Por Miguel Serras Pereira
O que se segue é uma breve reflexão sobre as propostas de instituição de um “rendimento básico incondicional” (RBI), ou “rendimento de cidadania”, que têm vindo a ser reiteradas por diferentes vozes no contexto da crise económica que se instaurou e tenderá a exasperar-se por força da actual pandemia. Tomarei como ponto de partida um breve artigo de André Barata, que sustenta a pertinência da reivindicação de um RBI, não só na actual conjuntura, embora sem a perder de vista — e escreve:
“É possível proteger um nível decente de rendimento das pessoas independentemente do trabalho de que possam dispor, atribuindo-lhes um rendimento básico incondicional (RBI), ou de cidadania [“prestação financeira atribuída a cada pessoa apenas em virtude da sua cidadania”]; e é possível proteger o trabalho das pessoas, que é um bem social a que todos têm direito, distribuindo-o de forma mais igualitária, trabalhando menos para que mais possam ter acesso a trabalho. Um rendimento básico pode alavancar uma jornada de trabalho com menos horas ou uma semana de trabalho como menos dias. […] Ao tornar um nível de rendimento independente do trabalho, o RBI está também a tornar um nível de trabalho independente do mercado”, sendo que “os bens sociais mais básicos devem estar desmercadorizados”.
Ora bem, partilhando no imediato e na generalidade a pertinência dos considerandos do artigo, ainda que com algumas reservas, o que me interessa agora é acentuar que a instituição do RBI nos termos propostos, ou outros semelhantes, equivale de facto a uma repolitização (explícita) da economia (sempre) política governante. E, em seguida, indicar brevemente algumas condições necessárias para que a repolitização em causa se proponha e passe à acção em termos inequivocamente democráticos. Quando André Barata diz, por exemplo, ser necessário “desmercadorizar” certos bens essenciais — o que é, sem dúvida, uma evidência — seria bom que explicitasse que um desses “bens” é a força de trabalho. E acontece que desmercadorizar a força de trabalho significa ou implica retirar o mercado do trabalho, ou seja, substituir este último como mecanismo de distribuição do rendimento. Ora, para esta democratização da economia, o RBI é insuficiente, embora possa, num formato semelhante ao proposto pelo artigo, ser uma etapa. Mas, para que seja uma etapa, em vez de um obstáculo, é também necessário não perder de vista a meta, que, ainda que não nos seja possível defini-la com exactidão, só pode ser a democratização da economia.
Há já mais de vinte anos, tive ocasião de observar, a propósito da proposta de “rendimento de cidadania” ou “alocação universal” de Jean-Marc Ferry[1], uma desproporção enorme entre o longo alcance dos seus pressupostos em matéria económica e a timidez da solução a que ele chegava. Dizia eu que quando se sabe, como ele sabia, “que não existe de facto qualquer chave económica de repartição do rendimento global” e que “ninguém pode dizer como uma hierarquia dada dos rendimentos tem fundamentos objectivos na economia”, ou “porque é que, nessa hierarquia, o rendimento primário de certa categoria se relaciona com outros rendimentos segundo certo coeficiente multiplicador”[2] — então, querer instituir democraticamente um “rendimento de cidadania, de resto tendo por objectivo promover a “participação”, só poderia fazer-se pondo em causa a divisão do trabalho político, sem esquecer a divisão política do trabalho, chamando os cidadãos a deliberarem e a decidirem responsável e regularmente nas matérias da orientação e da gestão, do sentido e das razões, do conjunto desse aparelho de poder político que é a economia, e a superarem assim a dissociação entre a acção política e a actividade económica.
Nesta ordem de ideias, a repolitização democrática da economia política que nos governa implicaria, entre outras coisas: uma democratização cooperativa das empresas e locais de trabalho, que concedesse à liberdade e responsabilidade dos seus colectivos a tarefa de conjugar e gerir as exigências estratégicas e instrumentais da produção; uma democratização do mercado que o tornasse meio e expressão de uma verdadeira soberania dos consumidores, o que significaria uma democratização-igualização dos rendimentos, sendo estes determinados, como Castoriadis sempre defendeu, pela transposição, com as adaptações e correcções necessárias, do princípio igualitário que atribui um mesmo valor e importância ao voto de todos cidadãos; a articulação desta democratização, ao nível do conjunto, com a publicização democrática do exercício do poder político, nos termos até aqui indicados.
Por outras palavras, a repolitização democrática da economia política implica uma ruptura radical — não instantânea por certo, mas a empreender desde já — com o “espírito do capitalismo”, ou, se se quiser, com a significação imaginária central que, segundo Castoriadis, o anima: a da “expansão ilimitada das forças produtivas”, acompanhada sempre pelo desígnio de uma expansão universal da dominação hierárquica e de uma extensão do “valor económico” que tende a tornar matéria-prima e mercadoria toda a realidade humana ou natural[3].
Mas esta ruptura com o “espírito do capitalismo” implica também, e em simultâneo, uma ruptura com a lógica do poder de Estado, e a construção de formas alternativas de poder político. Tanto quanto vejo, o único poder político capaz de operar a repolitização democrática da economia política seria um poder igualitariamente aberto no seu exercício ao conjunto dos cidadãos e cuja sede seria um espaço público de deliberação e decisão livres e responsáveis. Um poder da cidadania governante que superaria, pois, a divisão do trabalho político instituída pela ordem estatal e económica estabelecida, e que, aprofundando e consolidando os direitos democráticos que apesar de tudo refreiam a dominação hierárquica nas sociedades contemporâneas, substituiria, na medida que se fosse implantando, ao espaço administrativo e burocrático da ordem estatal e da organização económica vigentes um verdadeiro espaço público de participação igualitária dos cidadãos no exercício do poder. Sem querer fazer jogos de palavras, parece-me evidente que a lógica e a organização da chamada por antífrase “administração pública” não se afastam menos do que o sector privado da economia política dominante do que seria a instituição de um verdadeiro espaço público de exercício democrático do poder.
Como demonstra a história do século XX, através das experiências do chamado “socialismo realmente existente”, a estatização da gestão do trabalho e da produção, bem como do conjunto da actividade económica, só pode levar ao oposto da publicização/repolitização democrática aqui proposta. Onde a administração burocrática e a sua lógica hierárquica reinam é, ao nível político, a privatização mais extrema que se instala, alternando com uma arregimentação disciplinar exacerbada. Em contrapartida, é a participação igualitária dos cidadãos na definição das suas próprias leis — o que inclui a definição dos limites do que é legislável — o melhor modo de acção de que dispõem tanto para proteger os seus direitos individuais como para salvaguardar um espaço público que garanta o desenvolvimento sob todos os aspectos da sua autonomia.
Notas
[1] Jean-Marc Ferry, L’Allocation universelle. Pour un revenu de citoyenneté, Paris, Cerf, 1995.
[2] Jean-Marc Ferry, Les Puissances de l’expérience, I e II, Paris, Cerf, 1991.
[3] Sobre os absurdos e sofismas da ideologia do mercado capitalista, a democratização da economia, a política de igualização de rendimentos, o exercício do poder político pelo autogoverno dos cidadãos, vejam-se, por exemplo, entre muitos outros, os seguintes escritos de Cornelius Castoriadis: “La ‘rationalité’ du capitalisme”; “Quelle démocratie?” em Figures du pensable, Paris, Seuil, 1999, e “La démocratie comme procédure et comme régime” em La Montée de l’insignifiance, Paris, Seuil, 1996.
De duas, uma: éramos pocos y parió la abuela ou a enésima primeira reinvenção da roda…
Em bom português,sem mantos de chita a encobrir o assunto:
Na opinião do acima escrevente,o maior capitalista do Mundo foi o sr. José Estaline !!!
Defendido por estas cabeças,ao pobre do RBI só lhe resta saír da sua zona de conforto e fazer-se à vida! Por lá encontrará um ou outro Boris,muito doente, para lhe dar o valor!
Ou não percebi o que estava escrito,que o está, mesmo,mesmo,mesmo de geito que ninguém perceba?
Leitor de comentário científico,sofre !!!
O que seria de nós, sem a patafísica de Clamuel Semens?
No edifício-sede do Passa Palavra, um pequeno prédio de dois pisos e sem garagem, há um minusculo postigo na parede que dá para a rua (na parte de trás está um morro barrento que em qualquer dia de chuva pode por tudo abaixo). O postigo quase sempre está fechado (com uma pequena tremela de madeira presa por um prego), mas sempre que algum desgraçado resolve, da rua, anunciar suas opiniões com cal na parede cinzenta do edifício-sede do Passa Palavra, eis que o postigo abre-se e um rosto de pele amarelo-biliosa, e sempre com a barba por fazer, grita ao incauto desgraçado umas obscuras frases que ele sempre acha muito engraçadas pois assim que as diz vê-se naquela cara um sonoro riso marcado por dentes amarelos-róseos pelo escorbuto avançado… Do fundo do primeiro piso do edifício-sede uma velhota sempre ralha com ele: “ULISSES!! Fecha o postigo e não digas asneiras!! Vai tomar a sopa e cala-te…! Seu velho inútil!
Coitado do ULISSES, uma vida inteira como voyeur das letras de cal dos outros; na práxis do abre e fecha daquela tremela tão gasta, tão inútil, passa a vida a rir com a “brocha” dos outros na mão…
Se a Dona Belinha tivesse estudado atentamente os oitocentos e cinquenta e quatro comentários de Ulisses, não teria escrito um comentário tão maldoso e, afinal, tão injusto. Sugiro-lhe que leia um artigo que o Passa Palavra publicou há muito, «A sabedoria de Ulisses», assinado nada menos do que por Filoctetes. Ainda se em vez da Dona Belinha quem tivesse escrito o comentário fosse a Dona Penélope…
UHAUHAUHAUHAUHAUHAUHA
Ulisses é a melhor coisa do Passapalavra, apesar d’eu entender só um terço das coisas que ele escreve