Por Passa Palavra

Passaram-se já dois meses desde as eleições nacionais estadunidenses que deram a vitória a Biden. Desde então, Trump e seus apoiadores mais fanáticos, dentro e fora do Partido Republicano, nos gabinetes e corredores dos órgãos governamentais, na mídia trumpista e nas ruas, fizeram de tudo para contestar e tentar reverter o resultado eleitoral: difundiram mentiras e teorias da conspiração, ajuizaram ações nos tribunais, pressionaram autoridades, fizeram ameaças, negociações escusas, cogitaram usar os militares para dar um golpe e, agora, por fim, incitaram a invasão do Capitólio, sede do Congresso americano, no dia da oficialização do resultado das eleições de novembro, obrigando parlamentares a trancarem-se em seus gabinetes e serem evacuados.

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Como noticiado pelo Washington Post, um dos últimos movimentos de Trump foi uma ligação para o Secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, pedindo que ele fornecesse a quantidade de votos necessária para a sua vitória no estado. Diante do escândalo, Trump declarou que as pessoas “amaram” o conteúdo da ligação. Ao mesmo tempo, em outra frente, Trump mobilizava sua base parlamentar e pressionava Mike Pence, seu vice, para que impedissem a confirmação da vitória de Biden pelo Congresso. Pence foi inclusive constrangido em público pelo presidente, que disse que ele não seria mais tão querido se atestasse a vitória do seu adversário. Provavelmente para não se comprometer e para evitar atritos ainda mais fortes com o líder republicano, Pence respondeu que não tem autoridade para bloquear a certificação dos votos pelo Congresso. Noutra frente ainda, mais grave, Trump cogitava e debatia com o seu “núcleo ideológico” a possibilidade de recorrer a uma intervenção militar em estados-chave.

Após esse evento, ocorrido em 3 de janeiro, ninguém menos que Dick Cheney, ex-Secretário de Defesa de George Bush, tomou a iniciativa de assinar uma carta aberta com todos os ex-Secretários de Defesa ainda vivos, direcionada às Forças Armadas, em que expressam grande preocupação quanto à transição presidencial e à pressão sobre os militares em torno da questão. Segundo a carta,

os funcionários civis e militares que orientarem ou executarem tais medidas [mobilização dos militares para uma intervenção no processo eleitoral] podem ser responsabilizados, podendo inclusive enfrentar penalidades criminais, pelas graves consequências de suas ações sobre nossa república.

Trump, então, no dia seguinte, convocou sua militância para um “wild protest”, “protesto selvagem”, ocorrido no último dia 6, mais uma vez fazendo alegações falsas sobre o que diz ter sido uma eleição fraudulenta que deu a vitória a Biden.

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Em meio a esse cenário, os republicanos tiveram outra grande derrota. Simultaneamente ao protesto de 6 de janeiro, chegou ao fim o segundo turno das eleições para o Senado na Geórgia, no curso do qual as candidaturas republicanas foram deliberadamente sabotadas pelo presidente. Dois candidatos democratas foram os vencedores, criando condições para que Biden tenha a maioria no Congresso pela primeira vez em uma década. Na reta final, Trump resolveu participar da campanha no estado, recomendando o voto nos candidatos republicanos, mas o seu comportamento ao longo da campanha, e a pressão exercida sobre Raffensperger, devem aliená-lo ainda mais dos políticos e das autoridades republicanos da Geórgia.

Fato é que Trump não conta com a maioria dos gestores do Estado Restrito, sejam os políticos ou os militares, e nem com os gestores do grande capital privado, como expresso, por exemplo, em editorial recente de The Economist. O republicano conta, porém, com outra força, extraoficial, uma base similar, porém mais articulada do que a de Bolsonaro no Brasil: uma extrema-direita que já dispõe de lenha o suficiente para pôr fogo nos cinquenta estados, e que realizou de forma coordenada grandes demonstrações de força de costa a costa nos EUA, cercando parlamentos estaduais e desfilando com armas de grosso calibre.

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Além do setor militar e dos democratas e republicanos moderados, também esperavam uma transição tranquila os quase 200 signatários de uma carta aberta da Partnership for New York City. Quem são esses signatários? Kathryn Wylde, presidente e CEO da associação; Kristin Myers, do Yahoo Finance; além de executivos da Edelman, Pfizer e BlackRock. Em entrevista para a Yahoo News, Kathryn Wylde disse o seguinte:

Chegamos a um ponto em que a economia e os negócios estão sendo realmente impactados pelo que está acontecendo no mundo político. O desafio à nossa estabilidade política, ao nosso sistema político, ao nosso processo eleitoral pelos membros do Congresso é uma ameaça real para os negócios. Por isso, há uma grande preocupação, e as pessoas só queriam se impor antes da votação crítica que ocorrerá amanhã para que os membros do Congresso entendam que este não é apenas um jogo político que pode permanecer dentro dos limites de Washington, DC. Isto vai afetar todo o nosso país.

Depois da invasão do Capitólio e de outros eventos semelhantes em outras partes do país, no entanto, os capitalistas parecem estar se convencendo de que remover Trump do Salão Oval é urgente para proteger seus interesses: a National Association of Manufacturers, por exemplo, que representa 14.000 empresas americanas, pediu que o vice-presidente Mike Pence “considere seriamente” invocar a 25ª emenda para tirar Trump do cargo, sugestão feita também pela imprensa. Outra demonstração de que os capitalistas estão seriamente preocupados com as repercussões econômicas do caos político que se está instalando nos Estados Unidos.

Esta crise política sem precedentes resulta, na verdade, do declínio econômico dos Estados Unidos. É uma manifestação precipitada desse declínio, e tem parentesco com a tentativa de lutar contra o declínio econômico através de armas políticas, que tem caracterizado as relações dos Estados Unidos com a China. Essa supremacia atribuída ao político sobre o econômico foi inaugurada pelos fascistas, e só depois, numa época mais recente, é que os esquerdistas a copiaram.

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Trump já vinha perdendo apoio político dos gestores e do grande capital, e a partir dos acontecimentos do dia 6, poderá ser afastado antes da posse de Joe Biden e Kamala Harris, pela mobilização da emenda mencionada acima, que permite que um presidente seja removido se for considerado incapaz de seguir no cargo pelo vice-presidente e pela maioria de seu gabinete; uma nova tentativa de impeachment também tem sido considerada. No entanto, o fôlego de Trump aparece nas ruas, com essa massa exótica que pretende combater o “deep state” e os comunistas chineses. Esse é o principal dilema. Trump sai desta crise política com todos os ingredientes de um partido fascista: isola-se dos moderados, consolida o apoio dos dirigentes republicanos mais extremistas e consolida o seu apoio de rua. A partir deste dia os Estados Unidos mudaram substancialmente.

A contenção dessa massa fascista nas ruas caberá ao futuro governo? E o conjunto de movimentos que em 2020 tomou as ruas em torno do Black Lives Matter? Um possível clima de contestação a medidas de repressão e vigilância sob o novo governo poderá criar uma convergência dessa extrema-direita com os “libertarians” e também com uma parcela da esquerda radical anti-democratas, clima propício para um avanço fascista nos EUA. A noção de que o grande inimigo é o Biden e não o Trump está muito difundida na extrema-esquerda. Ora, esta noção reproduz as teses do social-fascismo, com tudo o que elas tiveram de catastrófico, quando pretendiam que o principal fascismo vinha dos socialistas e social-democratas, e que eram eles, e não os fascistas propriamente ditos, os inimigos a combater. Entretanto, os fascistas iam tomando o poder. O que é realmente apavorante é que as pessoas que agora reproduzem essas teses não andaram a ler o Zinoviev nem a Ruth Fischer. Reproduzem-nas de novo, o que mostra que as mesmas condições negativas voltaram a ser criadas na extrema-esquerda.

Isto não preocupa só o Passa Palavra, mas deve preocupar também os camaradas de todo o mundo e, particularmente, toda a classe trabalhadora. O que 2021 pode nos trazer em termos políticos? Será possível isolar os fascistas e superarmos o cenário de derrotas dos últimos anos?

10 COMENTÁRIOS

  1. O Passa Palavra considera que Donald Trump «dispõe de todos os ingredientes de um partido fascista». Sem dúvida. Mas agora o problema consiste em saber o que fará ele com esses ingredientes.

    Na noite de ontem para hoje, Trump publicou um pequeno vídeo em que chamou desordeiros àqueles que na véspera elogiara como heróis e os condenou por terem feito uma invasão que ele próprio os incitara a fazer. Analisando a linguagem e o timing desse vídeo, vários jornalistas e outros observadores bem informados consideraram que se tratava de uma manobra de Trump, aconselhada pelos advogados, para se ilibar das consequências jurídicas decorrentes dos acontecimentos de quarta-feira. É possível.

    Mas conseguirá Trump proceder como Mussolini e navegar habilmente entre a ilegalidade e a legalidade, conjugando uma com outra e potencializando-as ambas?

    Ou terá ele o destino do general Boulanger, que depois de ter suscitado uma enorme onda de entusiasmo, obtendo o apoio de vários quadrantes políticos e contando com simpatias desde a nobreza e as grandes fortunas até à populaça das ruas, fugiu de França logo que o governo anunciou que iria requerer a suspensão da sua imunidade parlamentar?

    Em suma, com a concisão das onomatopeias, terminará tudo isto num Bhuuumh ou num Pffffff?

  2. “O que é realmente apavorante é que as pessoas que agora reproduzem essas teses não andaram a ler o Zinoviev nem a Ruth Fischer. Reproduzem-nas de novo, o que mostra que as mesmas condições negativas voltaram a ser criadas na extrema-esquerda.”
    O Passa Palavra pode indicar as obras referidas desses autores sobre o assunto (Zenoviev e Ruth Fischer)?

  3. Me parece que esse texto envelheceu mal em menos de 24 horas. Trump baixou a bola, condenou veementemente a invasão do Capitólio, repudiou cada manifestante que fez parte dela. Com isso, teve sua conta no Twitter recuperada — e, fora da esfera pública, certamente negociou condições favoráveis para si próprio no momento em que sair do poder.

    O mais interessante é analisar o impacto que isso está tendo nesses setores trumpistas de extrema-direita. Me parece que há uma sensação forte de traição e abandono por parte de quem o defendia anteontem.

    Ao mesmo tempo, aqui os bolsonaristas também demoraram 48 horas para reorganizar a narrativa e difundir um novo discurso quando Sergio Moro saiu do governo, mas logo conseguiram recuperar e manter o grosso de sua base unida, então é cedo demais para traçar juízos ousados.

  4. A democracia capitalista, assim como fez na Guerra ao Terror, irá aproveitar-se da repressão à extrema-direita para avançar na censura, na vigilância e no seu próprio autoritarismo. Edward Snowden (https://twitter.com/Snowden/status/1347224002671108098) e Glenn Greenwald (https://twitter.com/ggreenwald/status/1347296470429556745) chamaram logo atenção. Os Monopólios da tecnologia silenciaram unilateralmente o presidente dos EUA, dando mais uma prova de seu poder e sua soberania. Longe de defender a tese do social-fascismo, mas sim ver uma linha de continuidade e desenvolvimento.
    Estou lendo o Labirintos do Fascismo (no Kindle, com uma leve desconfiguração que não atrapalha, mas a edição em papel será bem-vinda!). A figura de Boulanger é uma das que mais me despertou curiosidade. Não consigo não associá-lo a Bolsonaro, esta figura de tal forma medíocre que só pode ser fruto das circunstâncias excepcionais que o criaram. Daí ser mais importante compreender tais circunstâncias e colocá-las em perspectiva do que fixar-se no personagem. Por outro lado, há figuras talentosas como Putin e Salvini. Lembro-me de, ainda em 2014, um militante de esquerda italiano dizer-me que Salvini era um político bravissimo, daí ser tão perigoso. Outras surgirão? Steve Bannon disse, na véspera da invasão, que este era apenas um grande despertar. (https://www.mediamatters.org/steve-bannon/steve-bannon-asked-his-audience-have-you-pushed-yourself-far-you-possibly-have-pushed)
    Ainda que a história nunca se repita, se Bolsonaro e Trump são espécies de Boulanger, poderíamos estar vivendo apenas os pródromos de um movimento histórico muito maior? Essa questão me angustia. É que as circunstâncias que os geram – estagnação e declínio econômico, o esvaziamento do conceito de democracia enquanto “soberania popular” feito pelos próprios liberais, o ressentimento da massa contra as elites atuais, o identitarismo insuportável a impulsionar outros identitarismos etc.- não dão sinais de poderem ser ultrapassadas facilmente.
    O Passa Palavra como sempre tem os melhores textos e análises. Um abraço cordial de um leitor assíduo.

  5. Acompanho as publicações de alguns grupos de extrema esquerda dos EUA e, desde a eleição anterior, a oposição ao Trump e o discurso antifascista parece uma unanimidade. À exceção de um pequeno grupo trotskista cujo nome não recuperei, que em 2016 defendia disputar a base operária que apoiou Trump, não encontro nada que se aproxime das teses defendidas na Internacional Comunista no início dos anos 30. Quando o texto afirma que “a noção de que o grande inimigo é o Biden e não o Trump está muito difundida na extrema-esquerda”, a que exatamente está se referindo?

  6. Um leitor acima minimiza os acontecimentos e diz que o Trump “baixou a bola”, recuperou sua conta no Twitter e negociou condições favoráveis para si mesmo. Seria recomendável acompanhar os fatos, lendo estas notícias, por exemplo:

    https://news.yahoo.com/trump-went-ballistic-being-tossed-032346767.html

    https://news.yahoo.com/with-an-erratic-desperate-trump-still-in-charge-military-brass-worry-and-make-plans-to-avert-disaster-213413371.html

    A outra opção é seguir no negacionismo. O fascismo agradece.

  7. Trump dá recuos táticos como Bolsonaro também costuma fazer. Ele esticar a corda e quando não consegue o que queria recua. Bolsonaro fez o mesmo quando a opinião pública se volta muito contra ele.

    Mas o que eu queria dizer é que eu discordo parcialmente da afirmação no texto: “O republicano conta, porém, com outra força, extraoficial, uma base similar, porém mais articulada do que a de Bolsonaro no Brasil (…).”
    Na hora de tentar um golpe caso perca as eleições em 2022 veremos se a base de Bolsonaro é menos articulada.. Aqui ele tem base nas PMs, no Exército e nas milícias que controlam territórios em grandes cidades, coisa que Trump não possui (pelo menos não no mesmo nível que Bolsonaro). E como o texto diz, antes de usar a massa ele buscou o golpe através dos militares. Aqui Bolsonaro teria mais chance que ele de ser apoiado por pelo menos parte do Exército.

    Outra questão. Reforço a pergnta do Caio: que extrema-esquerda estadounidense é essa que vê no Biden inimigo maior? E a propósito, a crítica que o texto faz a essa suposta extrema-esquerda estadounidense, fazendo analogia com a tese do social-fascismo, me parece que não está muito longe da própria posição do Passa Palavra durante o golpe de 2016 no Brasil.

  8. Em resposta aos comentários de Caio e Leo V:

    Não se deve restringir a preocupação com as posições da extrema-esquerda apenas em um país, ainda mais quando se trata de algo que influencia o mundo todo. Ainda assim, ao procurar contatos na diminuta extrema-esquerda dos EUA recebemos como resposta que Trump já estava derrotado e que a preocupação maior é com Biden. Posições ainda mais graves podem ser encontradas em editoriais com os do Partido da Causa Operária, ou nas comemorações feitas por certa extrema-esquerda em relação ao declínio do Império Americano.

  9. Entendo. De fato, essa posição parece mais comum na extrema-esquerda de outras partes do mundo, especialmente àqueles que tem a geopolítica na primazia das análises, do que nos próprios EUA.

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