Por João Bernardo
Com a autorização do autor, transformamos estes comentários de João Bernardo ao artigo “Fascismo à Brasileira (6)” em um artigo à parte no interesse da discussão colocada. Não se trata originalmente, então, de um artigo do autor. Por Passa Palavra
Comentário 1
O fascismo de entre as guerras mundiais só se converteu de movimento em regime em países que depararam com obstáculos ao crescimento económico, fossem esses obstáculos de ordem económica ou política. A situação hoje parece equiparável, já que as alterações geoeconómicas provocadas pelo decoupling (peço desculpa por não usar o termo «desengatamento», que é realmente difícil de engolir para um português) geraram tendências fascistas em alguns países. No Estados Unidos, por exemplo, o governo Trump, sem ser fascista, acolhe uma ala fascizante, de que Steve Bannon foi o elemento mais destacado. Mas o caso até agora mais significativo é o italiano, com o governo de aliança entre a Liga e o Cinco Estrelas. A Liga é um partido fascista com abertura aos fascistas radicais, e basta ver as recentes expressões de simpatia de Salvini pela CasaPound.
A este respeito, cabe aqui uma reflexão. Os conceitos «populismo» e «populista» não gozam de simpatia entre a extrema-esquerda, e logo no primeiro artigo desta série Manolo revelou-se um tanto ou quanto avesso ao seu emprego. No entanto, se esses conceitos hoje reapareceram e se difundem, isto deve-se a uma necessidade prática, porque sem eles torna-se impossível reunir num mesmo quadro de análise fenómenos que na prática se encontram reunidos. Sem admitirmos a existência de uma teia populista, mais ampla e difusa do que o fascismo, dificilmente se explica a convergência da Liga com o Cinco Estrelas. No centro dessa teia impera a figura de Putin, e são ele e o círculo em seu redor quem tem fomentado politicamente e apoiado monetariamente este novo populismo, que junta um programa social a uma estratégia nacionalista. Na Europa, a estratégia nacionalista visa o ataque à União Europeia, esforçando-se por fragmentá-la e por desagregar a Zona Euro. Nesta estratégia convergem partidos fascistas, como a Liga em Itália, partidos da extrema-direita radical, como o Rassemblement National de Marine Le Pen em França, e partidos comunistas, como Partido Comunista Português, que recentemente votou no Parlamento Europeu em defesa do regime de Orbán. Sem o conceito de populismo, mais amplo e mais ambíguo do que o conceito de fascismo, não se pode dar conta da formação desta teia. E esta teia é imprescindível também para entendermos o que agora ocorre no Brasil.
É que o decoupling não se limitou a erguer obstáculos ao crescimento económico em países que antes haviam ocupado uma situação dominante, mas fê-lo igualmente em países emergentes como o Brasil. No terceiro artigo desta série Manolo, depois de chamar a atenção para as alterações que o decoupling está a provocar na forma de internacionalização da economia brasileira, escreveu que «a crise econômica afeta mais os capitalistas pouco capazes de exportar capitais ou de atrair investimentos externos diretos». Ficou assim desenhado um dos campos de apoio de um fascismo brasileiro, quando empresas arcaicas e ineficazes procuram o amparo do poder político para construírem uma reserva de mercado. Seria bom que a extrema-esquerda reflectisse a partir desses dados, em vez de papaguear as eternas diatribes contra o neoliberalismo e o imperialismo (entendido exclusivamente como Estados Unidos). Os conceitos ultrapassados que têm curso na extrema-esquerda só se explicam pelo facto de ela estar vocacionada para uma realidade também ultrapassada. O problema é que com uma chave de parafusos só se pode manipular parafusos, e se há muito já deixara de ser possível analisar em quadros nacionais uma economia que se internacionalizara, hoje é impossível analisar como soma de nações uma economia que se transnacionalizou. Ora, o trágico é que uma boa — ou má — parte da extrema-esquerda pretende dar voz aos mesmos anseios, apresentando como programa o mesmo proteccionismo e o mesmo nacionalismo que são o programa do fascismo clássico. É aqui, na teia assim gerada, que o conceito de populismo me parece imprescindível.
Este carácter estatista da extrema-esquerda é mais lamentável ainda quando pretende enfrentar a reforma das leis do trabalho. Nos quarto e quinto artigos desta série Manolo traçou um quadro diversificado da exploração da força de trabalho brasileira nas actuais circunstâncias, mas neste comentário vou limitar-me a sublinhar um aspecto, especialmente interessante por atingir sectores modernos. É que a reforma trabalhista não decorre, ou não decorre exclusivamente, no plano governativo. Se os governos não promovem essa reforma, as empresas realizam-na na prática. A uberização é a modalidade mais notória dessa reforma trabalhista realizada na prática, dando à terceirização uma nova amplitude. Muitas vezes o desemprego não significa que não se trabalhe. Significa que se trabalha sem estabilidade nem garantias, e se nesta situação muitos desempregados se dedicam a actividades tradicionais ainda vivas no Brasil, noutros casos a actividade é mais moderna e por isso mais rentável para o capitalismo. É aqui que a Uber e congéneres têm um vasto campo de acção. Em suma, as grandes remodelações da economia capitalista não dependem de eleições nem de jogos partidários. Os políticos eleitos é que se adequam às remodelações já efectivadas na prática. Entretanto a esquerda só consegue lutar contra a uberização propondo reservas do mercado de trabalho, ou seja, lançando uns trabalhadores contra outros, numa réplica do que sucede com o nacionalismo e o proteccionismo.
No Passa Palavra têm sido publicados ultimamente numerosos artigos e comentários que debatem as eleições presidenciais e as alternativas que elas colocam. Ora, é um sintoma do estado a que chegou a esquerda anticapitalista, ou melhor, do estado a que chegou o anticapitalismo na esquerda, que esse debate esteja a processar-se no plano estritamente político, em vez de tomar como pano de fundo a situação descrita e analisada por Manolo no quinto artigo desta série. A luta da classe trabalhadora no plano económico que lhe pertence encontra-se sem voz nem expressão, e o que se ouve é apenas o confronto entre políticos profissionais no plano das instituições capitalistas.
Se os movimentos identitários forem, como tenho afirmado que são (ver o último capítulo do meu livro Labirintos do Fascismo, na sua 3ª versão, uma componente do fascismo pós-fascista, então o que está neste momento a ocorrer no Brasil é um confronto entre dois tipos de fascismo, um representado por Bolsonaro e o outro pelos movimentos identitários que se lhe opõem. A clivagem não é, porém, tão nítida, pois entre os apoiantes arruaceiros de Bolsonaro, aquilo a que eu poderia chamar as suas milícias informais, predominam as réplicas de movimentos sociais originariamente anticapitalistas, num processo que já foi analisado no Passa Palavra. Ora, este confronto entre tipos diferentes de fascismo não é uma anomalia nem uma novidade. Ele ocorreu na Roménia, onde duas modalidade de fascismo se exterminaram reciprocamente numa espiral sanguinária; ocorreu na Áustria, onde um dos tipos de fascismo liquidou o outro; ocorreu também, embora sem chegar a consequências tão extremas, no Japão, na França ocupada pelas tropas germânicas, em Portugal em 1933-1934; e, para não ir mais longe, no Brasil durante o Estado Novo, quando a Acção Integralista defrontou Getúlio Vargas.
Será que estaremos agora reduzidos a um remake, assistindo ao confronto entre o fascismo e o fascismo pós-fascista?
Comentário 2
O comentário do Manolo anuncia todo um vasto programa, mas uma passagem chamou-me especialmente a atenção:
[…] não há nenhum partido ou movimento fascista organizado no Brasil que tenha relevo ou impacto suficientes para causar assombro. Mas é isto necessário em tempos de comunicação horizontalizada? É isto necessário quando, como externalidade negativa das facilidades à comunicação causadas pela internet, basta um youtuber afirmar algo para que passe como verdade sem qualquer comprovação? É isto necessário quando estes mesmos influenciadores digitais (ou digital influencer, para os mais “descolados”) mantêm algum nível de consistência e coerência em meio a seus delírios, aparentando alguma verdade? É isto necessário quando há um público não digo nem fascista, mas conservador, formado em meio às forças armadas, às forças privadas de segurança, ao crime organizado e ao neopentecostalismo, onde os delírios encontram ampla ressonância? A meu ver, não é preciso um movimento fascista ostensivo neste contexto. Basta que os temas do fascismo e as teorias conspiratórias tenham uma boa roupagem audiovisual para movimentar centenas de milhares de pessoas. É Goebbels elevado à enésima.
Lembro-me de já há muitos anos, na verdade já há várias décadas, eu dizer em conversas que a Inglaterra (a Inglaterra especificamente, não a Escócia) não precisava de ter um partido fascista porque a imprensa de massas, os tabloids, cumpriam essa função. Eu dizia isto sobretudo como blague, embora com uma parcela de seriedade. Mas hoje a questão, tal como o Manolo a colocou, é inteiramente séria. No entanto, será que essa rede de comunicação horizontalizada pode continuar a substituir-se a um partido fascista, ou será que em breve há-de gerar um partido fascista? O que sucedeu em Itália com o Movimento 5 Estrelas poderá talvez ser elucidativo, porque este Movimento baseou-se inicialmente numa rede estabelecida na internet e funcionando à maneira das redes sociais, e agora assumiu o perfil de um partido clássico, aliando-se à Liga para formar o primeiro governo claramente fascista da União Europeia.
Aliás, não levem a mal a minha observação, mas se os brasileiros olhassem para o que se passa fora do Brasil poderiam entender melhor o seu país. O mais urgente é conhecer a actuação do presidente Duterte nas Filipinas, porque ele é uma versão aumentada de Bolsonaro — aumentada em truculência e em desmandos verbais. Serve de lupa. Se quiserem prever o que poderá ser uma presidência de Bolsonaro, olhem para o que é a presidência de Duterte.
O autor é muito lúcido. O único ponto que faltou ressaltar é que a realidade concreta em que vive o povão é muito terrível, tão terrível ao ponto de verem na violência bolsonariana um possível horizonte de melhora. O horror das quebradas, a violência sanguinária do crime, o massacre cotidiano é algo real, basta ver as páginas de gore.
No caso então a coisa fica numa escolha moral. Entre os dois fascismos presentes, a população opta por aquele fascismo que está moralmente mais próximo dela.
Uma pena que deram destaque exatamente ao ponto mais frágil – o único ponto que eu particularmente tenho discordância – desses comentários que foram feitos e transformados em artigo.
Não é questão de discordar de que os movimentos que se costuma chamar de multiculturalistas ou identitários carreguem elementos de fascismo (os elementos de fascismo a esquerda também os carrega, eles sempre estão mais ou menos difusos na sociedade liberal). Mas no caso prática brasileiro, no momento, não, está fora da realidade que assistimos afirmar um confronto entre dois fascismos. A analogia com o integralismo e o Estado Novo não é correta para o que estamos vendo nesses percurso eleitoral. As manifestações do #elenão, pode-se até discordar taticamente, podemos concordar que não ajudam a romper a fragmentação da classe trabalhadora (pelo contrário), mas não carregavam traços de exclusão de gênero/biológica ou de regressão identitária étnica etc.
O fascismo pós-fascista, vindo desses meios que estão inseridos na esquerda, ficou bem evidente foi em outra ocasião: na chacina do Charlie Hebdo, em que boa parte da esquerda, imersa nesses paradigmas multiculturalistas regressivos, justificou e praticamente apoiou a barbárie.
Mas isso definitivamente não está vindo à tona e nem tem expressão nessas manifestações eleitorais. Elas estariam mais próximas a manifestações pela legalização do aborto na Argentina do que apoio envergonhado à barbárie do Charlie Hebdo.
https://www.theguardian.com/world/2018/oct/23/philippines-rodrigo-duterte-dip-popularity-ratings?CMP=share_btn_tw
O homem que talvez seja um espelho do que será Bolsonaro no futuro:
1) admitiu execuções extrajudiciais no contexto de sua “guerra contra o tráfico” (https://www.dn.pt/mundo/interior/presidente-das-filipinas-admite-execucoes-extrajudiciais-na-campanha-antidrogas-9919965.html).
2) mesmo diante de protestos, afirmou que tal política continuará tão implacável e assustadora quanto no primeiro dia de governo (https://www.dn.pt/mundo/interior/milhares-de-filipinos-saem-as-ruas-contra-viragem-ditatorial-de-pr-duterte-9627152.html).
3) disse a seus soldados para atirarem nas vaginas das guerrilheiras do movimento comunista que controla parte do país (https://www.dn.pt/mundo/interior/duterte-disse-que-e-preciso-disparar-nas-vaginas-das-guerrilheiras-comunistas-9113419.html).
e
4) ofereceu aproximadamente 500 dólares para a pessoa que conseguir matar um guerrilheiro comunista (https://www.dn.pt/mundo/interior/pr-das-filipinas-oferece-cerca-de-500-dolares-a-quem-matar-um-rebelde-comunista-9119895.html).
Mas não vejo as pessoas falando sobre isso e fazendo os paralelos que deviam estar sendo feitos.
Leo Vinicius,
A questão não é ver, neste momento em que debatemos, em pleno processo eleitoral, um embate decisivo entre identitários e bolsonaristas. A questão é que o terreno já foi, de certa maneira, preparado. O presente processo eleitoral já transcorre num momento em que os identitários conseguiram imobilizar as esquerdas e em que elas foram novamente tragadas pelo lulismo.
Aliás, diga-se de passagem, não veremos mesmo os identitários – aqueles que são partidários do escracho, por exemplo – em batalhas campais contra os bolsonaristas… afinal, a marca da atuação das pessoas que tentam se afirmar como elite dos movimentos sociais, recorrendo para isso à exclusão ou subordinação de opositores em termos biológicos, é a covardia…
Leo,
Os motivos que me levam a integrar os movimentos identitários na teia que denomino fascismo pós-fascista estão enunciados no capítulo que indiquei em link. É um problema global, que ultrapassa muito as fronteiras do Brasil e o momento que vivemos. E o carácter desses movimentos não se altera pelo facto de num certo país e numa certa eleição os seus participantes irem votar em Fernando Haddad. Tal como Fagner Enrique observou no comentário anterior, «a questão é que o terreno já foi, de certa maneira, preparado. O presente processo eleitoral já transcorre num momento em que os identitários conseguiram imobilizar as esquerdas e em que elas foram novamente tragadas pelo lulismo».
Haydin,
Concordo com a sua observação. Há já vários anos o Passa Palavra publicou um artigo onde se afirmava que todos os presos eram presos políticos. Procurei-o agora mas não soube encontrá-lo. Nos comentários eu critiquei o artigo, defendendo a distinção entre presos políticos e presos comuns, o que me valeu as injúrias habituais. Lembro-me de que houve alguém que me disse, em privado, que concordava comigo, mas que era impossível dizer isso publicamente, porque a tese de que todos os presos eram presos políticos se convertera num dogma dos movimentos sociais. Num dos meus comentários ao artigo observei que, entre todos os participantes naquele debate, era eu provavelmente o único que já tinha sido tanto preso político como preso comum, e por isso sabia na prática do que estava a falar. Mas, como sempre sucede, os dogmas não são permeáveis à razão prática.
Ora, depois de tantos anos de uma certa esquerda a defender a ilusão moralista de que todos os presos seriam presos políticos, não espanta que a população das favelas e periferias tome a atitude que Haydin referiu. Os erros pagam-se, e nos erros políticos pagamos todos, mesmo quem não os cometeu.
João, o artigo que provocou o debate sobre os presos políticos foi esse aqui: http://passapalavra.info/2014/06/96524. Quem bate esquece, mas quem apanha leva na memória.
Creio que se trate deste artigo: http://passapalavra.info/2014/09/99187
“os identitários conseguiram imobilizar as esquerdas e em que elas foram novamente tragadas pelo lulismo.” escreveu o Fagner Henrique.
Que processo de imobilização foi esse? Ah sim, principalmente na tal esquerda autônoma isso tem sido preocupante, principalmente em algumas cidades. mas essa esquerda autônoma fica sempre colocando responsáveis para sua própria incapacidade. Ou é na repressão de governo do PT, ou é nos identitários.. como se fossem esses agentes que inviabilizaram ela a ter grande penetração na sociedade…
Fico mais curioso por essa afirmação de serem tragadas pelo lulismo. O que é ser tragado pelo lulismo? É fato que tem muita gente que nunca participou de campanha eleitoral na vida e que está fazendo nesse segundo turno (digo campanha na rua mesmo, não na internet). Isso é ser tragado pelo lulismo? Fazer campanha para um candidato que se opõe a outro que até seus apoiadores estão reconhecendo como fascista (vide a tentativa do TRE-RJ de retirar uma faixa antifascista da UFF como se ela fosse propaganda eleitoral), é ser tragado pelo lulismo? É dar importância demais pro voto. Ora, ser tragado pelo lulismo é se, com Haddad eleito, se passar a defender as políticas de governo acriticamente, não demonstrar independência etc.
Esse medo do Lula ou do lulismo tem é tragado muita esquerda pra direita e, como já disse comentando outro artigo aqui publicado, tem jogado água no moinho do fascismo, reforçando e mobilizando as significações imaginárias centrais e instituintes desse neofascismo brasileiro.
Mas enfim.. daqui dez anos se olha pra trás e vai se ver onde cada um estava. Alguns pelo jeito requentando ou renovando os erros do passado, como fizeram os comunistas com a social-democracia e sua teoria do socialfascismo.
Bom, cá estamos a falar sobre fascismos e bolsonaro. Me surpreende um pouco sobre como certos elementos foram deixados de fora, daí vou pontuá-los aqui.
1. Os paralelismos com os fascismos, neo-fascismos e afins presentes na Europa são relevantes, mas me parece, sinceramente, que precisamos explicitar um gancho com a própria história do Brasil. No fenômeno bolsonarista, temos uma clara referência (e ameaça de retomada) à ditadura militar. Esta terminou há bem menos tempo atrás do que os regimes fascistas históricos europeus e, se teve semelhanças, teve também diferenças. Este passado nunca foi plenamente condenado, e agora pagamos um preço por isso. Meu ponto é o seguinte: seu posso concordar com as colocações feitas sobre a democracia institucional feitas aqui e no artigo de Manolo, cabe também falar sobre a democracia como elemento das relações sociais mais em geral. Simplificando, a ideia de que somos radicalmente iguais, e que as hierarquias sociais e econômicas a que estamos sujeitos é que não são “naturais”. A sociedade brasileira é muito pouco democrática, a começar pela família, passando pelas relações trabalhistas e pela religião. O autoritarismo está inserido em todo tipo de relações sociais. Este me parece um elemento fundamental que atrai para o bolsonarismo, antes mesmo que dificuldades econômicas ou outras questões. Se a ascensão política de Bolsonaro está ligada a outros fenômenos mundiais, também é fruto da nossa própria história, brasileira e sul-americana, e me parece importante não perder isso de vista.
2. João Bernardo afirma que “é um sintoma do estado a que chegou a esquerda anticapitalista, ou melhor, do estado a que chegou o anticapitalismo na esquerda, que esse debate esteja a processar-se no plano estritamente político, em vez de tomar como pano de fundo a situação descrita e analisada por Manolo no quinto artigo desta série.”
Pode ser um sintoma, mas não apenas isso. Olhemos bem para o fato de que, nestas eleições, não se fala em economia. O governo temer foi um desastre, e isso mal é mencionado. Acontece, porém, que estamos em campanha eleitoral desde o impeachment. Aliás, o fato do impeachment/golpe, como preferirem, nem mesmo ter sido mencionado, me surpreende. Seja esse acontecimento entendido como reorganização de forças econômicas, ou políticas, é inegável seu impacto no momento presente, seu papel, inclusive, em varrer do cenário atores políticos tradicionais. Não dá para ignorar, para além de seu impacto político e econômico, sua força discursiva. Consideremos que, apesar da crise econômica, a campanha bolsonaro pouco ou nada fala de economia. Quando Paulo Guedes fala, é desautorizado pelo candidato. Ela fala pouco de economia, e tudo vai bem para os seus eleitores. Quem o cobra são os que nele não votam. Me parece relevante notar que o que move a campanha é uma chave discursiva que gira em volta do anti-petismo, e de tudo que ele implica, inclusive coisas que nada tem a ver com ele, mas que lá estão, no pacote antipetista duro. É claro que a situação econômica do brasil e do mundo é uma condição que movimenta o eleitorado, mas não tanto neste momento eleitoral, especificamente. Tá aí uma razão pela qual se fala muito de política e pouco de economia: é em volta do discurso político q estas eleições se movem, e isso não dá para ser desprezado.
Neste sentido, acho que o paralelismo com o 5 estrelas italiano também não se sustenta. O 5 estrelas nasceu em outro contexto político, e não como sistema descentralizado nas redes sociais. Seu blog, onde os inscritos podiam votar, sempre foi centralizado, o sistema inclusive sujeito a investigações. Mais de uma vez, apesar do voto lá explicitado, a opinião de Grillo contou mais na hora de direcionar os parlamentares. E nesta última eleição falou-se sim bastante de economia na italia, fosse sobre renda de cidadania, fosse a visão distópica de q os migrantes são quem rouba o emprego dos cidadãos, fosse para dizer que os problemas econômicos do país são causados pela UE.
3. Confesso que sorrio, quando leio do fascismo dos “identitários” lacradores e do escracho, como comentou alguém lá no texto do Manolo. Sorrio porque me parece a reação de um tiozão que fez uma conta no twitter mês passado, e ainda não entendeu bem como é a dinâmica das coisas por lá.
Lacradores e do escracho são palavras da internet, associadas, às vezes, à militância online. A vida fora da rede é bem diferente. Chamar estas pessoas e grupos de “identitários” é raso, sinceramente. As pessoas não são “identitárias”. Elas levam para o campo político algo que compõe sua identidade de forma inescapável, que não é uma escolha: o ser lgbt, ser negro, ser mulher, por exemplo. O que pode mudar é se a pessoa continua fazendo desse aspecto de si bandeira política ou não. Ela ainda será essas coisas. Nos grupos, coletivos, alas de partidos, enfim, que levantam essa bandeira, há uma clareza, sustentada teoricamente e nas práticas cotidianas, de que o sistema capitalista é um problema, não último, porque se alimenta também do racismo e do machismo, por exemplo, para existir. Esse não é um campo político para quem conta a “identidade”, apenas. Nunca foi. Há, também, a clareza de que, se a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco, a mulher negra pobre e favelada está mais vulnerável do que, digamos, uma jovem branca que vive precariamente de fazer freelas no design. Me parece evidente que, se assumimos um olhar interseccional, conjunto a um dialético, essas coisas saltam aos olhos. Dito em termos muito simples, as pessoas estão inseridas em conflitos sociais e de classe não só pelo lugar econômico que ocupam, mas também pelo que são. Se as pessoas querem que seu existir seja reconhecido, em termos culturais e políticos, e também econômicos, a melhor via para isso seria o silêncio? Esperar que o machismo e o racismo, que são estruturantes da nossa sociedade, simplesmente evaporem? Estas coisas, o lugar que se ocupa no conflito social, enquanto indivíduo e enquanto grupo, são muito claras a todo mundo que se envolve na luta política também a partir de bandeiras “identitárias”. Talvez quem precise sair da internet são vocês, se ainda não notaram isso.
Por fim, uma última observação sobre a “fragmentação”, qual que ela seja. Dou aqui o exemplo dos movimentos de luta no campo das cidades, hoje motores de um capitalismo global talvez mais do que inteiras nações. Há muitos setores. Moradia, direito ao trabalho, mobilidade, meio ambiente, o que cabe no guarda chuva do direito à cidade. Nestes espaços há, cada vez mais, uma perspectiva de que a fragmentação, se nos articularmos em redes, na verdade nos dá forças, pois a heterogeneidade soma. Novas perspectivas, percursos de luta, construções políticas. Nesses lugares também cabem as ditas bandeiras “identitárias”, para termos sociedades e espaços urbanos mais seguros para mulheres, por exemplo. A fragmentação social é inevitável, mas ela não é, necessariamente uma fraqueza, não mesmo. Pelo contrário, me parece desse lugar que vemos formas criativas de resistir e repensar o mundo em que vivemos.
Essa é uma grande lição vinda de onde? Do feminismo. Em que entende-se que mulher não é uma só, são muitas. Diferentes, às vezes em contradição entre si, mas que podem agir em numerosas frentes, de formas distintas.
Me entristece um pouco que todas essas questões foram jogadas no “fascismo dos identitários”. Francamente. Te digo mais. Os eleitores do bolsonaro foram descritos aqui, ou no texto do Manolo, como “identitários de signo trocado”. Por favor. Estamos falando de pessoas, pelo menos o núcleo duro da militância dele, que desejam a manutenção de hierarquias sociais em que não há lgbts, não há autonomia feminina, negros não ousam levantar a cabeça para reclamar de seu lugar social histórico de subordinação. É sério que vamos colocar isso como “o outro lado da mesma moeda”?
Boaventura bem falou. iguais quando a diferença nos inferioriza, e diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. Vale para pensar esse nosso fascismo à brasileira aí, e como vamos enfrentá-lo.
Leo Vinicius, o que significa ser “tragado pelo lulismo”, para mim, está expresso num artigo que publiquei no Passa Palavra no dia 20 deste mês e que pode ser conferido aqui: http://passapalavra.info/2018/10/123251
É uma tentativa de analisar as aventuras do lulismo na sua luta incansável para se afirmar e/ou conservar como referência única e monolítica das esquerdas. Entretanto, veja bem, eu nem sequer julgo quem está defendendo o voto no PT contra o Bolsonaro. Se a alternativa fosse entre Bolsonaro e PSDB, não te julgaria se defendesse o voto no PSDB. O problema é não perceber como o Lula e o PT colaboraram para a presente situação e como trabalharam para inviabilizar alternativas, inclusive apoiando/participando da repressão ao movimento que em 2013 abriu – colocando milhares de pessoas nas ruas em todo o país – perspectivas radicais à esquerda (teria sido a primeira vez? Será a última?).
Da minha parte, continuo a defender – em sua essência – o que defendi noutra ocasião, em julho de 2015 (http://passapalavra.info/2015/07/105308):
“Conforme o PT sofre ataques da direita e da extrema direita, e os movimentos governistas se mantêm ao seu lado, eles se colocam também na mira dos ataques, sendo indispensável que eles se afastem – e se diferenciem – ao máximo dos governos petistas, saindo de sua órbita. É preciso que as bases dos movimentos governistas rompam, o quanto antes, com os dirigentes desses movimentos, abolindo ainda a divisão entre base e direção, e colocando-se contra o PT e os direitistas; caso contrário, cairão todos juntos, PT e movimentos sociais, mesmo que o mandato da presidente não seja interrompido; e, se não caírem, seguirão definhando juntos, de mãos dadas […] na medida em que tais movimentos se mantêm ao lado dos governos petistas, e não somam forças com os movimentos ‘autônomos’ ou libertários que fazem oposição ao PT, ou com o que resta deles, estes últimos ficam à deriva, presos em suas próprias contradições, totalmente isolados. E seguirão definhando também, à sua maneira”.
Ou seja, continuo a defender que as bases do lulismo se desvencilhem do lulismo e somem forças com quem já está ou sempre esteve à esquerda do lulismo, para que juntos resistam/destruam o capitalismo… e com ele o lulismo.
Registre, portanto, para sua retrospectiva 2028, essa minha posição. Antes que se passem 10 anos, porém, pergunte-se por que tanta gente declara que votaria alternativamente em Lula ou em Bolsonaro e o que ambos representam para essas pessoas. Aqui vai uma pista: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/direita-avanca-nas-periferias-a-reboque-do-conservadorismo-da-favela.shtml
Aliás – esqueci-me de comentar a respeito disto – seria bom que o Leo Vinicius refletisse sobre como foi o Encontro Nacional do MPL em 2013, por exemplo, já que ele não sabe como os identitários imobilizaram a esquerda.
Fagner,
eu ouvi falar do Encontro do MPL de 2013.
Repito o que eu disse, a incapacidade política dessa esquerda autônoma ela joga a responsabilidade nos outros: ou é em repressão de governo (ora, por que diabos um governo não riria reprimir movimento social? os sábios da esquerda acham que vão encontrar um governo que não reprime? É como colocar a culpa de ter se molhado na chuva que caiu e não no fato de não ter levado guarda-chuva sabendo que iria chover? Ou não se aprendeu ainda a natureza e a função do Estado?),
ou são os “identitários”.
Posso dizer que em Florianópolis eles nunca foram problema mas nem por isso o MPL deixou de miar aqui. E mais, o MPL não é a esquerda. Há que colocar cada movimento na sua devida dimensão.
Já que citou o seu artigo recente, aproveito para comentar aqui> o último parágrafo dele contradiz todo o resto. O último parágrafo diz que estamos no deserto da esquerda alternativa, autônoma, o que for. Então o lulismo estaria agindo sobre o nada. Levando a reboque o que sequer existe. E a propósito, a parte sobre intervenção da ONU é descabida. O PT obviamente não buscava na ONU algo impossível de acontecer. Ele esperava o que ocorreu, uma decisão favorável. A ONU não tem meios de imposição nessa matéria. A hipótese me pareeu bem absurda de que o PT foi à ONU para mostrar quem pode ativar essas instâncias… como se ele estivesse preocupado com essa esquerda que vc diz no parágrafo final que não existe ou é insignificante.
Há muitos anos, logo no começo da existência do Passa Palavra, publiquei aqui um artigo intitulado «Entre a luta de classes e o ressentimento» (http://passapalavra.info/2009/03/2063 ), que ainda hoje é reproduzido com alguma frequência. Nesse artigo eu afirmei, a dado passo:
«Numa época em que, perante a concentração transnacional do grande capital, os trabalhadores se encontram fragmentados, quando foram em boa medida dissolvidas as suas antigas relações de solidariedade e atenuado ou extinto o seu sentimento de classe, mais fácil se torna que eles encontrem nos pequenos patrões os leaders ou os modelos. No plano ideológico e psicológico, trata-se de substituir o espírito de classe pelo ressentimento, ou seja, o desejo de acabar com o capitalismo pela aspiração de subir dentro do capitalismo. O fascismo, na face que apresentou às massas populares, foi exactamente isto». Hoje eu incluiria na lista dos pequenos patrões os chefes e as chefas de Colectivos e Colectivas e, já agora, de Movimentos e Movimentas. E concluí o artigo escrevendo que «sempre que o ressentimento prolifera entre os trabalhadores, o risco do fascismo não anda longe».
Na mesma perspectiva, num livro intitulado Labirintos do Fascismo (https://archive.org/stream/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o#page/n25/mode/2up ) escrevi:
«Com o abandono da esperança revolucionária, a hostilidade de classe passava a assumir a forma degenerada do ressentimento. Diluídas as redes de solidariedade, os trabalhadores já não apareciam como membros de uma classe e apresentavam-se como elementos das massas. Uma massa agitada pelo descontentamento, mas sem nenhuma expectativa que não se cingisse à sociedade existente — eis a base popular da revolta dentro da ordem. Foi nessa gente que o fascismo se apoiou para eliminar as chefias operárias tradicionais, isolar as vanguardas combativas e reorganizar o Estado consoante um novo modelo ditatorial. E fê-lo tanto mais facilmente quanto o refluxo do movimento revolucionário havia fragilizado a base de sustentação de socialistas e comunistas, e a repressão conduzida contra os trabalhadores mais ousados comprometera qualquer prestígio de que os governos liberais tivessem podido gozar entre a população humilde».
Ora, o mesmo ressentimento que moveu e move os fascismo é hoje também o mecanismo motor dos identitarismos. Todos os movimentos identitários, sem nenhuma excepção, baseiam-se no ressentimento e promovem o ressentimento. É este um dos pontos de convergência — não o único, mas um deles — entre as formas clássicas de fascismo e o fascismo pós-fascista. O antagonismo que existe entre o ressentimento e o espírito de classe é o mesmo que existe entre o identitarismo e a luta contra o capitalismo.
Leo Vinicius,
1) A repressão que mencionei não foi executada apenas pelo Estado, mas contou também com o apoio/participação das bases lulistas. Então, não, Leo Vinicius… não se trata de “sair para a chuva” sem querer “se molhar”: trata-se do efeito que um governo de esquerda exerce sobre os trabalhadores que o apoiam, que se colocam contra outros trabalhadores que começam a descolar as lutas sociais das teias do Estado. E nem é preciso mencionar boicotes, censuras, críticas e ataques abertos, etc. Mas, se você não reconhece nada disso e silencia quanto à atuação da militância cooptada pelo lulismo, então realmente a coisa está difícil para o nosso lado. Mas talvez você aprove esse tipo de procedimento…
2) Eu afirmei, naquele artigo, que inexiste hoje uma alternativa efetiva ao lulismo. Mas, reflita, Leo Vinicius: isso quer dizer que as pessoas deixaram de existir? Não, elas ainda existem: quer dizer, na verdade, que elas deixaram de atuar como alternativa efetiva. E eu me lembro de ter afirmado também que, no governo Bolsonaro, os militantes/trabalhadores à esquerda do PT serão empurrados para a reincorporação ao campo lulista ou para a dispersão (alguns preferem a reincorporação à dispersão…). Portanto, a dependência com relação à estrutura partidária do PT para que as esquerdas sobrevivam no governo Bolsonaro, para mim, ocorrerá nos termos acima, de modo que o seu comentário não fez mais que criticar meu texto pelo que ele não diz.
Fagner,
Essa repressão com apoio/participação das bases lulistas me parecem bem abstratas. Os comentaristas neopetistas dos chamados blogs progressistas eram bem concretos na criminalização pela internet. Emir Sader, Marilena Chauí entre outros intelectuais também ajudaram na criminalização. Por outro lado, mesmo pensando em São Paulo, tinha base do PT participando das manifestações contra aumento da tarifa em 2013, inclusive apanhando na Paulista dos neofascistas no dia 10 de junho.
Então a relação dos petistas é muito variada para uma afirmação dessas. De toda forma, as burocracias sindicais sempre vão procurar esvaziar os movimentos autônomos dos trabalhadores, é função dela. Função do Estado e das burocracia acho que todos aqui sabem qual é.
Não é produtivo ficar fechando os olhos para as insuficiências de um campo e jogando a responsabilidade de seu fracasso nos outros. Esse é o mundo como ele é: com burocracias sindicais e Estado. Se não se é capaz de navegar nele, se não se está preparado para sobreviver nele… Fica parecendo que essa esquerda autônoma espera ser relevante no dia que não houver mais Estado e nem burocracias partidárias ou sindicais. Ora, mas esse é o motivo para existência dessa esquerda anticapitalista: acabar com ambos. Ou seja, o que você está dizendo é que essa esquerda anticapitalista foi incapaz de levar a cabo seu objetivo, sua tarefa, e foi derrotada. E é preciso pensar os motivos. Dizer que foi derrotada porque o exército inimigo atirou nela não faz sentido.
Não queria entrar neste debate porque estou bastante ocupado no momento, mas chamo a atenção para o fato de Tersínoe, ao deslocar a atenção para “nossa própria história, brasileira e sul-americana”, retirou-a completamente da história mundial. Digo-o porque se Duterte tem sido usado como principal ponto de comparação com Bolsonaro, não se pode esquecer, neste mesmo caso, que a ditadura de Ferdinand Marcos nas Filipinas terminou em 1986, um ano depois da ditadura no Brasil ter acabado. Na mesma linha, os regimes soviéticos, que não eram exatamente democracias, ruíram entre 1989 e 1991, e é precisamente no Leste Europeu onde pululam as formas mais radicais de fascismo na atualidade. Em suma: se a memória histórica da ditadura historicamente recente é critério definidor de nossa situação, ela não é exclusividade nossa. Não existe jabuticaba alguma aqui. Devemos, sim, buscar as especificidades de nosso contexto, mas nunca apartá-lo do contexto global.
O identitarismo tornou-se insuportável para um grande número de pessoas quando passou da afirmação de algumas identidades para a negação de outras. Com variados pretextos, cada identidade reivindica para si mesma o direito de se colocar no cimo de uma nova hierarquia social. Esta recusa agressiva das outras identidades, e especialmente de identidades maioritárias, é um dos mecanismos de fragmentação ideológica e orgânica dos trabalhadores enquanto classe.
A luta contra as discriminações — de sexo, de cor de pele, de preferências sexuais — é indispensável. O problema é que os identitários conduzem essa luta 1º) de forma supraclassista, confundindo nos mesmos movimentos as discriminações que possam existir no âmbito dos capitalistas com aquelas que existem no âmbito dos trabalhadores; 2º) e conduzem-na como um movimento de ascensão de novas elites, preocupando-se mais com o acesso às altas esferas, às administrações de empresa, aos governos e parlamentos, do que se preocupam, por exemplo, com o acesso das mulheres ao operariado da construção civil, onde não estão representadas. Assim, a luta contra as discriminações, em vez de servir para construir uma nova consciência da classe trabalhadora, serve, pelo contrário, para fragmentar e diluir essa consciência. Os trabalhadores desaparecem enquanto tais ou, no máximo, são apresentados como outra identidade específica, o que é uma recusa da noção de classe.
Ora, como o identitarismo ocupou todo o espaço que antes era ocupado pela esquerda, continuando a chamar-se esquerda, os trabalhadores que não se revêem nesses identitarismos e sub-identitarismos passaram a manifestar simpatia pela extrema-direita e pelos fascistas, o que explica a vitória de Trump nos Estados Unidos ou da Liga e do Movimento 5 Estrelas na Itália. Por isso Salvini pôde dizer, num discurso recente, que a esquerda se esqueceu dos trabalhadores e que é a Liga, ou seja, a extrema-direita radical e os fascistas, quem agora representa os trabalhadores.
Fica assim esclarecido o êxito do discurso de Bolsonaro. Ele é o reflexo simétrico dos identitarismos; é a resposta, que se afirma como identitária — branca, heterossexual, masculina — aos outros identitarismos. A legitimidade que Bolsonaro e os seus apoiantes invocam é da mesma natureza da invocada pelos movimentos identitários. Por isso o antagonismo que os divide é interno ao campo do fascismo. O problema imediato é que o escopo das identidades que apoiam Bolsonaro abrange uma base muitíssimo mais numerosa do que os apoiantes das identidades alternativas.
E enquanto os identitarismos e os sub-identitarismos vão fragmentando a classe trabalhadora e diluindo-lhe a consciência, os capitalistas consolidam a sua unificação, já que ambos os lados da disputa promovem as mesmas relações sociais de exploração e é a mesma tecnocracia quem orienta em ambos os lados os programas económicos.
Se o lulismo e o bolsonarismo (e tantos outros “ismos” ditos de esquerda ou direita…), não são consciência de classe, embora decorram da luta de classes, seriam também como identitarismos e/ou culturalismos… portanto, estariam mais no campo da fé, da emoção (como bem revelam certos comentários… lembrando que nem toda emoção é transloucada, estando, muitas vezes, travestida de uma sapiência iluminada…), e não no campo da razão… Parafraseando Marx: “A miséria dos identitarismos, multiculturalismos, lulismos, bolsonarismos, etc, constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. Os identitarismos, multiculturalismos, lulismos, bolsonarismos, etc, são o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Eles, identitarismos, multiculturalismos, lulismos, bolsonarismos, etc, são o ópio do povo”…
Dos comentários aqui expostos, um me chamou especial atenção pela consequência teórica implicada que acaba por sair dos locais comuns do marxismo tradicional. Este comentário foi o de Telsinoe, tentando refletir sobre ele faço um registro aqui das escavações arqueológicas de conceitos que estou fazendo no momento.
O problema das novas empreitadas da esquerda anticapitalista deve ser tomado do ponto de vista metodológico e apesar da abstração que parece estar envolta nisso, essa abstração ganha força material que tem prejudicado ou se limitado aos pressupostos da sociabilidade capitalista e, por isso, novamente A questão de Método deve ser urgentemente retomada.
A própria noção de interseccionalidade desenvolvida posteriormente pela brilhante Angela Davis tenta responder de modo original as limitações desenvolvidas pelo engessamento daquilo que se convencionou chamar de método dialético. É preciso ter em vista que Davis foi orientada por Marcuse e este quando chegou aos Estados Unidos lançou uma espécie de manual contra a pragmática filosofia americana chamado de Razão e Revolução. Façamos aqui uma pequena parada. E tenham paciência com a densidade que segue, mas ela é fundamental para nos tirar dos locais comuns e recolocar a questão das identidades.
Não raras vezes no interior das formulações de Marcuse ecoa a premissa básica de elevação dos pressupostos kantianos à uma suposta dialética que sintetiza os opostos. Para Marcuse, Hegel, impregnado pelos problemas abertos pela filosofia kantiana, tenta reinterpretar e resolver – “dialeticamente” – as lacunas deixadas em aberto pelo pensamento de Kant: 1) a filosofia kantiana determina – a despeito de si mesma – a verdadeira forma do pensamento moderno; 2) dada a estrutura antinômica dos fenômenos e numeno (a Ding an sich), o passo fundamental de Hegel seria a operação da síntese formada pela cisão existente entre sujeito e objeto.
Apesar do desnudamento certeiro sobre os pressupostos que fundamentam a filosofia kantiana, Marcuse incorreu no perigo de rebaixar a complexidade do conceito de Entendimento. Se, por um lado, sua formulação visou chamar atenção à atualidade de Hegel em contraposição com o positivismo lógico, – postura dominante nos EUA que lhe oferecera exílio – sua postura trouxe, por outro, uma infinidade de problemas que coincidirão com uma mecanização do pensamento especulativo.
Se, Razão e Revolução é um livro de introdução ao pensamento de Hegel, no volver de alguns pressupostos tornados lugares comuns recai numa simplificação dos termos hegelianos e num apaziguamento da complexidade dialética. Se a originalidade da leitura marcusiana incide numa espécie de hegelianismo particular, ao ver no Entendimento algo que pode ser entendido como uma “reflexão isolada”, elide a possibilidade dissociativa e avançada da própria noção de Entendimento que em termos grosseiros fundamenta a própria posição da interseccionalidade entre termos aparentemente separados.
Eu sei, ficou pesado, mas isso é para ilustrar como do ponto de vista desse engessamento do pensamento especulativo passou-se a uma noção estéril de universalidade que deixou de observar o lado obscuro, ou a noite em que são produzidos os demônios da razão. Não farei aqui ainda uma crítica ao conceito de interseccionalidade, porque apesar de instrutivo e propedêutico, não se dá conta, aliás por ser filho do Entendimento, de sua própria limitação. Isso não significa absolutamente que devemos desprezá-lo, mas como críticos apontar suas limitações. E daí que faço uma crítica a forma como o marxismo tradicional manteve esse engessamento que hoje em dia já não dá conta mais da realidade histórica que estamos lançados.
A compreensão da necessidade da unilateralidade (particular) como algo contingente no qual só posso entender o que se passa na realidade concreta a partir das categorias que ela engendra em seu automovimento tornou-se central numa realidade em que a modernidade chegou no seu limite e apodrece. Há nessa compreensão a necessidade de uma espécie de reversão da interpretação que o marxismo tradicional fez de dialética, pois, o alcance da totalidade só é determinada se o sujeito é incompleto significando que a completude do sujeito se dá pela falta, o que movimenta essa totalidade. Noutros termos, é a falta que nos constitui e a diferença é a única coisa que temos em comum.
Contraposta aquela noção de uma totalidade exclusiva é a própria incompletude que fomenta essa mesma totalidade, a particularidade, o não-ser que é. O Outro contraditório é, portanto, o que nos constitui a partir do momento que expressa uma consciência negativa a ficção, ou ilusão socialmente necessária, de nosso Eu=Eu. Nossa identidade, seja, o momento no qual a experiência fundamenta uma subjetividade, depende do elemento externo negativo que não é senão uma outra consciência contraposta e em choque com nós. (Observe: é dessa posição hegeliana que o anti-hegeliano Foucault tirará e ontologizará a noção de Poder, não é foda? Eu acho lindo!)
É preciso assinalar que a leitura lukacsiana remonta a necessidade de reconhecimento do sujeito a partir da substância alienada distinguindo na substância o produto alienado de seu próprio trabalho. Esse reconhecimento impõe uma resolução dos problemas engendrados pela reificação de si mesmo por meio da reapropriação da substância que, no caso especifico, é identificado como produto do trabalho recuperado. Ora, a dimensão de sujeito impresso por essa avaliação reduz o campo de experiências da consciência ao trabalho como dimensão fulcral de formação. Tal passo minimiza – ou simplesmente ignora – a experiência que se realiza no campo da intersubjetividade cujo vão necessário da alienação é pressuposto da própria experiência e a necessidade do trabalho em sua coerção fomenta um mundo social que lhe é próprio. Suprime o nada. Todo o marxismo consequente e inconsequente para aí…
Segundo essa tese, o conhecimento do Eu e sua posição decisiva enquanto sujeito se daria pela reapropriação do fruto de seu trabalho, o problema é que o trabalho já é a negação do sujeito. Todo marxismo tradicional vê a dialética do senhor e escravo como algo positivo, utópico, a recuperação da humanidade do escravo via trabalho. Todo marxismo, menos Hegel. (risos)
É o trabalho que cria a “identidade” do escravo e é ele, o trabalho, que a mantém… mas isso são outros quinhentos!
É preciso dizer que a ficção da identidade foi inventada pela Europa, foi o colonizador que deu cor e inventou as raças. Foram essas identidades feitas e criadas, que não cabiam naquela universalidade, que permanecem e permaneceram excluídas dos processos “civilizatórios” europeus sob um silêncio sepulcral do Esclarecimento. E aqui para voltarmos à história e a vida concreta está assentado o grande vazio não solucionado que persegue a humanidade desde a Revolução do Haiti: abandonaremos a noção de universalidade ou tornaremos ela efetiva? Torná-la efetiva, no entanto, não é superar o vazio constitutivo do Eu – como o fascismo quer impor –, mas compreendê-lo e compreender que são as singularidades em relação ao universal que o movem.
E tudo isso desenvolvi para afirmar que a luta pela compreensão da criação das identidades como componente excludente, não é a mesma luta que alguns identitarismo executam. Estes agem no interior dos pressupostos colonialistas e não fazem menção a estrutura que fundou o racismo. Esse é um problema que tentei descrever ainda ingenuamente nesse ensaio: https://diplomatique.org.br/contra-o-retorno-as-raizes-identidade-e-identitarismo-no-centro-do-debate/
No Brasil ainda engatinhamos nessa questão, motivo que faz com que Fanon, Mbembe e Judith Butler, que não é nem um pouco identitária, sejam muito pouco compreendidos por aqui.
Me alonguei demais, pra uma caixinha de comentários… peço desculpas…
abraços
Douglas
Achei esse video ilustrativo do último comentário do João Bernardo, que achei uma excelente formalização do das relações que se reproduzem no mundo entre esquerda, lutas identitárias e ascensão da extrema-direita.
Porta dos Fundos – Barbies
https://www.youtube.com/watch?v=TXteIWha4Jo
João Bernardo, por gentileza, se possível, me responda uma pergunta: o nazismo teria existido sem Hitler ou Hitler era o nazismo? Da mesma forma, poderíamos fazer a mesma pergunta mudando apenas os personagens: o fascismo teria existido sem Mussolini ou Mussolini era o próprio fascismo? O bolsonarismo poderia existir sem Bolsonaro ou Bolsonaro é o próprio bolsonarismo? E assim por diante…
1) Nos últimos dias fiz algumas viagens longas, sem tempo para olhar a internet, e aproveitei para ler, entre outros, este livro: Asad Haider, Mistaken Identity. Race and Class in the Age of Trump (Londres e Nova Iorque: Verso, 2018). É uma leitura indispensável. O autor desvenda as ciladas que surgiram com a proliferação dos identitarismos e analisa-as em perspectivas sempre estimulantes e em abordagens novas. Isto não significa que eu esteja de acordo ou em desacordo com todas as páginas. Significa que o autor nos ajuda a singrar entre as dificuldades contemporâneas. É um livro realmente indispensável.
No entanto, Asad Haider é um marxista de propensão vanguardista. Se não o fosse, interessar-se-ia mais por certos fenómenos sociológicos de longa e média duração, por aquilo que eu chamo convivência, precisamente essa convivência que é impedida pelos exclusivismos e pelos «espaços seguros» dos identitarismos.
2) Os identitarismos são o nacionalismo da época da transnacionalização, já que as fronteiras não dividem cada identidade. Nestas condições, os identitarismos tendem a multiplicar sem limites os defeitos dos nacionalismos, não existindo nada que lhes trave as subdivisões. A conhecida tese de que «o corpo é político» é o limite último do identitarismo, a identidade reduzida ao indivíduo.
É neste quadro que se torna ainda mais nociva a noção de que para compreender o que se passa num país não é necessário saber o que se passa nos outros. Manolo, no seu comentário, insistiu que «devemos, sim, buscar as especificidades de nosso contexto, mas nunca apartá-lo do contexto global». Ora, é muito difícil convencer as pessoas disso, Manolo, porque a ideia contrária tem tudo a seu favor. A ignorância fica justificada pela ilusão de que é desnecessário saber e a preguiça fica promovida a estratégia política. Que confortável!
Entretanto os grandes capitalistas sabem que têm de conhecer tão bem o lado de fora das fronteiras como o lado de dentro, por isso triunfam. É que, reparem, se não pode haver socialismo num só país, também não pode haver Brasil num só país.
3) Leo,
Quando vi esse sketch do Porta dos Fundos que você cita, pensei o mesmo. Aliás, nós dois falámos várias vezes do Porta dos Fundos, naqueles jantares, e encontro neles muita coisa esclarecedora. Só me irritam quando se limitam à baixaria.
4) Severino,
Quando eu era novo, há tanto tempo que você nem imagina, havia um velho autor marxista que era bastante lido e hoje está esquecido, já que as modas seguiram outros ventos. Refiro-me a Plekhanov, um dos introdutores do marxismo na Rússia. Num ensaio intitulado «Acerca do Papel do Indivíduo na História» ele responde à questão que você levantou. Em traços muito resumidos, e se a minha memória for fiel, o argumento dele é o seguinte. Quando se inicia um movimento histórico há sempre vários candidatos a preencherem o primeiro lugar. Depois um deles adquire a primazia, por motivos tantas vezes fúteis. Mas a partir do momento em que adquire a primazia torna-se único e mais ou menos rapidamente fica insubstituível. A posteriori, podemos ter a noção de que foi ele o causador dos acontecimentos e que sem ele os acontecimentos não teriam ocorrido. Mas visto o processo a partir da génese, foram os acontecimentos que propulsaram aquela figura para o primeiro plano.
Aqui uma entrevista bastante interessante também, sobre a produção de identidades e suas consequências políticas e sociais, com o autor de um livro chamado A Fábrica de Muçulmanos (não publicado em português e não li o livro): https://brooklynrail.org/2018/02/field-notes/Inside-the-Muslim-Factory-NEDJIB-SIDI-MOUSSA-with-Felix-Baum
João Bernardo, grato por suas orientações!
Severino.
PS: João Bernardo, o quão jovem é João Bernardo! Para mim, nada é tão velho quanto “fazer apelos ao coração e dar a primazia à ética” (João Bernardo) como tanto se faz na defesa das “ancestralidades”, “da grandeza das raças, “do retorno a uma natureza perdida”, “das invocações religiosas”, “a defesa da moral e dos bons costumes”… Na verdade, velho era eu… que achava que eu era o novo e que meu pai era o velho, sem perceber que as marmitas que levávamos para almoçar no trabalho eram preenchidas pela mesma comida que minha mãe fazia… não só para o almoço, mas também para o jantar… Velho era eu que achava ser bancário (que era o presente) e meu pai, operário (o passado), sem perceber que éramos levados ao trabalho pelos mesmos ônibus (e que hoje leva meu filho à faculdade… ao “futuro”…)… Eu era o velho, embora jovem de idade, que achava, como meu pai, que nós apenas estávamos produzindo, e não que éramos também produzidos… Velho era eu que pensava saber o que eu precisava… “O que nós precisamos, e hoje mais do que nunca, perante tantos desafios novos, é a lucidez de um frio raciocínio” (João Bernardo). E, a partir deste frio raciocínio, pensei: Meu nome é Severino… E somos muitos Severinos… E se somos Severinos, iguais em tudo na vida, vivemos de vida igual, morremos de morte igual; mesma vida e morte severina” (Adaptado de João Cabral de Melo Neto), quer no campo, quer na cidade, quer seja homem, quer seja mulher, quer seja preto, quer seja branco, quer seja ocidental, quer seja oriental, enfim, no modo de produção capitalista todos temos a mesma vida e morte Severina, porque pertencemos à mesma classe, a classe trabalhadora… Hoje os identitários, e mesmo a esquerda em geral já se colocam como se fossem “emancipados em busca da emancipação”… Penso que é a partir do reconhecimento da condição da “vida e morte Severina” dos trabalhadores que se caminha em direção à emancipação, condição “sine qua non” para se tornar um emancipado… Por isso se eu era velho, posso dizer que hoje estou um pouco mais jovem, graças ao jovem João Bernardo…
Senhores, devo dizer que conheci o Passa Palavra há pouco tempo, o que é uma pena, mas agora estou aqui e isso é o que importa.
Devo dizer que nos últimos meses tenho lido sempre que tenho tempo, o que infelizmente, não é sempre, mas francamente o site me estimulou muito. Tenho verdadeiro prazer e vontade de ler. Não só a temática geral me agrada, mas achei de certa forma impressionante o quanto aqui o debate e a construção dos textos têm uma argumentação toda focada para a luta de classe. Isso é pra mim não só raro como motivo de satisfação. A centralidade do debate como sendo a luta de classes me parece ter sido fragmentada cada vez mais dentro da ”esquerda”. Resolvi hoje comenta, apesar do meu pouco conhecimento e do desejo de não rebaixar o debate de vocês, especialmente porque vi o comentário de João Bernardo sobre os movimentos identitários e sobre como funcionam com o mesmo motor do fascismo. Nunca tinha visto esse ponto de forma tão bem posta, parece até que alguém, com muito mais conhecimento que eu, escreveu exatamente o que penso sobre os movimentos. O que me causa muitos problemas pois sou cercado de pessoas defensoras ferrenhas desses movimentos e que, inclusive, os colocam por vezes como mais centrais que a luta anticapitalista. Isso foi mesmo trabalhado aqui em um artigo ótimo que falava sobre a ”mão esquerda” do capitalismo, as ”ONGs” o ”terceiro setor” e etc; instituições que cooptaram as pautas sociais para que servissem em verdade aos interesses do capital transnacional. É inclusive curioso pois minha companheira (Camila Acosta) acaba de defender tese de mestrado justamente sobre o falso papel das ”ONGs” e a forma como a ”ideologia do terceiro setor” é na verdade apenas mais uma força a favor do capital, tudo isso pelo viés da comunicação.
Enfim, o ponto em que esses movimentos de identidade assumem posição de negação e imposição abre espaço tanto para a reação mais clara e rápida, quando para a paulatina fragmentação da classe trabalhadora como tal e sob uma construção ideológica muito perigosa pois afasta o trabalhador da causa anticapitalista ou da consciência de classe em sua própria subjetividade.
Sobre não descolar o Brasil do contexto mundial, concordo completamente.
Pergunto: onde posso ler mais sobre essa relação entre os movimentos identitários e o fascismo?
Como trabalhar a recuperação da luta de classe e a consciência da classe trabalhadora como tal dentro de uma esquerda fragmentada por movimentos identitários que a desmancham..?
Num artigo publicado ontem, a revista e site The Economist chamou a atenção para o facto de o principal alicerce ideológico do presidente Trump ser a noção de uma identidade branca, e considerou que este identitarismo de direita é mais poderoso nos Estados Unidos do que os seus recíprocos de esquerda. O mesmo se pode dizer dos identitarismos cristão, especialmente evangélico, e heterossexual.
Ora, o mesmo fenómeno ocorre no Brasil e contribui para explicar a vitória eleitoral de Bolsonaro e da sua corte, uns tipos de identitarismo contra outros. É precisamente este um dos temas dos dois comentários que o Passa Palavra converteu em artigo. Acrescentei-lhe só uma coisa. Que os identitarismos, de um lado e do outro, consoante uma tese que expus nas referidas páginas (https://archive.org/stream/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o#page/n1361/mode/2up ) do livro Labirintos do Fascismo, se inscrevem naquilo que denomino fascismo pós-fascista. Um combate, então, entre duas vertentes do fascismo.
Não só nos Estados Unidos e no Brasil, mas noutros países também, parece ser esta a paisagem política actual.
“(…) Esta arqueologia do saber faz-se olhando para a parte de baixo das páginas, para as notas de rodapé, e também entre as linhas, destacando o que é afirmado no corpo do texto e esquecido nas conclusões. Em matéria de ideologia o silêncio é uma parte do discurso — para a visão crítica é mesmo a componente fundamental — por isso quanto mais exactamente se definir o lugar do silêncio, tanto mais gritante ele será e mais o abafarão numa pletora de palavras. Tal como, na arqueologia dos objectos materiais, os acúmulos de terra podem indicar que haja ali tesouros escondidos” (João Bernardo, Labirintos do Fascismo -3ª versão- p. 9)
“Rua Gabriele D’Annunzio: Excelente apartamento com ótimo terraço gourmet fechado. 274M² úteis. Acabamento de alto padrão, amplos ambientes, home theate, 4 suítes, 4 vagas e lazer completo. R$3.400.000,00” (O estado de São Paulo, caderno de imóveis, p. 6, 04/11/2018)
“Tive várias vezes oportunidade de observar que a história é frequentemente simbólica e é sempre irónica” (João Bernardo, Labirintos do Fascismo -3ª versão- p. 730)
“Rua Gabriele D’ Annunzio. Localização: Campo Belo | Distrito: Campo Belo. Político e escritor italiano, nasceu em 1863. Possuidor de um espírito extravagante. Como aviador e extravagante escritor italiano, prestou serviços a Itália na I Grande Guerra Mundial. Faleceu em 1938. Oficialização: DECRETO nº: 15.540 de 11/12/1978” (https://dicionarioderuas.prefeitura.sp.gov.br/logradouro/rua-gabriele-d-annunzio)
Dizem que meias palavras bastam… Mas tantas são as vezes que mesmo palavras inteiras não são suficientes para explicar que aquilo que nos parece novo, nunca deixou de estar entre nós… hoje, ao que parece, as “notas de rodapé” simplesmente “cambiaram” ao corpo do texto… e o que podemos disso concluir?
João
Lendo essa pequena passagem (https://archive.org/stream/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o#page/n1361/mode/2up ) do livro Labirintos do Fascismo, entendo, ainda que superficialmente, a construção que se faz ao se estabelecer uma onda de movimentos identitários que fragmentam a classe trabalhadora e operam numa lógica fascista.
Gostaria de perguntar ao senhores sobre essa relação entre movimentos identitários e a luta anticapitalista. Visto que o seu texto pareceu-me demonstrar que, ao transformar os movimentos identitários em uma luta contra o suposto eurocentrismo, o que acontece é mascarar e subverter a luta, já que na verdade essa noção da ”identidade eurocêntrica” é apenas resultante do desenvolvimento capitalista.
Mas e quanto ao que há de legítimo nas lutas identitárias?
A submissão da mulher que vem mesmo antes da sociedade propriamente capitalista, o racismo, a violência contra o negro e etc. Me parece que esses movimentos originais populares foram cooptados e subvertidos em seu discurso e sua prática para atender às necessidades do capital, e enaltecer esse tipo de movimento distancia a classe trabalhadora da luta anticapitalista. Me pareceu que essa passagem do livro de certa forma desconsidera a validade dos movimentos em sua forma ”original” , digamos.
Esse tema inclusive foi analisado aqui lindamente na série sobre o Fórum Social Mundial.
Seguindo nessa linha, me parece que o capitalismo hoje está como nunca antes seguro principalmente pelo que João Bernardo trabalha de forma breve porém precisa nessa passagem do livro – cada vez mais a tecnologia aproxima a gestão da fiscalização do lazer, enfim, abarca a totalidade das atividades do trabalhador e a submetem ao capital, e isso dentro do campo prático levou a uma hegemonia no campo discursivo.
Essa série sobre o FSM e mesmo esse texto (https://theintercept.com/2018/10/28/novo-brasil-esculpido-olavo-de-carvalho/)
do Intercept me levaram a pensar sobre a batalha que ocorre no campo discursivo. A ”esquerda” e extrema esquerda não têm uma abrangência discursiva (mesmo por falta de meios, talvez, mas em tempos de facebook já não tenho certeza também) que integre ou aproxime a classe trabalhadora. Enfim, me alongo nesse comentário porque fico com a questão na cabeça: como a ”esquerda” deve se posicionar em meio a essa batalha discursiva, quando a própria esquerda hoje é dominada por exemplo pelos ideais identitários que rapidamente repudiam ou para usar uma palavra próxima a esses movimentos “violentam” qualquer opinião que não concorde prontamente com seus postulados de identidade…?
Enfim, como lutar contra esses diferentes tipos de fascismo e se possível recobrar a força da luta anticapitalista
Vocês deviam republicar isto aí…amo o PP, mas esse pessoal aí tá atenado.
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/11/06/temos-algo-a-dizer-sobre-alguma-coisa/
Gabriel Silva,
Nenhuma luta ocorre se não houver motivos de contestação que, pelo menos para quem contesta, pareçam legítimos. Aliás, é assim que os governos adquirem um apoio de massas. A questão não reside, em meu entender, nos motivos de contestação, mas na forma como esses motivos são usados e na forma como a contestação é organizada.
Até à poucas décadas, antes de os movimentos identitários terem adquirido a completa hegemonia, as lutas contra a discriminação sexual, contra o racismo e contra a discriminação de certas preferências sexuais tinham um objectivo único — o de que o sexo, a cor da pele e o formato do nariz e dos olhos e as preferências sexuais deixassem de ser consideradas como caracteres pertinentes. Uma pessoa pode ser gorda ou alta ou baixa e isso ser evocado para descrevê-la, mas esses caracteres não são pertinentes para classificar a posição ocupada pela pessoa na sociedade. Do mesmo modo, a luta contra o racismo e o sexismo tinha como objectivo o estabelecimento de uma igualdade entre os seres humanos.
Ora, os movimentos identitários vieram alterar drasticamente esta visão igualitária. Para o feminismo actual não se trata de estabelecer uma igualdade entre mulheres e homens, mas, pelo contrário, trata-se de inverter as hierarquias; e onde antes os homens pretendiam colocar-se no cimo são agora as mulheres a pretenderem adquirir a supremacia. Trata-se também de acentuar os pretextos de diferença, e o feminismo contemporâneo ora recorre ao biológico ora ao cultural, num ciclo que só recorda o racismo nacional-socialista. O mesmo sucede com o movimento negro, a tal ponto que, com a introdução da política de cotas, algumas associações de estudantes negros pretendem reservar para elas o direito de decidir quem é, ou não é, negro. A temática dos «espaços seguros» e «espaços exclusivos» insere-se nesta inversão de hierarquias e acentuação de clivagens. E, como não poderia deixar de ser sempre que se trata de identidades e hierarquias, umas entram em conflito com as outras. Os ataques feitos pelo movimento negro aos mestiços fazem lembrar os recentes ataques dos movimentos feministas aos transgéneros.
A ânsia pela igualdade e o universalismo, que durante um século e meio caracterizou a esquerda, foi derrotada e em seu lugar afirma-se agora um número crescente de fraccionamentos e hierarquizações. O pós-modernismo, com o ataque que conduziu contra a «grande narrativa», criou as condições ideológicas para este triunfo do identitarismo, o que permitiu aos movimentos identitários afirmarem explicitamente que a busca pela igualdade e pela universalidade seria uma visão eurocêntrica e que, portanto, deveria ser eliminada.
Afirmei repetidamente que os identitarismos são o equivalente dos nacionalismos numa época em que a transnacionalização da economia ultrapassa as fronteiras. E, tal como sucede com os nacionalismos, os identitarismos apresentam como homogéneas pseudo-identidades que, na realidade, são rasgadas por diferenças de classe. É impossível no espaço de um comentário, ou mesmo no espaço de um só livro, desenvolver este tema, mas vou indicar dois exemplos:
1) Na França do século XIX, na elite da nobreza e da alta burguesia, as mulheres não se ocupavam da vida pública, porque lhes estava reservada a autoridade sobre o interior da casa. Por isso cabia às esposas organizarem os salons, ou seja, as reuniões mundanas que em dados dias da semana reuniam numa casa ou noutra as principais figuras da política e das artes. Ora, era nos salons que se decidiam os golpes e contragolpes da vida política bem como se decidia o prestígio ou o declínio de correntes estéticas. Assim, afirmar que as mulheres estavam afastadas das decisões políticas e estéticas é ignorar a complexidade da situação, porque as mulheres governavam os salons, onde aquelas questões eram decididas.
Mas, que mulheres? Balzac, um dos grandes romancistas da França dessa época, explicou que não pudera incluir o proletariado no seu colossal conjunto de obras, La Comédie humaine, já que para o escritor no centro de qualquer romance estava o drama amoroso, enquanto os proletários se uniam ou separavam com toda a facilidade, sem drama. As mulheres proletárias, contrariamente às outras, eram sexualmente livres.
E mesmo nas camadas sociais em que o drama existia, ele era claramente dividido em espaços distintos quando se tratava da elite, pois a esposa recebia o amante nos seus aposentos próprios, o boudoir, onde o marido jamais entrava sem autorização, enquanto o marido só se encontrava com a amante fora de casa.
2) Esta mesma complexidade que deixa sem qualquer sentido real uma pretensa identidade feminina pode encontrar-se para a pretensa identidade negra. Tomemos o exemplo que de mais perto interessa no Brasil, a escravatura. a) A escravatura foi praticada em numerosas sociedades, quer como elemento fundamental do modo de produção quer como elemento acessório, e não tem nenhuma relação especial com os povos negros. Aliás, basta usarem os meios ao vosso dispor para verificarem a etimologia da palavra «escravo». b) Numerosas sociedades africanas praticaram a escravatura antes do estabelecimento dos entrepostos comerciais europeus. c) A utilização de escravos para a produção em massa destinada ao mercado mundial, que constituiu uma das características da época mercantilista, foi inaugurada na Creta veneziana, sem nenhuma mão-de-obra africana. d) Grupos de africanos dedicaram-se ao aprisionamento e comercialização de escravos africanos, com especial relevo para os árabes do Norte de África. e) Os portugueses inseriram-se em redes de comércio de escravos já existentes, com o efeito de as ampliarem muitíssimo, mas este tráfico não poderia ter ocorrido sem a colaboração activa e interessada das elites africanas. f) Ao mesmo tempo que os portugueses se dedicavam ao tráfico de escravos africanos de um para o outro lado do Atlântico, os comerciantes árabes do Norte de África traficavam em massa escravos negros através do Índico. Em resumo, se alguma coisa a escravização dos negros e o seu envio para o Brasil mostram é a divisão em classes das sociedades africanas. g) Enquanto se processava a exportação de escravos negros a partir das costas oeste e leste da África, os árabes do Norte de África aprisionaram e escravizaram maciçamente europeus da costa setentrional do Mediterrâneo, a tal ponto que vastas extensões desta costa ficaram desertas, já que a população fugia às razias dos traficantes do Norte de África.
Concluindo, tanto o feminismo como o movimento negro como qualquer outro identitarismo constituem modos de ocultar as cisões de classe que existem no interior das presumidas identidades. O identitarismo consiste numa forma de mobilizar pessoas, cujos motivos de insatisfação podem ser legítimos, mas cujo sistema de organização pretende estar acima das divisões internas de classe. Por isso defino o identitarismo como uma revolta dentro da ordem.
Foi passar as eleições e o Bolsonaro ser eleito que aqui na minha cidade, quebrada da grande SP, as autoridades locais impuseram funcionamento até 22 horas para os bares. O clima está estranho. Um taxista falou que possivelmente quem for pego na madrugada vai ser atacado após a assunção do Bolsonaro. Seria um toque de recolher informal e um entendimento de que a polícia pode matar drogados.
Haydin
Fico o tempo todo ouvindo sobre como as pessoas estão preocupadas com a incerteza política que virá, a “possibilidade de ditadura” e etc
E fico pensando que o erro maior é pensar que vamos precisar de tanques de guerra na rua pra que a repressão aconteça..
O que você tá falando vai por aí…a repressão pode acontecer assim de forma “informal” ou através da lei como está, sem alterações bruscas. É como o Mano Brown diz numa entrevista, a lei não é pra todos.. Enfim vamos ter que segurar as pontas
João Bernardo meu caro
Concordo em muito com você. Os movimentos de identidades são em si revoltas dentro da ordem, eles não necessariamente englobam a luta anticapitalista. Mas ao mesmo tempo minha namorada costuma dizer que é perfeitamente possível um “comunismo machista”. Não que eu esteja bem de acordo com ela mas entendo que é possível se ater a Marx de tal forma que não se veja o problema do machismo partindo do princípio de que os homens podem não estarem conscientes. Uma vez trazido a tona o problema não creio que a ideologia de base marxista poderia ser conivente com nenhuma forma de opressão do ser humano, entretanto. Acho impossível dissociar verdadeiramente as coisas, não há como emancipar as mulheres sem passar pela questão do capital, da propriedade privada.
Me parece que as questões centrais sobre os movimentos de identidades são a sua individualização dos espaços de luta ou mesmo de convivência, da própria forma como constroem a visão de mundo, contribuindo para reduzir cada vez mais qualquer aspecto unificador objetivo; ao passo que ao mesmo tempo, a própria luta identitária em si, mas em especial quando se radicaliza e vai pelo caminho autoritário que você aponta, promove uma força reacionária também autoritária muito forte. Ou seja, fragmenta a luta por um lado e provoca reações contra todas as camadas de oprimidos pelo sistema. É extremamente contraproducente, mas não sei o quanto esse aspecto autoritário é considerado um problema em geral visto que a ideia de expropriar os meios de produção da burguesia é também autoritária.
Talvez tenha-se um problema que tem suas bases nessa ideologia pós moderna de que ao fragmentar faz a esquerda se perder em rivalidades e discordâncias internas.. falta talvez uma diferenciação entre discordar de um colega e se opor a um inimigo…
Enfim, tudo isso parte do nosso princípio de uma luta anti sistema, anti capitalista. O que martela ainda em mim é o que justificaria essa causa como aquela que abraça inerentemente ou não interfere nas causas identitárias que lutam pela igualdade?
O trabalho é o elemento objetivo e geral que une o ser humano. Mas, ao mesmo tempo, há questões como você bem disse, que transcendem mesmo a estrutura capitalista e portanto não necessariamente teriam seu fim no fim do capital, e aí é que vem essas dúvidas
Gabriel Silva,
Começo, tal como você, por destacar o comentário de Haydin, que recomendei a vários amigos com quem tenho discutido a situação no Brasil. É a coisas assim que eu me refiro quando falo de «milícias informais». Não faltam no Brasil milícias informais, e não são só as dos seguranças, dos traficantes e dos policiais fora de horas, se é que estas três categorias se distinguem. São também as dos voluntários da patrulha moral. Lembro-me de que em certo passo do meu livro Labirintos do Fascismo, quando analisei o que denomino «fascismo pós-fascista» (https://archive.org/stream/jb-ldf-nedoedr/BERNARDO%2C%20Jo%C3%A3o.%20Labirintos%20do%20fascismo.%203%C2%AA%20edi%C3%A7%C3%A3o#page/n1353/mode/2up ) escrevi: «A supremacia do elemento religioso sobre a sociedade laica, que constitui o programa dos fundamentalismos, tem sido conseguida graças à actuação de milícias que no modo de organização e na truculência em tudo imitam, quando não superam, as antigas milícias fascistas. Completamente alheias às reivindicações económicas e mesmo a todas as questões do trabalho, estas milícias de novo tipo destinam-se apenas a impor certas culturas e certos comportamentos. No caso do fundamentalismo cristão, tanto evangélico como neopentecostal, as milícias não aparecem explicitamente como tais e dissimulam-se como serviços de segurança ou formações episódicas de crentes mais agressivos.» E em seguida coloquei uma questão, relevante no meu modelo de análise dos regimes fascistas, que considero resultantes de um cruzamento entre um eixo endógeno (partido, milícias, sindicatos) e um eixo exógeno (exército, Igrejas). É que as milícias de conotação religiosa derivam de um elemento do eixo exógeno, mas vão integrar o que é tradicionalmente o eixo endógeno. E deixei de pé a questão: «Será que estas transformações deixam o fascismo mais longe, tornando-o dispensável, ou será que revelam uma articulação mais estreita entre os dois eixos, correspondendo a uma fascização do pólo religioso?»
Quanto ao problema que você me coloca, acho que a sua companheira tem razão ao admitir a possibilidade de um comunismo machista. Havia no século XIX o exemplo de uma socialista não marxista, George Sand. Mas basta ver a biografia de Marx, a história do seu filho ilegítimo com a empregada, que Engels fez o favor de perfilhar, a resposta de Marx a Paul Lafargue quando este lhe pediu a filha Laura em casamento, a ruptura de relações de Engels com Marx devido à insensibilidade da carta que Marx escreveu por ocasião da morte da companheira de Engels, tantas histórias assim. O comunismo não é nenhuma pastilha que se engula para curar todos os males. Nem é nenhuma vacina a que se recorra para evitar o aparecimento de outros males.
As lutas, mesmo derrotadas, vão colocando novos problemas e, por conseguinte, criando novas situações e abrindo novos espaços. Foi o que sucedeu com a luta contra o machismo, ou com a luta contra o racismo, ou com a luta pela variedade de opções de sexualidade. Estas questões devem fazer parte da luta pelo comunismo hoje, mas não o faziam há um século ou século e meio atrás.
Aqui, porém — como sempre e em tudo — mais importante do que os objectivos de uma luta são as formas assumidas por essa luta. O movimento negro, o feminismo e essa quantidade infindável de letras que compõem a bandeira do arco-íris são supraclassistas, quando não sucede pior ainda e a sua existência tenha como objectivo principal, se não único, obnubilar a demarcação ente as classes. É que, por exemplo, em nada deve importar aos trabalhadores instaurar uma política de cotas que sirva exclusivamente para assegurar a participação de mulheres ou de negros ou de homossexuais ou de quaisquer outras pessoas nos órgãos directivos das grandes instituições políticas e universitárias e nas administrações das grandes empresas. Não compete aos trabalhadores interferir na composição interna da classe capitalista dos gestores.
Mas as coisas tornam-se piores com a reivindicação dos espaços exclusivos, uma espécie de mini-nações para serem geridas por cada uma das identidades. É que neste processo se reforçam e consolidam os aparelhos burocráticos de cada identidade, através de um maior controle exercido sobre as bases arrebanhadas nesses espaços exclusivos. Chamam-lhes «espaços seguros». Para as burocracias que os dirigem sim, são seguros, mas aconselho a você e aos leitores a fazerem um inquérito. Quem for aluno universitário até pode propor esta pesquisa de campo ao departamento de estudos de género. Ouvimos falar todos os dias de assédio, e este é sempre apresentado como uma agressão de homens contra mulheres. Mas averiguem, você e os leitores, os casos de assédio nos meios de lésbicas e de homossexuais em geral. Averiguem as agressões físicas em casais ou triplexes de lésbicas e homossexuais. Servem os identitarismos para resolver estas questões? Pelo contrário, servem para ocultá-las.
Podia expandir a lista, mas acho que dei uma ideia do que quero dizer. Compete aos trabalhadores resolver os problemas do racismo e do sexismo no interior da classe trabalhadora, em vez de usar estes problemas para colocar a classe trabalhadora a reboque das classes capitalistas. Vou dar um exemplo. Há bastantes anos atrás, quando o MTST era ainda um movimento de base, numa das maiores ocupações alguma vez efectuadas, no estado de São Paulo (tão grande que um jornalista francês de Le Monde Diplomatique que eu encontrei numa das vezes em que lá fui me disse que nunca vira nada equivalente, nem sequer no México) pois nessa enorme ocupação surgiram alguns casos de violência doméstica, de agressões de homens contra as companheiras. Os activistas que dirigiam a ocupação expunham em público o problema e, segurando firmemente os agressores, convidavam as agredidas a esbofeteá-los, o que elas fizeram, em todos os casos. Não era a dor, era a vergonha. A pedagogia da porrada é ainda um excelente método, e foi com ela que os trabalhadores se constituíram socialmente como classe. A porrada contra os fura-greves foi um elemento fundamental da afirmação de uma solidariedade de classe, como foi a porrada contra os larápios que roubavam os míseros tostões de um companheiro, a porrada contra os delatores, contra os espiões do patrão. Estes não foram movimentos supraclassistas nem procuraram afirmar identidades. Foram movimentos de classe, procurando generalizar a solidariedade e a igualdade no interior da classe trabalhadora.
Exactamente o contrário do que hoje procuram os identitarismos.
João, de fato é muito interessante essa reflexão sobre as milícias! Em especial, falando das milicias religiosas, acho importantíssimo quando você fala sobre como elas se ”dissimulam”, não aparecem como o que são e isso é um fator de importância especial! As milícias e esse ”controle informal”, como eu chamei no meu comentário, que exercem, tem uma função vital na forma como a opressão vai operar e atingir as diferentes partes da sociedade… mas ainda que seja dessa forma ”extra oficial”, quando você consegue reconhecer esse tipo de agente é possível avaliá-los com mais clareza. Como você bem fala, ao passarem a imagem de serem outra coisa que não impositores de uma certa moral e de certos padrões de comportamento não se colocam claramente como agindo em nome de algo que não seja a própria e vaga noção de ”moral” ou de ”bom”, ”direito”, ”correto” e todos esses adjetivos que cabem. Acho que isso é muito importante pois é mais difícil combater esse tipo de noção vaga, justamente por ser geral e apelativa. Não é a toa que o Bolsonaro ganha tanta atenção com o discurso vago do ”acabar com a corrupção” e etc.
Sobre a sua pergunta, não me atrevo a responder, fui mesmo ler o começo do seu livro a parte 1 sobre definição do fascismo para entender melhor suas bases, mas ainda não tenho muita clareza da resposta. Me parecem ser essas milícias algo que atue para contribuir com a ascensão de uma ordem social ditada por seus fundamentalismos vagos. Se formos considerar o fascismo como uma revolta dentro da ordem, que se sustenta numa fragmentação da luta de classe e da própria identidade da classe trabalhadora, então as milícias religiosas servem a esse propósito, especialmente porque se passam no campo moral, massas influenciadas por esse tipo de imposição podem ganhar força e mais adesão de pessoas, e aí de repente aqueles que seguem e adotam esse tipo de noção pra pautar suas ações e principalmente pautar o discurso daqueles que alcançam posições públicas e etc; então nesse sentido pode ser totalmente possível atuar para que instituições ”democráticas” (ainda que submetidas à lógica do capital) tenham seu sentido transfigurado para atuar segundo os princípios fundamentalistas religiosos enquanto preservem seus nomes e atribuições originárias. Me pautando pelo seu livro e em muito do que estamos vendo no Brasil nos últimos anos, acho que o eixo religioso acaba sendo um braço do fascismo entende? Me parece que seguindo essa linha vamos cada vez mais nos aproximar de viver uma esquizofrenia coletiva e nossas instituições e leis, além de se manterem a serviço do capital, abarcarão todos os conceitos vagos e vazios que visam impor normas de comportamento sobre as massas. Desculpas se me alonguei mas me parece que esse tema é fundamental pra entender não só o Brasil mas todo um movimento histórico que vai se aprimorando com o tempo nessa questão da manipulação das massas
João, sobre a questão identitária, tenho algumas questões quanto ao que você coloca num sentido mais corriqueiro da coisa. Enquanto como uma classe e adotando a concepção da realidade da contradição entre trabalho e capital, não interessa a classe trabalhadora integrar ou assumir espaços dentro dos quadros dirigentes nas empresas, e mesmo nas universidades sendo essas instituições que em sua maioria reproduzem a ideologia burguesa; aliás vi que nas primeiras páginas do seu livro você dá uma explicação muito interessante para a vida dupla enquanto classe e enquanto massa que assume o indivíduo trabalhador, apesar de eu talvez ter certos problemas com o conceito de solidariedade.
Eu não poderia concordar mais no sentido de crer que esse tipo de questão identitária (igualitária, na verdade e ou de representatividade) deva acontecer no interior da classe e não fora dela. Entretanto, as lutas que se dão por melhorias em questões políticas ou econômicas acontecem paulatinamente e estão inseridas dentro do sistema, como você fala muito bem, todas as frentes de lutas tendem a ser, com o tempo, cooptadas pelo sistema, se tornando uma nova forma de acumulação e meio de propagação da ideologia burguesa através da inversão de seu sentido contra hegemônico original, ou simplesmente passa a assumir uma forma tão burocratizada e dentro dos limites do sistema que perde também sua capacidade de mudança tendo seu sentido também invertido.
Ao mesmo tempo que não compete à classe lutar por espaços dentro do quadro das instituições capitalistas, temos uma realidade que é dada no presente momento – na política, nas empresas, nas escolas, etc; se os espaços não forem ocupados pelos que integram a classe oprimida, serão então deixados ao completo domínio dos dominantes e isso iria deteriorar ainda mais as condições gerais, essa é a contradição prática da qual não há uma saída. Ações contra hegemônicas exigem uma capacidade de articulação da classe dificilmente alcançável, e mesmo quando se tem certo êxito, o tempo tende a fazer com que o capital inverta essa iniciativa e qualquer ação de cunho revolucionário mais abrangente iria requerer uma classe ainda mais articulada e unida. Ainda mais hoje, onde a cooptação do capital, mesmo através dos identitarismos e das fragmentações mais e mais possíveis, consegue se inserir e capturar a subjetividade das massas oprimidas cada vez mais com os discursos de ”emancipação” e ”empreendedorismo” etc.
Coloco essa questão porque me aflige muito.
Me parece verdadeiramente óbvio que uma leitura coerente do próprio Marx implica ouvir e eliminar quaisquer formas de dominação que possam estar presentes na sociedade, para a construção de um lugar de iguais. Bem como me parece mais óbvio ainda que não se pode falar em emancipação da mulher ou do negro ou do homossexual sem passar pela emancipação perante a opressão do sistema capitalista, como você bem disse, deveriam ser travadas essas lutas no interior do contexto de classe.
A forma como se dá a luta e as estratégias de que se vale podem ser mais importantes que a luta em si e seus motivos. Me parece faltar um elemento, ou mesmo um discurso, que seja capaz de aglutinar melhor as lutas contra opressões, por parte mesmo da esquerda anti capitalista. Não conheço bem a forma como escreveram os que adotaram uma visão marxista da sociedade, mas me parece que há uma concepção religiosa do comunismo (no próprio Marx) que pode acabar servindo de base para a rejeição de outras formas de luta (ou outros olhares para o mundo, que não excluam Marx, mas tirem a centralidade do trabalho por exemplo) ou a necessidade de ”sobrepor” essas outras formas de ação à ”bandeira salvadora do comunismo”; talvez nesse ponto mesmo a ideia de revolução permanente seja mais ”acolhedora” como tática discursiva..
Enfim, acredito que já esteja fugindo um pouco do tema aqui proposto.
Para retomar um pouco. Se, dentro da esquerda anticapitalista, nossa única resposta aos identitarismos que tangem o autoritarismo protofascista, for uma crítica que não seja capaz de ”englobar” os identitarismos, ou ajuda a promover um senso de coletividade, isso não faz com que a própria reação da esquerda ao autoritarismo dos identitários ajude a provocar a reação dos grupos hegemônicos, contribuindo assim para mais uma reação fascista ao autoritarismo protofascista dos grupos de identidade?
Gabriel,
Quanto ao seu penúltimo comentário, se for exacto o que li na imprensa acerca dos projectos de Ricardo Vélez Rodriguez — os conselhos de ética, a carta dos deveres do professor e a tutela dos municípios sobre a educação — então o controle informal de que você fala articular-se-á com a moral evangélica imposta pelo Estado e o resultado não irá ser bonito de se ver. Para empregar os termos de Masao Maruyama, teremos uma conjugação entre o fascismo instaurado «a partir de baixo» e o instaurado «a partir de cima», ou os eixos endógeno e exógeno do fascismo, como eu lhes chamo.
Passando ao seu último comentário, a dificuldade, e é esta a dificuldade principal hoje, é que os identitarismos impedem que as lutas contra o sexismo, o racismo, o machismo etc. ocorram no interior da classe trabalhadora. Impedem-no devido à própria forma como se organizam, de maneira excludente, reivindicando espaços exclusivos e rejeitando qualquer diálogo, no discurso e na prática. Não interessa às dirigentes feministas ou aos dirigentes de movimentos homossexuais ou negros ou do que quer que seja abolir as discriminações. Pelo contrário, interessa-lhes acentuá-las, porque é essa a maneira de melhor controlarem as suas bases. O segredo dos espaços exclusivos reside aí. Por isso os dirigentes desses movimentos se opõem à convivência e à miscigenação. Os identitarismos fazem parte integrante do próprio mal que pretendem denunciar. O identitarismo está viciado de raiz, tal como o nacionalismo a que se assemelha e que veio substituir.
Mas serão as lutas identitárias as únicas que existem hoje? Nada se opõe à sua visibilidade porque elas não contestam os fundamentos do capitalismo. E essa visibilidade é facilitada pelo facto de as empresas e as universidades, como quaisquer outras instituições no mercado, fugirem de tudo o que seja uma publicidade negativa. Assim, basta uma ameaça para essas instituições cederem mesmo às exigências mais absurdas dos identitários. Neste campo, a acusação é considerada prova suficiente. A visibilidade dos identitários deve-se ainda a um motivo acessório, o de terem um grande número de representantes entre os jornalistas. Mas será que pelo facto de serem hegemónicas no plano da publicidade, as lutas identitárias são as únicas que existem? Não devemos esquecer as lutas que permanentemente ocorrem dentro das empresas, as lutas da insatisfação quotidiana. É este o combate silencioso. E, porque é ele o mais profundo, não será mais eficaz?
A longo prazo não tenho dúvida de que a velha toupeira é mais eficaz do que o papagaio gritante. Mas há também o curto prazo, que é o que mais nos assusta neste momento. E será que a única oposição de vulto a surgir contra os evangélicos serão os identitaristas? Os excludentes de um lado contra os excludentes do outro? Será que nos limitaremos a ver engalfinhados os que pretendem que todo o negro é suspeito e os que afirmam que a miscigenação é um genocídio? Convém não esquecer que é esta, afinal, a razão de ser desta troca de comentários.
Mas no âmago do questionamento de Gabriel Silva parece-me residir um problema muito real, o da capacidade do capitalismo para assimilar e recuperar as lutas. Várias vezes me colocaram uma objecção: se a mais-valia relativa é mais rentável para os capitalistas, então não deveriam os trabalhadores esforçar-se por viver numa situação de mais-valia absoluta? Isto corresponde a perguntar se não é preferível ser haitiano do que sueco. A própria realidade dá a resposta, ao observarmos o sentido geográfico das migrações. Àquela objecção eu costumava responder dizendo que as formas actuais de vigilância e fiscalização electrónica, através da análise do que se escreve nas redes sociais, nos e-mails, etc., é muitíssimo mais eficaz do que os interrogatórios sob tortura. Será isso, no entanto, um motivo para encerrar a conta no Facebook e se pendurar no pau de arara? Este é um dilema, sem dúvida, e não vale de nada pretender que não o é. É preferível ter uma consciência lúcida deste dilema, para tentarmos responder-lhe, consoante as necessidades de cada ocasião. Em lado nenhum vi o problema melhor exposto do que numa novela de Alan Sillitoe, The Loneliness of the Long Distance Runner, que em português se traduz como A Solidão do Corredor de Fundo, mas não sei se está publicado entre nós. Se algum livro se pode classificar como um tratado de moral para os nossos dias, é este. Coloca-nos perante a verdadeira alternativa. Só que a resposta, em cada caso, terá de ser nossa. Mas felizmente trata-se de um corredor não dos cem metros, mas de longa distância, e todo o livro está escrito no ritmo da longa distância. É que, tal como o atleta, nós também beneficiamos de uma longa distância para responder ao problema, a distância que demora a percorrer toda a vida.
Caro João
Não sou nenhum especialista nos movimentos identitários, porém está claro que de forma geral o que vemos e ouvimos sobre eles são as pautas que você comentou, justamente, porque, mesmo que haja dentro de movimentos identitários um viés libertário mais abrangente, que reúna a libertação da mulher ou do negro, por exemplo, à libertação perante também ao controle do capital, esses aspectos não serão amplamente divulgados, e nem sequer poderiam ser atendidos a não ser no máximo como politicas de distribuição de renda, etc., comentados. Isso significa dizer que, talvez, ainda que haja uma consciência de classe dentro do movimento identitário, ao passar para ”campo prático”, só o que consigam sejam conquistas enquanto acesso em geral.
O quero dizer seria algo no sentido de que, o sistema capitalista está dado e assumir os espaços de representação dos centros de decisões burgueses pode fazer diferença na condição de vida pratica dessas pessoas; claro que esse tipo de estruturação tem viés unicamente reformista e atua dentro do sistema mas o que mais poderia ser feito, mesmo tendo em vista a capacidade do próprio sistema de suprimir qualquer caráter prejudicial ao capital que os movimentos possam apresentar?
Além disso, quando se fala na construção de “espaços seguros“ e coisas do tipo, o o movimento trabalhador também ao longo de sua historia constituiu suas redes de apoio ou luta de forma afastada do capital (e também tiveram suas principais iniciativas cooptadas).
O capitalismo como conhecemos tem como base um controle masculino e branco; a ascensão de oprimidos como mulheres e negros aos quadros dirigentes não poderia gestar uma maior disseminação hegemônica dos próprios conceitos de dominação? Que formas concretas pode-se dar as lutas anticapitalista e as que buscam a libertação supra classista de pessoas oprimidas sem que se assuma um formato de tendencias fascistas? Visto que qualquer iniciativa de cooperação tende a ser reprimida violentamente, ou ideologicamente, este segundo muitas vezes através de acoes altamente reacionárias que por sua vez podem gerar acoes mais alinhadas com o fascismo por parte dos movimentos populares e assim por diante.
Como você bem apontou, essa questão realmente esta no meu amago e no de todos nos, provavelmente. O ideal revolucionário que busca derrubar as superestruturas sempre da seu espaço para a reivindicação de politicas públicas de cunho mais social, “igualitário“ e etc, dentro da ordem.
Ao considerar que o fascismo geralmente floresce da desagregação da classe trabalhadora, não seria o movimento identitário vítima do mesmo processo, ao ter sua lua cooptada e transformada apenas numa luta por mais acesso? E sob o risco constante da desagregação ou repressão, no que diferem os movimentos identitários dos anticapitalistas? Dentro das melhorias reais que se conseguem para a condição de vida das pessoas, me parece que esses movimentos apesar de erráticos tem sua importância. Talvez caiba então a seguinte analise: se esses movimentos erráticos promovem certa melhoria para determinadas camadas de oprimidos através de “acoes afirmativas“ ou legislação, etc, as melhorias ganhas são efetivas? Ou provocam uma ação reacionária ainda pior?
Quanto ao Long Distance Runner, coloquei na minha lista de leituras
Caro Gabriel,
O capitalismo não vive de reprimir e criar miséria. Se isso sucedesse já estaria extinto há muito, como foi aliás a esperança dos primeiros socialistas. O capitalismo tem-se desenvolvido através do aumento da produtividade, um processo que faz com que a produção de um dado bem ou um dado serviço necessite de cada vez menos tempo de trabalho. A chave para a compreensão deste processo é a distinção entre valor de uso e valor de troca. No que diz respeito aos valores de uso, um trabalhador pode ter hoje dez ou vinte pares de calças quando o seu avô tinha um ou dois; mas o fabrico do conjunto das calças do trabalhador actual necessita de uma soma de tempo de trabalho inferior ao requerido numa época anterior por uma quantidade inferior de calças. E assim para tudo.
Se o salário permite ao trabalhador hoje ter acesso a um maior número de bens e serviços do que acontecia com o seu antepassado, então os limiares que definem as noções de miséria, de pobreza e de riqueza vão-se alterando à medida que a produtividade vai crescendo. Precisamente por isso o capitalismo desenvolve-se pela integração e não pela repressão. A integração efectua-se através da possibilidade dada aos trabalhadores de adquirirem um maior número de bens e serviços.
A noção clara da distinção entre os bens de uso e o tempo de trabalho neles incorporado e do funcionamento conjugado destes dois aspectos permitiria ultrapassar muitas ilusões. Ou, quando essas ilusões são interessadas, permitiria descartar muita demagogia. A exploração não se mede pela diferença entre o dinheiro que cabe a uns e o que cabe a outros, nem pela soma de bens que cada pessoa possa acumular. Esse é o tema do ressentimento. O processo de exploração incide no tempo de trabalho e não nos valores de uso. Muito sumariamente, os mecanismos da produtividade reduzem o tempo de trabalho incorporado em cada bem, e portanto aumentam a exploração, de dois modos:
1) Exigindo menos tempo de trabalho, os bens e serviços podem ser consumidos em maior quantidade pelos trabalhadores. Assim, a força de trabalho pode ser melhor alimentada, beneficiar de mais cuidados de saúde e receber mais instrução, o que neste caso significa adquirir as qualificações requeridas pela tecnologia vigente. Em consequência disso,
2) os trabalhadores podem operar sistemas técnicos mais sofisticados e podem fazê-lo com redobrada atenção, ou seja, podem aumentar a complexidade do trabalho e a sua intensidade, produzindo um maior número de bens e serviços em menos tempo. Torna-se assim possível a transição para novos patamares de produtividade, o que estimula o mecanismo que enunciei no § 1.
Trata-se de uma espiral crescente, e é ela que permite ao capitalismo assimilar as contestações. Quando o capitalismo reprime em vez de integrar, isto significa que alguma coisa lhe está a correr mal e que, portanto, não está a desenvolver-se como desejaria.
É neste quadro que eu analiso a função desempenhada pelos movimentos identitários. A análise a que procedo é estritamente objectiva, independente de desejos pessoais e de pretextos doutrinários. Dentro de pouco tempo — espero que seja realmente pouco tempo — será publicado um livro — não, não sou eu o autor — que mostra documentadamente, com números e relatórios, como os gestores mais lúcidos sabem que a integração de mulheres e negros nos lugares de chefia aumenta a rentabilidade das suas empresas.
Num comentário anterior eu sugeri a quem for aluno universitário que apresente ao departamento do estudos de género um projecto de pesquisa destinado a averiguar os casos de assédio e de agressão de carácter sexual nos meios de homossexuais tanto femininos como masculinos. Agora sugiro outro projecto de pesquisa, igualmente simpático, e com a vantagem de poder apresentar-se tanto no departamento de estudos de género como no de estudos étnicos, o do papel desempenhado pela Fundação Ford na criação e na promoção, no Brasil, do movimento negro e dos movimentos de género.
Nunca ouvi dizer, porém, que a Fundação Ford tivesse subsidiado e fornecido orientação para as lutas autónomas dos trabalhadores. É que há um aspecto fundamental que distingue o processo de assimilação pelo capitalismo das reivindicações identitárias e o processo de assimilação das lutas colectivas dos trabalhadores. Estas lutas colectivas, quando não se limitam a delegar em alguns representantes a função de chegar a um acordo com os patrões e são realmente activas, desenvolvem-se num plano de solidariedade e de igualdade exterior e antagónico ao capitalismo. Estas lutas permitem, por isso, conceber um mundo diferente. Para serem assimiladas e integradas pelo capitalismo, elas têm primeiro de se desvirtuar internamente pela burocratização e pelo fraccionamento. Transformam-se noutra coisa, e só então essa outra coisa é assimilada pelo capitalismo.
Os movimentos identitários, porém, colocam-se desde início no campo do capitalismo. 1) Colocam-se no campo do capitalismo pelas suas formas de organização, hierarquizadas, arrebanhadas em espaços exclusivos, controladas pelo expurgo de conteúdos ideológicos considerados não seguros. Tanto mais que a reivindicação de espaços seguros não se destina a afastar capitalistas mas a afastar quem tiver outra cor de pele ou quem tiver pénis. 2) E colocam-se dentro do capitalismo pelas suas aspirações, que se limitam a reivindicar a ascensão dentro do sistema económico, através da participação em lugares de chefia ou mesmo do predomínio nesses lugares.
Mas será que o capitalismo até agora foi como foi pelo facto de os patrões serem predominantemente homens e brancos ou por obedecer a mecanismos económicos que não dependem dos órgãos e preferências sexuais nem da melanina? Será que colocar mulheres nos cargos económicos decisivos altera o capitalismo, ou no mínimo o inflecte um pouco? Parece-me interessante estudar o período em que à frente da Hewlett-Packard esteve Carly Fiorina, a primeira mulher a desempenhar as funções de ceo numa empresa Fortune-20. Ou estudar a direcção de Christine Lagarde no Fundo Monetário Internacional. E será que colocar negros nos cargos económicos decisivos altera o capitalismo, ou no mínimo o inflecte um pouco? A África do Sul é o laboratório prático privilegiado para responder a esta questão. Quem estudar as estatísticas verá em que mudou, ou não mudou, a situação do proletariado daquele país, evidentemente negro. E verá também a ascensão vertiginosa de um pequeno número de políticos e sindicalistas negros, que se converteram nos principais capitalistas do país. Um caso emblemático é o de Cyril Ramaphosa, que começou a carreira como proeminente dirigente sindical e convictamente socialista, para depois de terminado o apartheid se tornar um dos principais empresários do país e ser hoje presidente da república. O que será que isto me faz lembrar?
João meu querido
De fato eu acredito que concordo com tudo o que você escreveu. Perceba que fico levantando contrapontos não para provocar, mas porque me parece uma relação bastante complexa entre os anticapitalistas, digamos, e os movimentos identitários quando essa relação se resume a criticarmos esses movimentos. Parece que acaba sendo uma certa não legitimação ou, no limite, serve de certa forma de alimento à desunião entre o que poderia ser a ”esquerda’.. como já comentei aqui durante a nossa conversa, me preocupa muito essa falta de união entre os oprimidos e essa fragmentação sempre me incomodou. É que a perspectiva anticapitalista, não necessariamente ”feminista”, e vice versa, parecem ter a incapacidade de se unificarem contra todas as opressões, enquanto estas se mantém e são, no máximo, transfiguradas.
Mas ao falar nessas transfigurações ainda que micro e ainda que no campo de dentro da ordem; se através do movimento identitário se passa a ter mulheres com salários melhores ou mesmo coisas do cotidiano como um trato diferente, respeito, etc etc, isso é positivo pra essas pessoas. Esse capitalismo ”fofo” ou ”inclusivo” etc, pra nós, é inaceitável, mas não quer dizer que não possa configurar certas ”micro” melhoras e sem dúvida, para pessoas que não são anticapitalistas, esse é o ideal. Sei que tô aqui meio que fazendo um discurso ”apaziguador” meio contraditório e nem eu mesmo sei se acredito nisso, mas, na atual conjuntura do capitalismo e das chamadas lutas sociais, o que os anticapitalistas têm conquistado? Não seria uma proposta ou discurso mais ”unificador” interessante para todas as causas?
Quando falamos num ” plano de solidariedade e de igualdade exterior e antagônico ao capitalismo” de que estamos falando? Estou tentando falar sobre a ”eficácia” da luta digamos assim, e pergunto sem ironias a sua opinião
Esse livro que você citou, qual é/ será?
Enfim, quanto ao que você expôs, realmente me parece que está de acordo com o que eu já pensava, mas colocado de uma forma quase impecável e sintética. O último parágrafo do seu comentário, para mim, resume muito bem a questão. Mesmo porque, apesar de outras formas de opressão serem anteriores ao capitalismo, este se acopla a todas elas e, mesmo sendo mais ”antigas que o capital”, me parece que não há forma de opressão que não esteja ligada à noção de propriedade privada – sempre tem-se a noção de ser ”dono” da vida e do corpo do negro, da mulher, etc.
Mas fico me pegando em dúvidas quanto às formas de nos posicionarmos acerca desses movimentos e por isso estou aqui te amolando tanto, peço perdão
Caro Gabriel,
Não sei responder à sua dúvida, e não creio que alguém o saiba, porque neste caso o capitalismo já não existia. É claro que há quem pense que o capitalismo entrou na fase terminal, mas como isto vem a ser dito praticamente desde que o capitalismo apareceu, coloco essas afirmações no mesmo saco das profecias do fim do mundo feitas pelas Igrejas apocalípticas.
Tudo o que sei dizer é que os trabalhadores são capazes de criar, no seu próprio plano, formas de relacionamento antagónicas ao capitalismo. Por uma complexa dialéctica de desvirtuação interna, recuperação e assimilação, o capitalismo integra um simulacro dessas relações, e de cada vez esses simulacros permitem-lhe inaugurar novos surtos de produtividade. Logo no alvor do capitalismo, o mais lúcido de todos os revolucionários, Jean-Paul Marat, colocou esta questão ao perguntar se a revolução, como uma suspensão num líquido, necessitava de ser sempre agitada do exterior, se não haveria uma organização social que se revolucionasse permanentemente a si própria. «Está a suceder à nossa revolução o mesmo que a uma cristalização perturbada por choques violentos», escreveu ele em L’Ami du Peuple (O Amigo do Povo) de 27 de Agosto de 1791; «primeiro, todos os cristais disseminados no líquido se agitam, se dispersam e se misturam desordenadamente; em seguida, movem-se com menos animação, aproximam-se gradualmente e acabam por regressar à combinação inicial e se ligarem intimamente».
Porém, como depois pôde ver-se, não se trata de um círculo vicioso, mas de uma espiral. Não se regressa ao mesmo lugar, mas de cada vez abrem-se novas perspectivas de acção prática e novos horizontes ideológicos, e é neles que novas gerações de trabalhadores inauguram novas formas de acção e concebem novos desejos. O paraíso sonhado nunca é o mesmo, vai mudando, e a escada para lá chegar também.
O combate contra o racismo, contra o machismo, contra os preconceitos de ordem sexual faz parte dos novos problemas trazidos pela mais recente reviravolta na espiral da luta e da recuperação. Mas observando a movimentação prática dos trabalhadores, aquela que conduzem por iniciativa própria e ao seu próprio nível, não me parece que eles concebam nem apliquem esses novos objectivos como justificação para mais divisões, mais hierarquias em concorrência, mais espaços exclusivos. Por que não experimenta você, Gabriel, organizar uma greve, uma ocupação de empresa, uma ocupação urbana, baseada em critérios identitários? Tente e veja o que sucede. Sucede o mesmo que a um certo movimento social de base estudantil quando o identitarismo tomou conta dele. Há um completo antagonismo entre, por um lado, os movimentos identitários, que acentuam as diferenças e as incompatibilizam; e, por outro lado, a ampliação das noções de igualdade e solidariedade, que visa converter as diferenças de cor de pele, de sexo e de comportamento sexual em critérios sem relevância. Creio que é nesta clivagem que hoje se trava uma luta na esquerda.
Querido João
Fácil por parte desses profetas anunciar sempre o fim definitivo do capitalismo, né
Eu sou crítico aos identitarismos quando assumem a forma autoritária que você bem descreve, e também quando não assumem o conflito de classes conjuntamente as suas lutas pelo fim de diferentes formas de opressão. Mas ao mesmo tempo é uma linha tênue pois, como apontar a crítica sem parecer criticar todo o movimento? Os marxistas são ótimos fazendo críticas e essas podem ser apropriadas pelos reacionários de sempre para deslegitimar as lutas.. e isso trazido para o campo prático também é danoso, principalmente se considerarmos que há pessoas nos N movimentos que de fato não querem o fim do capitalismo, mas sua luta, ainda que dentro da ordem, pode ser que ajude a levar acesso a (renda, escolaridade, etc) uma condição de vida melhor e seria arrogância demais criticar esse tipo de ascensão, talvez.
Concordo que as diferenciações fragmentam a classe. Enquanto o capital cada vez mais se torna global, as lutas cada vez mais se tornam micro-focadas e ultra relativizadas, essa realmente deve ser a maior crítica que temos.
Quanto às formas de luta e organização, esse tema me é bastante complexo visto que qualquer movimento estaria de certa forma inserido no capital (meios de comunicação para de se organizar? locomoção? subsistência??), e me parece que a coisa fica meio vaga com isso de os trabalhadores ”se organizarem por si mesmos” e etc e tal…mesmo porque sem um sentido forte de classe provavelmente vão ser cooptados para dentro da ordem mais hora menos hora. Enfim, parece que às vezes somos tão críticos que basicamente não há o que se fazer, e tudo que está sendo feito está errado, e devemos esperar que os trabalhadores resolvam buscar ”formas alternativas” de se organizar..
Caro Gabriel,
A realidade é abundante em linhas ténues, em nuances. Por isso é necessária a ciência e, na luta política, a discussão teórica, para descobrirmos as rupturas sob as continuidades.
Você afirma também: «me parece que a coisa fica meio vaga com isso de os trabalhadores “se organizarem por si mesmos” e etc. e tal». Ora, eu pude participar num processo revolucionário que durou um ano e meio, ou mais ainda em algumas das suas consequências e ramificações, e a organização dos trabalhadores por si mesmos não era nada vaga, era um facto concreto. Foi um facto concreto também noutros lugares e noutras épocas. Tal como é um facto concreto hoje, no dia a dia, em pequenos âmbitos, de maneira discreta, tão discreta que os poderosos nem dão por ela. As palavras são sons e letras, não podem ser outra coisa, é o destino delas. Mas evocam realidades. E se, na esmagadora maioria, a história é escrita pelos vencedores, isto não significa que os vencidos não existam e não deixem traços. Cabe procurá-los.
Querido João, peço desculpas pelo aluguel que faço do seu tempo nessa troca de comentários!
Se a forma que assumiu o desenvolvimento capitalista envolvem a opressão de diferentes trabalhadores entre si (mulher, negro, gay, etc), e isso determina todo um modo de relações sociais.. por que não poderíamos pensar que a superação dessas formas de opressão e desigualdade através da ação desses oprimidos levaria a mudanças estruturais no sistema? Se o capitalismo foi criado incluindo essas formas de opressão nas suas bases, rompê-as poderia significar romper o próprio capitalismo (tomando emprestado aqui argumentos que aprendi com pessoas dos movimentos identitários). Não acho que implicaria no fim do sistema, pois teria de ser necessário um movimento de classe conjunto com o identitário e isso nem sempre ocorre mas, ainda assim, por que não pensar que isso poderia ser uma mudança estrutural? Quando se fala mesmo nas ações de mulheres ou negros, por exemplo, que reproduzem as mesmas atitudes de opressão, ou as inversas à forma hegemônica, ainda assim estamos falando da reprodução de conceitos dominantes, não se trata de uma mulher ou negro, dentro de um órgão de poder, mas de uma pessoa assim e que seja ao mesmo tempo defensor(a) das ideologias contra-hegemônicas. Pouco importa que um operário se torne presidente se está atuando numa estrutura dominante e sob a noção dominante, mas não quer dizer que isso, ainda assim, não possa elevar a condição de vida geral dos operários por conta do viés que alguém assim, dentro de órgãos diretivos, pode empregar. Sinto como se houvesse um certo problema ao personificar as atitudes que ocorrem em maior ou menor grau como se fossem elas o ideal dos movimentos. Mas ao mesmo tempo a luta, na prática, que é feita no dia dia, é feita por pessoas, e visam resultados. Já que a construção de um espaço social que seja hegemonicamente contra as opressões depende de um processo contínuo, longo, incerto, acabam se voltando muitas vezes para resultados mais ”práticos” como acesso, etc; como fazer a crítica a esse movimento sem parecer meramente uma desqualificação da causa?
Assim como pensar que os operários, ao romperem sua relação de dominação, poderiam acabar com o sistema. Há uma relação de opressão clara e há o interesse em rompê-la mas, ainda assim, o proletariado pode, e o faz sempre, travar lutas contra essa dominação que não necessariamente rompem o sistema, enfim, como falamos, esses movimentos contra as opressões são sutis e vão e vem num movimento contínuo, o que estou tentando é um esforço pra entender a real diferença entre o ”movimento operário” e os identitarismos. Mesmo porque a luta operária também se corrói, se dilui, é cooptada, etc.
Se os movimentos identitários apresentam formas de agir que bebem da fonte do fascismo, essas formas devem ser combatidas mas há muitos movimentos que tem, pelo menos enquanto base, uma ideologia de ”igualdade” e dos conceitos mais essenciais quanto ao fim da opressão. Apesar da essência, esses conceitos podem ser nocivos mesmo ao capital e por isso, talvez, a forma que aparece mais, a forma de difusão de massa dessas ideologias acaba ficando apenas no campo da representação ou do reforço à diferença, e não a difusão dos ideais de igualdade.
Mesmo nas questões de representatividade, ainda que dentro da ordem, há ganhos positivos. O próprio movimento operário no seu começo lutava pelo sufrágio para toda a população (masculina), participação nas campos de decisão dos governos e etc, o que seria isso, se não representatividade?
O que é a ação da parte do proletário que ”reprime” o ”playboy”, não da validade para o que fala por ser ”patrão” ou por ser ”rico” etc, se não é um movimento semelhante ao discriminatório promovido por parte dos identitarismos? A sensação de injustiça que leva à vontade de punição, as reivindicações por melhores condições e salários que pode aparecer, no geral, apenas como ”busca por privilégios” dentro de cada categoria de trabalhador… Isso me faz lembrar, apesar de ter consciência de que escrevi de forma confusa, de quando você fala sobre a forma como o fascismo ganha força justamente da desagregação da classe trabalhadora.
Enfim, tento aqui ir mais a fundo e perceber com clareza a diferença nessas concepções e se há crítica aos identitarismos (e há), como direcioná-la de forma mais precisa. Mais uma vez, desculpas por alugar o seu tempo e não pagar por isso!!
Caro Gabriel,
A nossa conversa está a andar em círculo. Eu não pretendo convencer, nem a si nem a ninguém. Pretendo apenas exprimir-me claramente e ser entendido. De resto, cada um faça o que quiser com as ideias que defendo.
1) Qualquer análise histórica séria mostra que as desigualdades de cor da pele, de sexo, ou de preferências sexuais não são inerentes ao capitalismo nem são uma condição estrutural do capitalismo. Pelo contrário, o capitalismo arremeteu desde início contra essas desigualdades e só se desenvolve eliminando essas desigualdades. Dois autores alemães afirmaram isto mesmo num pequeno Manifesto que publicaram nos meados do século XIX. Discordo de algumas teses desses autores, mas concordo inteiramente com aquela visão da dinâmica do capitalismo.
2) As clivagens de carácter nacional ou sexual ou de cor da pele têm-se agravado quando o capitalismo não consegue desenvolver-se, não quando ele se desenvolve. Dito de outra forma, o fascismo nunca criou raízes nos países e nas épocas em que os ciclos de mais-valia relativa se reproduziam e ampliavam.
3) Desde o final da segunda guerra mundial que nas economias desenvolvidas o capitalismo tem minado os fundamentos do velho nacionalismo. Aquilo que hoje se apresenta como nacionalismo na União Europeia e nos Estados Unidos é já outra coisa, é simplesmente uma atitude anti-imigrante. Ou seja, é uma luta das camadas da classe trabalhadora que estão numa situação mais precária contra aqueles imigrantes que lhes podem fazer concorrência no mercado de trabalho. E se alguns sectores do capitalismo — representados, por exemplo, por Trump nos Estados Unidos ou por Salvini na Itália ou por Theresa May no Reino Unido — encabeçam a reacção contra os imigrantes, isto revela o declínio dessas economias e as dificuldades que enfrentam. Os políticos que representam um capitalismo em desenvolvimento — e a chanceler Merkel é o melhor exemplo — posicionam-se activamente em defesa da imigração.
4) Nas últimas décadas a transnacionalização da economia, com a globalização do mercado de trabalho e a tendência à homogeneização cultural, minou os fundamentos do velho nacionalismo e foi neste contexto que surgiram os identitarismos.
5) É falso o que você escreve, que «há muitos movimentos [identitários] que têm, pelo menos enquanto base, uma ideologia de ”igualdade” e dos conceitos mais essenciais quanto ao fim da opressão». Pelo contrário, a base de todos os movimentos identitários é uma ideologia de desigualdade. Cada movimento identitário pretende afirmar a sua superioridade não só sobre as pessoas comuns mas igualmente sobre os restantes movimentos identitários. São movimentos exclusivistas e fragmentadores. Estes dois aspectos, que eram os mais nocivos do velho nacionalismo, caracterizam agora todos os movimentos identitários.
6) O facto de os movimentos identitários serem exclusivistas e fragmentadores e pretenderem afirmar a sua superioridade sobre todas as outras pessoas faz com que desde início surjam como novas hierarquias. Os identitarismos constituem movimentos de promoção de novas elites.
7) O facto de os movimentos identitários serem exclusivistas e fragmentadores faz com que, em vez de contribuírem para eliminar ou sequer para atenuar o racismo e os preconceitos sexuais, pelo contrário, acentuem as diferenças e as clivagens. Os identitarismos não pretendem eliminar as divisões. Pretendem apenas inverter a hierarquia dessas divisões.
8) A eliminação do racismo e dos preconceitos sexuais só se obterá quando as cores da pele ou as divisões de sexo ou as preferências sexuais deixarem de servir de critério para definição de identidades e, pelo contrário, perderem a pertinência. Aquilo que os identitarismos tomam como base deixará de ser considerado relevante.
9) Mas esta transformação é tanto mais difícil quanto os movimentos identitários tomaram o lugar antes ocupado pela esquerda. Por isso a reconstrução de uma esquerda anticapitalista exige o combate ao identitarismo.
Querido João
Vejo aqui respostas até para coisas que comentei agora mesmo em outro artigo seu. (!)
Acredito que a reconstrução da esquerda anticapitalista tenha que combater essas ideias amplamente disseminadas quanto a sobreposição de uma raça contra outra, etnia contra outra. Analisando as coisas globalmente, os movimentos identitários favorecem as condições de desenvolvimento do capitalismo e aproximam oprimidos das ideologias vinculadas à sua lógica.
Talvez o maior problema da ”esquerda” seja sua capacidade de se fragmentar internamente, quando cada ala defende sua posição em detrimento de outras possíveis, e o capital continua se globalizando e ampliando suas esferas de poder e captura. Mas essa crítica de certa forma pode isolar, também, a esquerda anticapitalista. O que talvez seja natural.
Houve uma época em que a esquerda se orgulhava de desprezar os compromissos e os consensos e dava a primazia às questões ideológicas, sacrificando-lhes os interesses económicos imediatos. Orgulhava-se sobretudo de defender ideologias contrárias aos lugares-comuns aceites como verdades. Em suma, a esquerda orgulhava-se de falar claramente e de remar contra a maré. Hoje, porém, é um novo tipo de regimes políticos, que juntam a extrema-direita radical com o fascismo ou o neofascismo, quem coloca a ideologia em primeiro lugar, muitas vezes em detrimento do pragmatismo económico, e rejeita os consensos, alterando as regras do jogo institucional. Pronunciando-se abertamente, quando não provocatoriamente, contra o politicamente correcto, este novo tipo de regimes passou a ocupar, em detrimento da esquerda, o primeiro plano no confronto ideológico. É o que sucede nos Estados Unidos, no Brasil e em Itália com governos — note-se bem — resultantes do voto popular. Os políticos deste novo tipo de regimes fazem declarações públicas sem metáforas nem receios, enquanto a esquerda se desespera por eles não aplicarem o pragmatismo nem se dedicarem ao compromisso. Esta esquerda ou invoca agora mitos moralistas e supra-classistas, quer os da cidadania quer os das identidades, ou mostra-se receosa de se afirmar ideologicamente e até mesmo se pretende desideologizada. É urgente iniciar uma época em que de novo seja a esquerda, e não a direita nem os fascistas, a incomodar.
E se a “esquerda” tivesse simplesmente perdido a famosa “batalha das ideias”?
haveria muitas razões para isso …
Talvez seja por isso que ela não pode fazer nada neste terreno.