Por Isadora de Andrade Guerreiro

No mês de março, enquanto o IGP-M [1] batia um acumulado de 31,15% no último ano – indicando reajustes de aluguel extorsivos em meio à pandemia [2] –, a Fundação João Pinheiro (FJP) divulgou sua análise do déficit habitacional brasileiro para o período de 2016-2019, no qual o ônus excessivo com aluguel [3] se consolidou como o principal indicador. São elementos para compreendermos a nova dinâmica habitacional do país, na qual o aluguel passou a ser central, após o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Isso porque o programa, embora se apresentasse como programa habitacional, na verdade era um programa anticíclico em meio à crise hipotecária mundial. Na prática, o direito à moradia foi instrumentalizado para garantir mercado, assegurando a vinculação do setor imobiliário com o financeiro em meio à abertura de capital das empresas do setor no país. Mas o que isso tem a ver com o aluguel, se o programa assegurava propriedade privada?

O fato dele não ser um programa habitacional, vinculado à política urbana, fez com que, entre outras coisas, não houvesse política fundiária envolvida. Ou seja, as terras passaram a ser disputadas de forma privada, entre empresas, municípios e entidades (movimentos sociais). Essa dinâmica, junto ao aquecimento do mercado imobiliário (no qual o PMCMV também teve papel relevante), foi um dos fatores que fez com que o preço das terras tenha disparado no país e, com elas, o aluguel. O programa também não atendeu de forma proporcional as faixas de renda prioritárias de acordo com o perfil do déficit da cada região – pois era um programa de oferta privada –, gerando um atendimento desigual. As faixas mais baixas de renda, cada vez mais, foram amargando a falta de opções em meio à falta de terras – cada vez mais raras e disputadas, as que sobraram foram tomadas por regimes de controle locais, que as mercantilizaram por meio da violência – e à impossibilidade de entrada na política habitacional. O aluguel informal em áreas populares cresceu muito no período, adensando assentamentos consolidados.

Assim, olhando a relação entre a implantação do PMCMV e a dinâmica do déficit habitacional, é necessário olhar para além dos números de propaganda de ocasião. Vamos aqui fazer uma análise de dois períodos: entre 2009 e 2015, período de maior contratação de unidades pelo programa, em todas as faixas de renda, que acompanha também a gestão petista no governo federal; e entre 2016-2019, na qual a faixa de renda mais baixa foi praticamente encerrada, diminuindo pela metade a contratação de unidades habitacionais do programa.

Entre 2009 e 2015, enquanto o PMCMV entregou 2,5 milhões de unidades habitacionais, houve concomitantemente um acréscimo de 2,1 milhões de domicílios no déficit habitacional total do Brasil, embora o déficit relativo tenha diminuído de 9,9% para 9,3% (cerca de 6% em seis anos) do total de domicílios do país (Fonte: FJP). Esses números muito gerais não bastam, no entanto, para entendermos a complexa dinâmica habitacional. Pois houve uma grande mudança no perfil do déficit: se em 2009 o indicador com maior peso no déficit era de coabitação (42,6%), seguido do ônus excessivo de aluguel (32,5%), em 2015 essa situação se inverteu, sendo o ônus de aluguel 50% do déficit (um crescimento de cerca de 1,3 milhões de domicílios), enquanto o indicador de coabitação caiu para 29,9% (cerca de 610 mil domicílios a menos). A precariedade habitacional também diminuiu de 18,5% do déficit para 14,8% (cerca de 146 mil domicílios a menos).

Essa, então, a situação deixada pelo PMCMV: embora os níveis de precariedade habitacional e coabitação tenham caído (timidamente), as necessidades de moradia continuaram não sendo atendidas, na medida em que o aluguel, nas faixas mais baixas de renda, não é opção (como na classe média), mas falta dela. Segundo a POF (PNAD-IBGE) de 2018, nas regiões metropolitanas as famílias de até dois salários mínimos gastam metade de seus rendimentos com moradia, sobrando pouco para a alimentação. Esse é o resultado de responder às necessidades das classes populares por meio da mercadoria – uma tônica da gestão petista no governo federal.

Esse contexto dá o tom para o período seguinte, entre 2016 e 2019, quando o déficit total no Brasil ficou praticamente estável, com acréscimo absoluto de cerca de 200mil domicílios, passando de 8,1% para 8% do total de domicílios (uma diminuição de 1,2% em quatro anos). O perfil do déficit teve manutenção do ônus excessivo de aluguel na faixa dos 50% (foi de 49,7% em 2016 para 51,7% em 2019), sendo ele, de forma aparente, praticamente o único responsável pelo leve crescimento do déficit geral, com cerca de 200 mil domicílios a mais.

No entanto, algo importante começou a se manifestar, que não aparece nos números gerais: enquanto a coabitação continua em ritmo de queda, a precariedade habitacional voltou a crescer em ritmo acelerado. A precariedade é dividida em dois indicadores: domicílios rústicos e improvisados [4]. Se pegarmos apenas os domicílios improvisados, observamos um aumento de cerca de 250 mil unidades, passando de 9,5% (2016) para 13,4% (2019) de participação no déficit, um crescimento de cerca de 40% em três anos. Como a quantidade de domicílios rústicos diminuiu, esse indicador fica escondido no meio das análises mais gerais. Esse aumento se dá principalmente na região Sudeste e nas regiões metropolitanas de todo o país.

Outros pontos importantes são os perfis de gênero e de renda deste último período.

Os dados mostram que o déficit habitacional entre 2016 e 2019 foi basicamente feminino. No indicador de ônus excessivo de aluguel, houve uma taxa de crescimento médio geométrico de 5,9% ao ano entre os domicílios com mulheres chefes de família, enquanto naqueles com homens houve redução de 2,2% ao ano. No indicador de precariedade habitacional, enquanto houve uma taxa de crescimento de 7% ao ano entre as mulheres, no caso dos homens esse crescimento foi apenas de 1,5% ao ano. Mesmo no indicador de coabitação, que se reduziu para os dois, a redução foi muito maior entre os homens (8,5% ao ano) do que entre as mulheres, de apenas 0,3% ao ano. A soma destes fatores tem como resultado um crescimento do déficit habitacional total entre os domicílios com mulheres chefes de família de 4,7% ao ano, enquanto entre aqueles com homens houve uma redução de 3,1% ao ano (FJP, p.154). Em 2019, isso significou que o déficit habitacional era 60% feminino, sendo que, no caso do indicador de ônus excessivo de aluguel, essa participação chega a 62,2%. Neste indicador, o arranjo familiar também é relevante na análise: 43% do déficit com ônus de aluguel em 2019 eram de domicílios com a mulher como chefe de família sem cônjuge (com filhos 23%, sem filhos, 20%) (Idem, p.156). No caso da precariedade habitacional, outro número relevante é que, no Sudeste, ela é 67,5% feminina, ou seja, mais do que o dobro da masculina, que fica em 32,5% (Idem, p.169).

Do ponto de vista da renda, mais desigualdades internas às classes populares: há uma redução do déficit habitacional para as faixas acima de dois salários mínimos (que chega a 10,9% ao ano entre 2 e 3 salários mínimos), ou seja, há uma concentração maior nas faixas inferiores. Na faixa de até 1 salário mínimo, o aumento total foi de 7% ao ano entre 2016 e 2019, com o indicador de precariedade chegando a 9,7% ao ano e o de ônus com aluguel de 5,6% ao ano (Idem, p.161). Assim, as faixas de renda de até dois salários mínimos elevaram sua participação no déficit habitacional de 68,4% para 74,4% no mesmo período (Idem, p.162).

A aridez dos números revela elementos políticos importantes, na investigação dos dois períodos. Embora a gestão petista tenha levemente diminuído o total relativo do déficit habitacional (pois o absoluto cresceu), ela alterou seu perfil, trazendo “a cruz do aluguel” para o centro da dinâmica habitacional brasileira. Inclusive com toda a violência que ele traz quando se trata da gestão dos contratos informais nas periferias (Abramo, 2012) – um foco importante da origem das milícias. No período seguinte, esse contexto é radicalizado pelas desigualdades internas das classes populares, tema que eu trouxe também em outro texto; além de assistirmos ao retorno do crescimento das precariedades habitacionais só que, agora, qualitativamente diferentes: elas vêm em conjunto com o aluguel informal, com um recorte de gênero importante, formando um amálgama diferente do período das décadas de 1970 e 1980, no qual foram respondidas com grandes ocupações de terra, que deram origem aos movimentos de moradia.

As ocupações de terra e imóveis vazios não têm nem mais as mesmas características que tinham durante a redemocratização, nem durante o período do PMCMV. Atualmente, a escassez dessas terras, junto da sua mercantilização por agentes locais, que sempre existiu, ganhou, no entanto, outra dimensão, se associando à gestão de populações pela violência privada. Exemplos dessa situação são comunidades aqui em São Paulo que, depois de décadas ocupando áreas abandonadas, foram removidas e passaram a receber auxílio aluguel, passando a alugar cômodos na vizinhança. As áreas removidas, que permanecem abandonadas, passam a ser reocupadas, mas agora por agentes locais que constroem para alugar. Essa é parte da dinâmica que alimenta o ônus de aluguel nas faixas mais baixas de renda, ou seja, uma ação conjunta entre agentes locais e a ação do poder público.

Quais serão as respostas políticas a essa nova dinâmica habitacional nos territórios populares? Surgirão mais movimentos de inquilinos, tão raros atualmente no país? Os movimentos de mulheres tomarão mais para si a pauta habitacional, dando a ela características próprias, como já tem acontecido em diversas cidades do país com ocupações ligadas à violência de gênero? Nesse sentido, conseguirão sair da reivindicação de auxílio aluguel vinculada à vulnerabilidade individual [5] e construir propostas de vida coletiva e integradas com outras pautas? As práticas de autogestão na produção de moradia irão começar a incluir formas de propriedade coletiva nas suas lutas? São perguntas relevantes na medida em que as forças institucionais e de mercado já ligaram seus motores: a locação já está sendo pensada como política pública federal, principalmente através de parcerias público-privadas (PPP), o que pode tensionar ainda mais as desigualdades das classes populares e, de quebra, incentivar e consolidar a sua gestão privada, baseada na violência discricionária com ares milicianos, num futuro próximo, conectada às finanças.

Notas
[1] Índice Geral de Preços – Mercado: índice de inflação comumente utilizado para reajuste de contratos de aluguel no Brasil. Minha colega colunista do Passa Palavra Raquel Azevedo escreveu sobre ele.
[2] O caso é tão grave que no último dia 7 de abril foi aprovado na Câmara dos Deputados o regime de urgência para votação do PL 1026/21 do deputado Vinicius Carvalho (Republicanos-SP), que muda para o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) o índice de reajuste de aluguel no Brasil. Como se vê, a mobilização em torno de temas candentes para a população tem sido feita pela direita, que se apropria da pauta da sua maneira: em vez de barrar os despejos, muda o tipo de reajuste.
[3] Considera-se ônus excessivo de aluguel quando o domicílio gasta mais do que 30% da renda familiar no pagamento de aluguel, na faixa de 0 a 3 salários mínimos.
[4] Essa diferenciação é difícil de ser feita, e tem a ver com metodologias diferentes de aferição entre o IBGE e o CadÚnico, que passou a ser utilizado também na aferição do déficit habitacional neste último período pela Fundação João Pinheiro.
[5] Também neste mês de março foi aprovado na Câmara Municipal de São Paulo o Decreto 60.111, que regulamenta a Lei 17.320/2020, que concede auxílio aluguel às mulheres vítimas de violência doméstica. Proposta por vereadores ligados ao PL e ao PSDB, a Lei dá continuidade ao atendimento pulverizado e sem controle do auxílio aluguel, que na verdade acaba atualizando e tornando mais complexas situações de insegurança habitacional, por se apoiar largamente no mercado informal de locação. Neste caso específico da violência doméstica, uma vulnerabilidade pode rapidamente se transformar em muitas outras se for tratada de maneira individual e sem suporte habitacional e urbano adequado.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here