Por João Aguiar
Traduzido para o francês.
1. De Génova a Rapallo
Nos 100 anos da assinatura de um tratado comercial e de coexistência entre a Rússia soviética e a Alemanha de Weimar, relembre-se o papel deste acordo no rearmamento que muito auxiliaria na ascensão do nazismo.
Quando a atual esquerda saudosista do mundo soviético é confrontada com a ignomínia do Pacto Germano-Soviético (Pacto Molotov-Ribbentrop) de 23 de agosto de 1939, responde sempre com a desculpa de que tal Pacto seria uma manobra tática adveniente da traição das democracias liberais aquando do Acordo de Munique de 30 de setembro do ano anterior. Ora, por ignorância ou por “esquecimento”, o facto é que o papel do comunismo soviético na ascensão do nazismo já tinha ganho forma muitos anos antes.
Efetivamente, Rapallo representou uma assinatura diplomática entre o governo social-democrata alemão e o governo soviético, assente em trocas comerciais e no reconhecimento externo do regime soviético.
Esse acordo assinado em abril de 1922 representou uma negociação à parte e às escondidas da Conferência de Génova. Nesta Conferência estava-se a discutir não apenas o padrão-ouro, mas também a possibilidade de levantamento de algumas das medidas de reparação exigidas ao governo alemão, aquando do Tratado de Versalhes de 1919. Ao contrário do governo francês, o primeiro-ministro Lloyd George tinha a proposta de aliviar o garrote ao pacote de enormes restrições do programa de reparações decorrentes da derrota militar alemã na Primeira Guerra Mundial. Ao mesmo tempo, Génova representava uma tentativa de progressivamente criar plataformas de entendimento entre os Estados beligerantes de poucos anos antes, por parte das classes dominantes ocidentais de então. Pelo menos dentro de alguns setores, o objetivo seria o de adequar uma Alemanha aliviada de algumas reparações e a própria Rússia soviética na cena internacional, tendo em conta a abertura comercial soviética com a NEP, desde 1921.
Mas se a Conferência de Génova representava, em boa medida, um modelo típico dos gestores capitalistas da época em adequar e fazer coexistir Estados rivais, Rapallo seria a vitória dos Estados párias de então (a Alemanha do pós-guerra e a Rússia soviética) numa plataforma própria de relações. O papel fundamental dos soviéticos no falhanço da Conferência de Génova acabaria por dar corpo a que o peso ignominioso das reparações de guerra sobre a economia alemã (já num processo acelerado de hiperinflação) prosseguisse, com todas as consequências conhecidas na propaganda política e no crescimento político de toda a extrema-direita alemã (incluindo a nacional-socialista) nos 10 anos seguintes.
2. O exército alemão e as SA
Se antes da tomada do poder os bolcheviques tiveram na rejeição da diplomacia secreta uma das suas principais bandeiras contra o czarismo e os governos provisórios de Kerensky, não deixa de espantar que o principal conteúdo de Rapallo seria precisamente o acordo secreto de recorte militar com o Estado alemão.
De facto, Rapallo não representou um ponto de partida para subsequentes colaborações entre o Exército Vermelho e a Reichswehr (nome do exército alemão entre 1919 e 1935). Inversamente, já desde 1920 [1] ou 1921 existiriam contactos frequentes entre altas patentes soviéticas e os militares e a indústria militar alemã para sediar instalações, fábricas e academias militares em solo soviético. Aliás, terá sido Radek quem, a partir de 1919, terá estado em contacto com as autoridades militares alemãs.
Seria bom relembrar os mais distraídos que na primeira metade dos anos 20 a Reichswehr praticamente não existia desligada dos corpos francos, tendo um importante jornalista da altura lembrado que «A Reichswehr e a polícia constituíram, até 1923, a espinha dorsal do movimento nacional-socialista» [2]. Este mesmo jornalista lembraria também que as SA mais não eram do que sucessoras da brigada Ehrhardt, o que ajuda a perceber o papel da instituição militar na formação das milícias fascistas. Por conseguinte, um reforço do aparelho militar implicaria um apoio reforçado à expansão das SA.
Ora, os primeiros contactos entre a Reichswehr e o comando militar soviético terão ocorrido nas costas do próprio governo social-democrata, sintoma de autonomia de ação do Estado-Maior germânico. E sintoma de partilha de interesses entre o Exército Vermelho e a Reichswehr. Ou se se preferir, sintoma de conexões entre os gestores bolcheviques e aquela parte da burocracia militar germânica que permite a permanência das instituições de poder, quando tudo em volta parece desabar. Para lá de óbvias diferenças políticas programáticas e até de aspirações territoriais, o conteúdo era o de uma plataforma comum de ação entre os gestores estatais soviéticos e a Reichswehr. No comando desta estavam elementos da burocracia militar alemã que fizeram a ponte entre a queda do império prussiano de Guilherme II e os primeiros passos da constituição de dois dos eixos fundamentais do fascismo alemão: a reformulação do exército alemão assente numa política de rearmamento secreto à revelia de qualquer controlo democrático; e, a partir deste, o nascimento das milícias fascistas das SA, sem as quais Hitler nunca poderia ter assegurado capital político suficiente para, mais tarde, ascender na cena política da extrema-direita alemã. Relembre-se que sem a desordem criada pelas milícias SA, nunca o partido nacional-socialista poderia aparecer como o reverso da medalha: o garante de uma nova era de ordem.
3. A colaboração entre a Reichswehr e os soviéticos
Em jeito de resumo, a Reichswehr construiria um arsenal bélico longe dos olhares ocidentais, e onde poderia treinar pessoal e testar armamento. Por seu turno, o Estado soviético também receberia acesso a desenvolvimentos técnicos e aprendizagem estratégico-militar.
Aparentemente, os primeiros oficiais do exército alemão terão chegado a território soviético em março de 1922, com a missão de começar a treinar pessoal soviético. Em abril desse mesmo ano, o conglomerado germânico Junkers terá iniciado a construção de aviões nos arredores de Moscovo. Entretanto, em Rostov, a Krupp começaria a fabricar peças de artilharia. Em 1925, uma escola de aviação foi estabelecida em Lipetsk (onde hoje se situa uma base militar russa), tendo sido utilizada para formar mais de uma centena de pilotos alemães, futuros membros da Luftwaffe. Uma escola de tanques foi sediada perto de Kazan. Para além de se formarem especialistas, também se terá contribuído para o design dos tanques Panzer I e II, utilizados mais tarde na Guerra Civil de Espanha e, durante a Segunda Guerra Mundial, intervenções militares no Norte de África, em França, na Polónia e, como bom filho que a casa retorna, na União Soviética. Por fim, ainda existiu entre 1926 e 1933 uma fábrica de armas químicas em Tomska. Depois de 1933, esta fábrica seria a principal instalação industrial militar de armas químicas soviéticas.
4. O papel do rearmamento
Se a ascensão de Hitler ao poder iria levar ao encerramento da cooperação militar, a verdade é que, em 1933, o processo de rearmamento germânico estava num estádio avançado, já não necessitando mais de se esconder noutros territórios, incluindo o soviético.
O contributo do socialismo soviético foi, assim, decisivo tanto do ponto de vista operacional, como do ponto de vista político.
Do ponto de vista operacional, especialmente refletido na guerra, o rearmamento não só consolidou o exército alemão – principal aríete para a expansão do projeto político e rácico nazi. Sem as vitórias da Wehrmacht (o nome do exército alemão após 35) entre 1939 e 42, nunca os Einsatzkommandos poderiam percorrer livremente os territórios polaco, lituano, ucraniano, etc. a cometer inúmeros massacres e nunca os campos de extermínio de Chelmno, Belzec e Treblinka poderiam ter sido construídos. O rearmamento – que contou com o contributo soviético – foi a primeira parte que permitiria toda uma política de terror pudesse posteriormente acontecer na retaguarda das linhas ofensivas da Wehrmacht.
Do ponto de vista político, o rearmamento permitiu previamente, nos anos 20 e 30, fortalecer dois dos pólos da ascensão do fascismo alemão: o próprio exército e, por essa via, na primeira metade dos anos 20, a expansão das SA.
5. Significado de Rapallo
Se o Tratado de Brest-Litovsk de 1918 era o sintoma de um projeto político bolchevista que daria primazia estrutural ao Estado nacional russo sobre o processo revolucionário internacional, Rapallo representa o triunfo definitivo da classe dos gestores soviética, nesta altura já completamente desligada dos processos de auto-organização dos comités de fábrica que tinham florescido em 1917-18. Rapallo representa adicionalmente a confiança do Estado nacional soviético, dos seus gestores em conectar-se com os segmentos de gestores internacionais mais propensos em facilitar o estabelecimento de regimes assentes no que um autor chamou de Economia Dirigida [3].
Se entre 1941 e 1945 a União Soviética combateria ao lado dos Aliados contra o regime nacional-socialista, onde desempenharia um papel fundamental para o seu derrube, importa, em primeiro lugar, não esquecer que a União Soviética muito provavelmente não conseguiria derrotar a Alemanha hitleriana sem o contributo militar e os enormes fornecimentos de material bélico, comida e de combustíveis dos EUA (ao abrigo do programa Lend-Lease [4]). E, em segundo lugar, ainda mais relevante, entre o início dos anos 20 e a concretização da monomania anti-eslava de Hitler na invasão da União Soviética, em junho de 1941, o regime bolchevique objetivamente fortaleceu económica e militarmente regimes fascistas. Desse reforço militar e económico de regimes que, em teoria, representariam o maior inimigo dos trabalhadores, sucedeu o reforço político dos fascismos do entreguerras. O nacional-bolchevismo aplicado na política internacional, do qual os acordos secretos de Rapallo são um exemplo significativo, favoreceu o crescimento dos fascismos, do alemão em particular. Mais especificamente, Rapallo forneceu condições para o ressurgimento militar e para o reforço da instituição que esteve na base para o surgimento das primeiras milícias nacionais-socialistas.
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É também desta altura o reconhecimento oficial do regime soviético por Mussolini, expresso no estabelecimento de relações diplomáticas oficiais a 7 de fevereiro de 1924 e do Tratado de Amizade, Não-Agressão e Neutralidade, assinado a 2 de setembro de 1933. Realce-se que o acordo de 1924 significou que o primeiro país ocidental a reconhecer o Estado soviético seria a Itália de Mussolini. Independentemente da repressão do regime fascista aos comunistas italianos e independentemente da participação da Itália fascista e da Rússia soviética em campos distintos na Guerra Civil espanhola de 1936-39, importa refletir como acordos de trocas comerciais e de colaborações militares entre regimes aparentemente tão opostos, só são insignificantes aos olhos de quem procura justificar o papel da esquerda soviética na ascensão dos fascismos.
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Em suma, o triunfo de Rapallo representou um conjunto de eixos que iriam marcar de forma profunda a restante história do século XX:
1) impediu uma renegociação, logo em 1922, do processo oneroso de reparações de guerra imposto à Alemanha, fornecendo uma das bandeiras de luta da extrema-direita durante o regime de Weimar;
2) permitiu e facilitou o rearmamento militar germânico, favorecendo a instituição que mais estaria na base do desenvolvimento inicial das milícias nacional-socialistas e da extrema-direita alemã em geral;
3) estabeleceu pontes institucionais entre camadas de gestores situadas no aparelho de Estado, nomeadamente nas suas instâncias repressivas, demonstrando como a partilha de conhecimentos e de infraestruturas militares, que estavam na base do poder daquele tipo de gestores, era mais importante do que considerações de caráter político-programático;
4) o que se chamava de esquerda na Rússia soviética já não era mais uma corrente política mas tão-somente a manifestação exterior e cosmética do poder de uma nova classe dominante que não mais se ligava a qualquer projeto emancipatório. Bem pelo contrário.
O culto da força militar aproximaria doravante a esquerda de projetos políticos simultaneamente antiliberais e contrários a qualquer iniciativa autónoma dos trabalhadores.
Notas:
[1] De acordo com um texto de Trotsky de 1938 no New York Times «Vyshinsky’s Tactics Forecast», os contactos entre a Rússia soviética e as altas patentes da Reichswehr teriam ocorrido durante a própria guerra civil.
[2] Karl Heiden citado em BERNARDO, João (2018) – Labirintos do fascismo. 3ª ed. p. 115.
[3] BERNARDO, João (2018) – Labirintos do fascismo. 3ª ed. p. 759 a 764.
[4] Em três anos e meio os EUA terão fornecido quase 95% das 17,5 milhões de toneladas de equipamento militar, mantimentos industriais e de combustível que os soviéticos receberam, a partir de finais de 1941. Neste conjunto contam-se mais de 420 mil camiões, mais de 13 mil veículos de combate e 2,6 milhões de toneladas de combustível (equivalente a quase 60% do combustível de aviação utilizado pelos soviéticos durante a Segunda Guerra Mundial). Contam-se ainda quase 4,5 milhões de toneladas de alimentos (carne enlatada, farinha, açúcar, etc), quase 2 mil locomotivas, munições, explosivos, etc. Chegou mesmo a ocorrer a transferência de uma fábrica de pneus da Ford para território soviético.
As artes que ilustram o texto são da autoria de Albrecht Dürer (1471- 1528).