O que restará deste pobre período de sucessão à morte de Lênin? Por Boris Souvarine
Boris Souvarine, nascido numa família de judeus ucranianos, foi um dos responsáveis pela organização da 3ª Internacional na França, fundando o PCF (Partido Comunista Francês) em 1920. Ao opor-se às posições de Stalin e manifestar o apoio do partido francês a Leon Trotsky, terminou expulso do Comintern pelo comitê executivo em 1924, passando a organizar a oposição de esquerda na França. É neste contexto que escreve este artigo, originalmente publicado em 30 de outubro de 1925, na 2ª edição de seu Boletim Comunista. A publicação de sua tradução, feita por Marília Bellio e revisada pelo Passa Palavra, integra o esforço de traduções dos 100 anos da Revolução Russa (confira aqui o chamado e a lista completa de textos).
O comunismo internacional atravessa uma fase caracterizada pelo declínio. Desde nossa derrota de outubro de 1923 na Alemanha, todos os nossos partidos, exceto o da Rússia, que exige um estudo à parte, conheceram o enfraquecimento de seus efetivos e, infinitamente mais grave, a baixa de seu nível intelectual e moral, o desaparecimento gradativo de sua influência.
Devemos fechar os olhos frente a esse grande fato histórico, fingindo ignorar nossas sucessivas derrotas, nosso rápido decréscimo, para exibir um otimismo fabricado e incitar, assim, a vanguarda operária aos movimentos desconsideráveis, na ignorância da real situação e de verdadeiras relações de forças sociais?
Ou é preciso tentar ver e dizer as coisas como são, dar um cálculo exato do rumo dos acontecimentos, do desenvolvimento dos elementos econômicos e de fatores políticos, a fim de elaborar uma tática e métodos correspondentes ao nosso período de espera?
Para os marxistas, colocar a questão significa resolvê-la. O marxismo é uma ciência exata na qual os dados repousam sobre a observação dos fatos. Privados de conhecimento da realidade viva, não existiríamos como marxistas e nem, portanto, como comunistas modernos. Assim como legítimo e positivo é, aos combatentes, enganar o inimigo, o que era justamente recomendado por Lênin em uma famosa narrativa frequentemente mal interpretada, mais ridículo e tolo é enganar a si mesmo.
Ora, é enganando a si e fingindo que tudo corre bem internacionalmente que nossos partidos florescem, que nossas derrotas se tornam vitórias. Este método de informação e de interpretação conduz nossas organizações a cometerem erro sobre erro. E a burguesia é quem se aproveita disso.
Nós queremos servir ao proletariado, não à burguesia, e, para isso, dizer, sobretudo, a verdade. Nós o faremos, na medida do possível. Nisso, nós não inovaremos. Nós não renegaremos a tradição autêntica da Internacional, de Marx e Lênin, que não há nada em comum com os processos de honra que se encontram atualmente entre os responsáveis pela crise comunista.
No Boletim Comunista de 7 de março de 1924, o autor dos seguintes versos já sinalizava os primeiros efeitos da crise:
“O último ano nos foi duro. Reconheçamos, francamente. Nosso partido búlgaro, um dos quais éramos mais orgulhosos, foi vencido em uma luta assassina. Nosso partido alemão, do qual os progressos são, porém, consideráveis, decepcionou significativamente toda a Internacional com seus erros de outubro. Nosso partido norueguês se dividiu em dois. Nosso partido russo, o fundador, o conselheiro de toda a Internacional, encontra-se dividido…”
Essas verdades devem, então, serem complementadas com novas constatações. Desde o início desses acontecimentos:
– nosso partido búlgaro, uma vez decimado, quase foi exterminado;
– nosso partido estônio sofreu praticamente o mesmo;
– nosso partido alemão perdeu tudo que havia ganhado em 1923 – três quartos de seus membros, dois milhões de vozes operárias nas eleições, toda sua influência nos sindicatos (dois comunistas no último congresso sindical) e o essencial de suas posições no conselho empresarial;
– nosso partido sueco se dividiu, uma fração dele tendo se juntado à social-democracia;
– nosso partido inglês, com efetivo mínimo, recebeu um lamentável número de votos nas eleições e sofreu, no recente congresso do Partido Trabalhista em Liverpool, uma derrota esmagadora;
– nossos partidos inglês, italiano e americano atravessaram profundas crises e só evitaram a cessão graças ao recuo da Executiva da Internacional frente à chegada do desastre;
– enfim, o partido francês, esvaziado da maioria de seus membros, desorganizado e desacreditado, foi derrotado em tudo que fez.
Estes são os fatos. Convém estudá-los a sangue frio, sem lamentação ou ostentação.
O declínio físico, por assim dizer, escancarado diante de nossos olhos, as cessões e as crises, a perda de homens e os deslocamentos orgânicos não são o elemento principal do problema. O grave é, sobretudo, o declínio intelectual de nosso movimento. O prestígio do pós-guerra do comunismo não é mais nada além de uma lembrança. A burguesia ri de nós e a social-democracia não nos teme mais. A maioria da classe operária tem os comunistas por incapazes, irresponsáveis, aventureiros – utópicos irracionais, no melhor dos casos.
Quando os jornais burgueses evocam o “perigo comunista”, o fazem em função das necessidades de sua política como meio de pressão sobre os governantes mais “mansos”. Pobres dos revolucionários os que se utilizam desse jogo para se darem a ilusão de existir… O mesmo aos infelizes para quem as perseguições são um testemunho indubitável da força dos que as atravessam. Os anarquistas também conhecem as prisões, sem jamais terem realmente ameaçado o regime, como anteriormente à guerra dos herveistas. Na Rússia, são os mencheviques que paramos, ainda que a República dos soviéticos não os tema mais. É preciso ser muito desprovido de argumentos para não evocar nenhum outro além da repressão.
Olhemos um momento o jornal comunista da Europa ocidental: a falência ali está refletida a cada dia. Ali, não encontramos mais ideias, razões, fatos, demonstrações; apenas afirmações presunçosas, grosserias, clamores e, principalmente, coisas ilegíveis, conformidades de fórmulas prontas que tiveram sentido na época em que foram pronunciadas, mas que o perderam. Onde está o pensamento original, o espírito crítico, o trabalho espiritual do comunismo? Não está nos órgãos oficiais dos partidos. Só o encontramos em pequenos grupos de oposição que mantêm intactas suas convicções revolucionárias e se recusam a ceder ao imenso desvio do qual a Internacional é vítima.
O que restará deste pobre período de sucessão à morte de Lênin? Nada – a não serem ruínas e a triste recordação de uma queda que se deve não aos nossos inimigos de classe, mas aos nossos próprios erros.
Esse desvio tem como origem uma apreciação errônea do estado do mundo capitalista, da relação de forças sociais e políticas em presença de perspectivas próximas da situação. Enquanto o 3º Congresso da Internacional havia previsto possibilidades de estabilização do regime, apenas os revolucionários a todo custo e os mais iminentes pela inteligência e a cultura, como Trotsky e Radek – os ditos detentores do pensamento leniniano -, mostravam a mudança ocorrida na Europa após nossa derrota de outubro de 1923 e afirmavam a iminência da catástrofe. Foi apenas no executivo alargado de março de 1925 que eles retrataram suas afirmações anteriores, mas com reticências, não permitindo que fossem extraídas de suas retificações todas as consequências.
O erro de apreciação inicial se complicou a partir do conflito do Partido Comunista Russo. Bastou apenas compartilhar certas concepções dos vencidos deste conflito para ser taxado suspeito; e, como a maioria de nossos militantes da primeira hora se encontravam neste caso, demos início à desestabilização de quase todos os comitês centrais comunistas, fatos possíveis apenas com a ajuda dos mais artificiais e menos gloriosos processos. Os mesmos homens que preferiam a desgraça a uma cumplicidade em uma operação política desajeitada eram naturalmente aqueles que não temiam ir contra a corrente de ilusão e de aberração incitando nossos partidos a aventuras: desacreditamos copiosamente deles. Tanto em relação à tentativa de, a partir de agora, “tomar as rédeas” das seções da Internacional quanto à tentativa de adaptá-las às necessidades de uma luta final próxima, transformamos as estruturas de fundo em teto…
Os resultados dessa “bolchevização” estão diante de todos. Nossos partidos, distantes de ganhar “as massas”, decepcionaram-nas, perderam aderentes e simpatizantes. Sua política descreditou, por um tempo, o comunismo. O benefício de diversos anos de trabalho está perdido. Em diversos países, uma tática de motim, substituta à tática revolucionária, sacrificou a vida de nossos camaradas mais corajosos. Em outros, os métodos e as morais social-democratas foram implantadas, graças à eliminação de militantes experientes e à elevação arbitrária de elementos retrógrados – dóceis, mas não revolucionários.
Teriam os dirigentes da Internacional começado a se dar conta do estado real de nosso movimento, da urgência da consolidação de nossos partidos, da necessidade de revisão dos métodos e táticas às quais devemos tanto insucesso? Alguns acreditam nisso, vista a intervenção enérgica do Executivo, retendo nosso partido irmão da Alemanha na encosta de onde se precipitou em direção ao abismo. Gostaríamos de acreditar também. Ainda que o mal feito seja profundo e que os anos sejam indispensáveis para repará-lo, ainda é possível que muito seja salvo, e o Executivo detém o poder necessário para isso.
Que ele possa usá-lo, então. E, no aguardo, o Boletim Comunista trabalhará de seu lado para auxiliar os militantes a se recuperarem, a se orientarem, a realizar a recuperação da base sem a qual não haveria verdadeira Internacional Comunista.
As esculturas que ilustram o texto são de Andrey Zignatto.
Esse artigo é a prova de que a “autocrítica” da esquerda anticapitalista é apenas superficial. A receita de bolo é a mesma e, no fim das contas, o problema é sempre tático. A teoria já ficou esquecida e, como o autor mesmo disse, a pobreza intelectual se proliferou a um ponto irreversível. Continuamos sendo filhos de manuais e apostilas todos carcomidos pelos ratos.