis que surge um neoromantismo advindo dessa postura. Reduzindo o romantismo apenas a uma nostalgia pelo passado, Kurz comete a mesma impostura ao pensar que ao acabar com o fetichismo da mercadoria há uma saída da segunda natureza.
Aqui está, pois, a busca pela coisa-em-si kantiana da qual Kurz é certamente, da chamada crítica do valor, o maior adepto. A nossa consciência é própria da segunda natureza independente do capital, pois a segunda natureza é o mundo social.
Um caso rousseauniano?
Hegel resolveu a querela, mas Kurz ignorando este, ainda se desdobra no problema da possibilidade ou não de uma metafísica futura. Se os românticos do século XIX pensavam uma volta ao passado. Kurz se lança numa ode ao futuro sem fetiche.
O sistema já colapsado levaria através de uma ação da comunidade perfeita ao desmonte das relações fetichista e estaríamos no mundo onde a ciência e a verdade da coisa mesma reinaria.
Assim, iríamos para a terceira natureza ou terceira via (risos). E aqui sua vã filosofia aparece na máxima expressão kantiana. Pois, as relações para Kurz são simplesmente dicotômicas.
Quando há contradição, a filosofia de Kurz logicamente as diluem em oximoros não havendo superação possível. E, desse modo, ele reativa o problema kierkegaardiano do Ou… Ou. Valendo lembrar que Kierkegaard pelo menos o resolve e Kurz não!
E aqui termino com essa reflexão. Reflita minha amada Helo sobre esses pontos, porque, do mais a mais, temos que ter clareza do que estamos fazendo nesse mundão doido de meu Deus.
Daquele que muito te adora
Arthur!
As imagens que ilustram esta carta são de Fernand Léger.
Leia aqui a 6ª carta de Helo a Arthur.