Por Pablo Polese

CHAVES, Wanderson. A Questão Negra: a Fundação Ford e a Guerra Fria (1950 – 1970). Curitiba: Editora Appris, 2019. 295p.

Dentre as inúmeras polêmicas que envolvem o racismo e a luta antirracista no Brasil há uma particularmente explosiva: a da relação entre o movimento negro e as agências estrangeiras de financiamento, em especial, no caso brasileiro, a Fundação Ford. O tema é bastante conhecido no bojo da militância negra, em especial após um conjunto de debates iniciados com o artigo “Sobre as artimanhas da razão imperialista” (1998), de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, onde se correlacionava raça e imperialismo. O artigo sai em 2002 no Brasil, numa edição especial da revista Estudos Afro-Asiáticos que, não por acaso, trazia na mesma edição um artigo voltado especificamente a “esclarecer” a relação entre a Fundação Ford e a questão negra no Brasil. É indubitável que a atuação da Fundação Ford quanto à questão negra no Brasil é determinante para a definição dos rumos da abordagem da questão racial e do antirracismo no Brasil (e não apenas disso, mas de todo o desenvolvimento das ciências sociais no país). Quanto a isso, em geral, as pessoas que apontam essa relação como problemática acusam um suposto controle da questão racial por uma “entidade imperialista”. Da parte de quem não vê grandes problemas nesta relação costuma levantar-se duas respostas, articuladamente: a de que já existia movimento negro no Brasil antes da chegada da Fundação Ford, e a de que a Fundação Ford é uma entidade independente tanto do governo quanto das empresas estadunidenses, incluindo a Ford. Segundo essa linha, a Fundação Ford teria uma ampla e complexa agenda própria que, nalguns casos, confluía e conflui com a agenda de entidades e organizações do movimento negro brasileiro, levando-a a apoiar algumas iniciativas, numa confluência de interesses benéfica para ambos os lados. Num caso, portanto, estaríamos diante de uma entidade dominadora, no outro, de uma parceira. É neste debate que a pesquisa de Wanderson Chaves se insere.

A forma como o autor adentra neste debate é uma das razões que dão ao livro um valor ímpar. Diante de tema tão espinhoso, o autor tomou algumas decisões. Em primeiro lugar, Wanderson fugiu das oposições e do confronto direto de interpretações, focando numa área mais frutífera: a do rastreio e análise de documentos. O livro levanta e organiza uma quantidade impressionante de material documental lido em primeira mão: pareceres, análises, documentos, resoluções, orientações, cartas, memorandos da Fundação Ford, da CIA, do Departamento de Estado norte-americano, da presidência, do espólio de Florestan Fernandes etc. Tudo coletado em primeira mão nos acervos de instituições norte-americanas e também em acervos nacionais. A estratégia narrativa e as opções analíticas adotadas por Wanderson evidenciam apenas tangencialmente a opção política do autor: o livro “fala por si mesmo” e, por isso, assume um status de documento, tamanha a consistência e fundamentação da análise. Ao se amparar no complexo e multifacetário debate interno da Fundação Ford quanto às estratégias a serem adotadas (em plano mundial) com respeito à definição da agenda da Fundação para a questão racial, a pesquisa do autor desconstrói o debate sobre a atuação da Fundação Ford quanto à questão negra e refunda-o em bases sólidas, portanto estamos diante de um livro incontornável para quem quiser debater o tema daqui em diante.

O livro de Wanderson é fruto do Grupo de Estudos sobre a Guerra Fria, da USP, coordenado por Elizabeth Cancelli, que assina o prefácio. Foi elaborado inicialmente como tese de doutorado e posteriormente sofreu muitas modificações, por conta do aprofundamento da pesquisa, já no âmbito de um pós-doutorado. A organização adotada foi a seguinte: no primeiro e segundo capítulos, intitulados respectivamente A Fundação Ford e o Departamento de Estado Norte-Americano: a montagem de um modelo de operações no pós-guerra e As agendas culturais da Guerra Fria e o “Programa Ideológico”: a CIA e a Fundação Ford na atração de elites intelectuais, o autor apresenta a construção do modelo de relacionamento da Fundação Ford com o Departamento de Estado do governo estadunidense, órgão de política externa, e a CIA. A Fundação Ford aparece então como um dispositivo institucional atuante na chamada Guerra Fria Cultural e, nalguns momentos, a articulação entre as instituições se dá de modo tão íntimo e confluente que tem-se a impressão de que é possível dizer que a Fundação Ford assume o papel de mão visível da CIA, encarregando-se de tarefas que, por diversos motivos, o governo estadunidense não poderia assumir publicamente, em especial levando-se em conta o contexto e as disputas da Guerra Fria. Wanderson mostra que a atuação da Fundação Ford estava alocada no plano da “guerra psicológica” e que, por meio de um complexo conjunto de iniciativas, a Fundação operacionaliza “uma aguda intervenção nos meios intelectuais”, voltada para o fortalecimento de valores democratizantes, antitotalitários e de uma esquerda não-comunista. Essa atuação é “desenvolvida como estratégia de agendamento político para estabelecer fidelidades e predominância internacional para os EUA” (p.18), o que na prática se desenha como agendamento intelectual em um esforço por “modelar o debate de ideias” (p.20).

No terceiro e quarto capítulos, intitulados Desenvolvimentismo e transição democrática: o Institute of Race Relations e os investimentos da Fundação Ford nas questões de raça e A Doutrina Moynihan: o debate sobre a raça e o negro nas conferências de 1965 da Fundação Ford e da Academia Americana de Artes e Ciências, o autor elenca e analisa algumas experiências particulares de atuação da Fundação Ford no âmbito das ciências sociais, em especial no tocante às táticas para que a questão racial fosse orientada em termos de uma identidade entre desenvolvimento e relações raciais “de qualidade” ou “saudáveis”. Esse interesse tocava diretamente a competição de modelos de abordagem da questão racial: o modelo soviético e o modelo ocidental ou capitalista. Temia-se que os países subdesenvolvidos e não alinhados aos EUA aderissem ao modelo soviético, inclusive por conta do atraente crescimento econômico acelerado da URSS décadas após sua revolução socialista. No terceiro capítulo o autor acompanha o percurso seguido pelo Institute of Race Relations, consultoria privada de Londres, que operava como órgão de pesquisas e lobby voltados para a definição de políticas para o mundo subdesenvolvido. Já no quarto capítulo vemos de perto a chamada “Doutrina Moynihan”, uma proposta de “reforma racial” em conformidade com o desenvolvimento econômico capitalista, onde por meio de uma leitura dos fundamentos do melting pot [o chamado crisol de raças – PP] se aborda as formas e sentidos da integração dos negros à sociedade estadunidense. A Doutrina Moynihan ganha peso no governo Nixon (1969-1974) e pode ser vista como uma resposta aos “distúrbios raciais” dos anos 1970, disputando tanto com o Movimento de Direitos Civis quanto com o Movimento Black Power os rumos da luta racial nos EUA.

Por fim, o quinto e último capítulo se intitula A integração do negro na sociedade de classes: Florestan Fernandes em uma história do agendamento intelectual nos anos 1960. Esse capítulo tem um particular interesse para o público brasileiro, pois nele Wanderson aborda as iniciativas da Fundação Ford no circuito de intercâmbio, fomento e divulgação acadêmica, tomando como objetivo o caso de Florestan Fernandes. Ali somos informados de detalhes relativos às relações entre o sociólogo paulista e a Fundação Ford, numa confluência de perspectivas que assentava na defesa teórica, por parte de Florestan, do desenvolvimento econômico como solução para a questão racial. A perspectiva centrada no desenvolvimento era cada vez mais presente nos diagnósticos e propostas elaboradas pela Fundação Ford, que também via em Florestan um importante aliado, devido à convergência de visões acerca dos modos como poderiam ser articuladas políticas voltadas simultaneamente para a promoção do desenvolvimento e resolução da questão racial dentro e por meio do Capitalismo. Neste capítulo tomamos contato com detalhes, no mínimo intrigantes, acerca do apoio da Fundação Ford à produção intelectual de Florestan e da recepção, tradução e publicação de A integração do negro na sociedade de classes nos EUA.

A obra de Wanderson assegura sua relevância teórica por meio de um forte aparato construído com pesquisa documental. Para além da demonstração da forma como a Fundação Ford lidou, atrelada a outras agências, com a “questão negra”, a obra tem ainda valor por desmistificar as teorias da conspiração acerca dos modos de atuação do imperialismo. A atuação das instituições ligadas à batalha ideológica da informação e contrainformação (sejam as Fundações, seja a CIA etc.) é destrinchada com base em arquivos, de modo que fica muito difícil negar a pertinência das conclusões a que o autor chega. Ao mesmo tempo, vemos com bastante clareza o papel preponderante da Fundação Ford no desenvolvimento das ciências sociais no país, pois ela esteve envolvida com praticamente todas as instituições de pesquisa brasileiras, bem como com praticamente todos os autores que adquiriram relevância no plano da sociologia, antropologia, política e história entre as décadas de 1950 e 1970 (dado o recorte da pesquisa). Após a leitura de A Questão Negra perdemos qualquer inocência: é então impossível enxergar as teorias sociais como algo neutro e autônomo. Ficamos convencidos, então, de que a Fundação Ford conseguiu, ao longo de décadas, delinear os contornos dos debates teóricos sobre a questão racial, o que não é pouca coisa. Se estes mecanismos ainda operam, e quais são as consequências políticas e teóricas desse processo, são perguntas que extrapolam os objetivos do livro e, portanto, não são colocadas pelo autor, ficando, então, a cargo dos leitores. Por fim, é preciso dizer que o livro tem uma falha: não há uma seção destinada a considerações finais, onde poderia haver uma amarração sintética dos capítulos e a explicitação das conclusões políticas a que o autor certamente chegou ao escrevê-lo, inclusive quanto aos rumos e encruzilhadas do movimento negro contemporâneo. Talvez eu esteja pedindo muito, já que esta questão não era objeto da pesquisa empreendida. Essa ausência, penso, poderá resultar em leituras equivocadas acerca do sentido geral do livro e do posicionamento político do autor. Trata-se, contudo, de uma questão menor diante de tantos méritos alcançados e, em todo caso, Wanderson Chaves se posiciona ao longo do livro, pela própria organização que dá ao material.

4 COMENTÁRIOS

  1. No 1º semestre da minha graduação, em uma universidade federal, aprendemos que o marxismo era limitado e antiquado porque não tratava das questões do meio ambiente, das mulheres e dos negros. A titular da disciplina era especialista em viajar para os EUA e voltar com novas publicações dos estudos culturais, atualizando constantemente o debate acadêmico sobre o multiculturalismo. Como os coletivos, os partidos da esquerda do capital e as linhas de pesquisa acadêmicas nunca pareceram se preocupar seriamente com esses financiamentos, e com o consequente enquadramento teórico-político, sobrou mais essa para a extrema-direita denunciar.

  2. Durante a minha formação em uma Federal em Minas Gerais tive contato com um sujeito fantástico que alertava-me sobre a Ford ser a cabeça de chave das financiadoras de pesquisas para a galera afro. Em São Paulo, em continuidade a minha formação, dois anos após conhecer este doutor em MG vi operar na Federal de São Paulo o identitarismo. Uma batalha sem fim para pesar na balança da dor quem era mais fudido e que teria assim a legitimidade da fala.

    A interseccionalidade a serviço da segregação da classe.

  3. Um trabalho muito pertinente. Penso que é só um pedacinho da influência que a Fundação Ford e assemelhadas tiveram na formação do campo intelectual brasileiro. Estudar e pesquisar ciências sociais, políticas e históricas, no Brasil, é uma coisa de louco. O senso-comum conservador acredita piamente que todos os sociólogos, historiadores, etc são marxistas aguerridos, que só falam da luta de classes e pregam revolução. Minha experiência acadêmica, porém, mostra justamente o contrário: o predomínio de um antimarxismo academicista extremamente radical, beirando ao anticomunismo lunático de Guerra Fria, uma cumplicidade sorrateira com o liberalismo político e até econômico (mas com “políticas sociais” compensatórias!), uma retórica de falso subversivismo “cultural” e “identitário”. Ao contrário do que muitos pensam, o predomínio do marxismo nunca existiu, e a hegemonia do positivismo são águas passadas. Não há uma teoria hegemônica autoproclamada, mas uma espécie de “caldo” misturando pós-modernismo, pós-estruturalismo, construtivismo radical e liberalismo multiculturalista. Não é por outra razão que estudantes universitários, outrora tão mobilizados, passaram anos caladinhos diante o autoritarismo neoliberal de Bolsonaro, enquanto se esgoelavam com lacração em redes sociais e penelinhas conhecidas como “coletivos”.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here