Por Alan Fernandes

Nas últimas semanas tem se intensificado o debate em torno da cultura do cancelamento. Por isso achei de bom tom retomar essa discussão e trazê-la para o Passa Palavra. Aproveito para convidar todos os que escrevem ao coletivo a fazer o mesmo.

Tenho acompanhado a Folha de S. Paulo e alguns veículos internacionais e, deparando com os debates suscitados pela assinatura da Carta pela Justiça e Debate Aberto publicada na Harper’s Magazine, percebi quão forte o debate sobre a cultura do cancelamento tem chegado ao Brasil através da imprensa. No que consiste essa cultura, afinal?

Cancelamento, já lembrado neste site, é um novo nome cunhado nos meios digitais que significa quase o mesmo que a palavra inglesa “trashing”, que traduz-se aqui como “escracho”, ou assassinato de reputação — “você está cancelado!”. A frase é usada para constranger e consiste não só em apontar um erro no discurso da pessoa, mas em vinculá-la a uma inferioridade moral.

O problema do cancelamento é que, diferente da crítica política, o conteúdo do debate cai em esquecimento; já as consequências do cancelamento não. Se mantém a identificação da pessoa como “cancelada”, porque seu discurso em um determinado momento não configurou o padrão do “politicamente correto”. O cancelamento não necessariamente evolui para um linchamento virtual; mas, como o cancelamento resulta na estigmatização da pessoa, logo se converte num linchamento, atitude muito comum quando já se quer um pretexto para ameaçar ou isolar socialmente algum militante.

Em 2015 o Passa Palavra definiu como um “detonador” — ou “cancelador”, no vocabulário atual — quem “procura destruir antes o indivíduo que as ideias por ele defendidas”, e complementou: “Por meio do assassinato de reputação, conflitos pessoais são disfarçados de divergências políticas ou, pelo contrário, divergências políticas desdobram-se em ataques pessoais”. Portanto, não se trata de dizer que os autores não devam assumir responsabilidade pelo que dizem, mas que não se use a desonestidade para isolar, depravar, censurar a palavra de alguém, como tem sido comum na prática do cancelamento.


Os adeptos dessa prática esquivam-se dizendo que se trata de “não dar concessão às opressões” ou “não passar pano”. Mas fazem o contrário do que esperam quando plantam esse estigma em algum indivíduo, porque se trata de um discurso idêntico ao da extrema-direita quando clama por punitivismo e defende que não há redenção para criminosos. Em crítica a Milly Lacombe — cujo pensamento relativiza a prática — João Pereira Coutinho diz que o cancelamento age da seguinte forma:

“’Cancelamos’ pessoas, sim, destruindo reputações e carreiras. E por quê? Porque os ‘cancelados’ revelaram em público ideias ou atitudes que não agradam à fúria irracional das redes sociais. Eis como, partindo de ideias e atitudes, chegamos facilmente às pessoas”.

E me espanta que grande parte da esquerda se abstenha desse debate. A consequência disso é que grande parte dos intelectuais considerem que “cancelamento” é uma coisa da esquerda. Não. Se correntes identitárias se apropriaram da prática é porque ela já veio muito bem mastigada pelas pautas conservadoras. Diante dessa impotência, deixaremos o debate ser pautado por figuras como o Luiz Felipe Pondé, que até, pensando bem, falou de forma bem sensata sobre o assunto em sua coluna para a Folha de S. Paulo. Eu incorreria em contradição se dissesse que deveríamos cancelar o Pondé por sua visão estritamente liberal, quando não conservadora no cenário político. Mas deve servir de exemplo que alguém ao qual a esquerda tem razão em ter rancor esteja no lugar dela pautando um debate que é crucial para nós. E se tivesse sido cancelado? Mais do que nunca, devemos partir do debate franco, condizente com nossa política de emancipação.

As fotografias são de Elijah O’Donnel

2 COMENTÁRIOS

  1. Natalie foi “cancelada” e fez um baita video sobre o assunto. O ridículo é que mesmo “cancelada”, continua tendo quase 1.000.000 de subscriptores em seu canal. O que diz bastante sobre a prepotencia do termo em voga.
    https://www.youtube.com/watch?v=OjMPJVmXxV8

    Um canal anarcocomunista estadunidense comentou o tema, fazendo uma crítica a Chomsky, que chegou ao nível de assinar a carta mencionada neste texto. O vídeo é interessante também por mostrar o típico otimismo do progressismo estadunidense (sim, existem anarcocomunistas yankees que se parecem muitos ao e as progressistas de outros países…), um otimismo que vincula o desenvolvimento das forcas produtivas com a possibilidade de democratizar a midia. De todas formas, o vídeo está correto em mostrar como a antiga elite intelectual chora o seu ocaso, somando críticas ruins as críticas mais interessantes sobre o “cancelamento”. A vitimizacao agora é generalizada: se um editor de jornal importante é demitido por uma decisao considerada ruim por seus chefes, agora chama-se isso de “cancelamento”.

    https://www.youtube.com/watch?v=OK2HNvh6zEI

  2. Caro Alan, seu texto traz provocações bastante interessantes sobre a cultura do cancelamento. Acho que compreender a cultura do cancelamento para também de uma compreensão mais profunda do impacto da identitarismo na “New Left”. Ao ler seu texto, recordei de um trecho do Armadilhas da Identidade, onde Asad Haider observa uma ruptura do movimento negro com a luta revolucionária e sua passagem para uma fiscalização das formas “corretas” de fala, uma censura e perseguição aos brancos “naturalmente racistas” e etc. Por causa disso, acredito que existe uma intima relação entre identitarismo e escracho/cancelamento. O PP vem apresentando isso há um tempo e acho que vale a pena uma aprofundação sobre isso.

    Por outro lado, acho que seu texto marca o inicio de debate importante e urgente, sobretudo por trazer uma reflexão sobre a assimilação e adoção das táticas da direita por parte da esquerda.

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