Por Igor Gonçalves Caixeta
Dos conclaves às eleições de 2018: a institucionalização de um movimento
Os primeiros passos dentro das instituições
Gerado na internet, onde popularizou a invalidação eleitoral da esquerda, levado às ruas, onde ratificou a fúria pública de perdedores cada vez mais radicalizados e interconectados, o movimento antifraude tomou novos caminhos. Seus atores continuaram presentes nas mídias, nos protestos, nos meios militares. A partir da sua terceira fase, iniciada na reta final de 2014 e início de 2015, o movimento investiria, também, em atrair recursos e forjar fundamentos legais, ocupando mais espaços jurídicos e legislativos, e fundamentos técnicos, produzindo eventos periódicos de discussão das supostas fraudes. Se, por um lado, a presença da tese da fraude em manifestações, hangouts e memes de direita tornava-se, em geral, marginal frente a outros temas e símbolos, por outro, ela se institucionalizava.
À sombra da deslegitimação do voto popular, um golpe de Estado construía sua faceta de licitude. O intervencionismo não desapareceu de dentro da onda antipetista – ocasionou, inclusive, novas disputas entre os participantes dos últimos atos anti-Dilma de 2014. Mas alguns dos militantes mais extremistas da direita entenderam que este ainda não era o momento daquela intervenção. Como resumiu uma liderança do Revoltados Online, num protesto no ano seguinte, “a intervenção militar é o último vagão, mas ele faz parte desse trem”.
Na avaliação feita por Olavo de Carvalho, durante hangout com Lobão no dia 20 de novembro de 2014, um golpe militar era um passo a ser tomado quando há divisões entre os militares. O cenário de 2014 era lido pelo ideólogo como bastante diferente do de 1964, ano em que haveria tal divisão. Olavo subscreve a tese reacionária do “contra-golpe de 1964”, que explica à sua maneira, traçando paralelos com o Brasil de 2014. Segundo o escritor, no ano do golpe militar, a mídia, o parlamento e o povo eram favoráveis à remoção do presidente brasileiro (algo que foge à realidade, ao menos no que concerne ao povo). Existiriam, contudo, facções das Forças Armadas pró-João Goulart, que teriam incentivado uma reação militar “preventiva” pela direita. Em 2014, segundo o escritor, não existiam militares dispostos a matar e morrer pelo PT, e ainda faltava aos oposicionistas um movimento de massas com apoio midiático e parlamentar. Olavo não era contra um golpe militar, só considerava-o, por ora, desnecessário e disfuncional.
Olavo de Carvalho: Em primeiro lugar: eu acho que você ser contra ou a favor de uma intervenção militar não faz o menor sentido. Não é uma questão de você dizer se você é contra ou a favor. Uma intervenção militar é um meio de você obter certas mudanças. Então, nós estamos lutando é pelas mudanças. Os meios serão decididos no curso do processo mesmo.
Quem também optou, naquele momento, por um “endireitamento” um pouco mais gradual e de aparência legal da política brasileira, foi Jair Bolsonaro. No dia 29 de novembro de 2014, o então deputado compareceu à formatura de aspirantes da Academia Militar de Agulhas Negras, que receberam-no aos gritos de “líder”. Como em Copacabana, Bolsonaro prometeu aos cadetes tomar o poder pelas vias eleitorais. Mas também incluiu o sacrifício violento nos trilhos de seu movimento: “Alguns vão morrer pelo caminho, mas estou disposto, em 2018, seja o que Deus quiser, tentar jogar pra direita esse país! O nosso compromisso é dar a vida pela pátria, e vai ser assim até morrer”.
No mesmo dia, manifestantes reuniram-se na capital paulista contra a reeleição de Dilma, no quarto dia de protestos após a vitória de Dilma Rousseff. Lobão se exaltou novamente com os intervencionistas que apareceram na manifestação, organizada pelos Revoltados Online. Já o revoltado-mor Marcello Reis comprou briga com o sistema eleitoral: afirmava ter “provas cabais” (que ninguém viu) de irregularidades nas apurações dos votos. A luta contra supostas fraudes retornou como uma das pautas do protesto marcado para o sábado seguinte, no dia 6 de dezembro. O último ato de rua da direita em 2014 teve a presença de movimentos como MBL, Vem Para a Rua e Movimento Brasileiro de Resistência, de políticos como o senador José Serra (PSDB-SP), e o apoio de Aécio Neves, então senador que, de última hora, resolveu não aparecer.
Para alguém como Serra, diferente de Aécio, trabalhar com a extrema direita contra Dilma e o PT não era novidade ou motivo de desconforto. Em 2010, quando o tucano estava prestes a disputar o segundo turno das eleições presidenciais, a cúpula do PSDB recebeu membros da Associação dos Sócios Fundadores da TFP, a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade, num encontro em Brasília. Hoje fragmentada em diferentes grupos, a TFP foi um grupo aristocrata católico que atuou a partir dos anos 1960, na mídia e nas ruas, contra diferentes reformas (da Reforma Agrária à incorporação pela Igreja Católica do direito à liberdade religiosa e ao divórcio) e pela destituição do presidente João Goulart. Na década de 1970, agiu em nome do aprofundamento da truculência ditatorial, por meio de ações paramilitares e de caravanas pelo país. Sobretudo no auge da ditadura, o grupo mobilizou homens que se viam como mártires, liderados por um messias (para seus membros, o escritor e ex-deputado Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP).
Nas eleições de 2010, durante a dita reunião tucana, sócio-fundadores da TFP distribuíram panfletos com instruções para a divulgação virtual de boatos e polêmicas que viriam a pautar o segundo turno, como a associação de Dilma à perseguição dos cristãos e à legalização do aborto e da prostituição. Apesar de ter influenciado o pleito de 2010, o plano para a vitória eleitoral oferecido ao PSDB pela extrema direita integrista fracassou. Em 2014, a extrema direita, desta vez olavista, bolou menos uma campanha eleitoral, e mais uma forma não só de subverter a vitória da esquerda, mas de ampliar e aprofundar seu controle institucional. Os novos boatos responsáveis por um ambiente de pânico moral entre brasileiros não questionavam apenas a honra da presidente, mas as instituições brasileiras como um todo. O sistema eleitoral, partidário e judiciário do Brasil, os programas sociais e a educação pública, até mesmo a Constituição de 1988, eram os verdadeiros alvos dos golpistas de direita.
Para atingi-los, seus opositores não poderiam limitar sua atuação ao período eleitoral, nem o apoio financeiro e institucional que recebiam a um ou outro político. Um mês depois das eleições, integrantes do movimento antifraude viram-se obrigados a buscar peixes e mares maiores. O clima era favorável para sua caça: além das reverberações de suas próprias ações virtuais e de rua, os antipetistas contavam com a intensificação da operação Lava Jato, que tanto fragilizava a economia brasileira e o governo federal, e com as recentes movimentações do Congresso, onde a base aliada de Dilma (na figura do então pré-candidato do PMDB à presidência da Câmara, Eduardo Cunha) anunciava a possibilidade de rompimento com o PT.
Em 3 de dezembro de 2014, o deputado Paulo Pimenta (PT-RS) alertou os congressistas, no plenário do Senado, sobre a procura da extrema direita por amigos poderosos. Alvo de boatos levantados pelos Revoltados Online, Pimenta denunciou a presença de Marcello Reis e de seu movimento naquele espaço: “Eu quero dizer a V.Exa. que essa organização criminosa, chefiada por esse cidadão, está, durante todo o dia de hoje, em frente ao Parlamento, ofendendo Parlamentares, agredindo Parlamentares, e divulga duas contas bancárias e o número de um cartão de crédito.” No dia anterior, vestindo uma camisa com os dizeres “Impeachment Já”, na frente, e “Fraude”, nas costas, Reis e outros representantes da nova direita tentaram impedir uma sessão do Congresso, voltada à discussão de um projeto de lei que flexibilizaria a meta fiscal do governo. Foram retirados à força pela Polícia Parlamentar, a mando do senador Renan Calheiros (PMDB-AL). A performance de perseguição ditatorial do grupo rendeu ilustrações para propaganda dos protestos do dia 6, e chamou a atenção de políticos e de jornalistas. Para que suas organizações sobrevivessem, a chama do antipetismo não podia se apagar.
O tumulto na Câmara não tornou os militantes de extrema direita menos bem-vindos ali, pelo contrário. Integrantes do movimento antifraude, alguns a convite de Izalci Lucas (PSDB-DF), participaram, no dia 16 de dezembro, de uma audiência pública promovida pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara. Requerida pelo deputado tucano, a audiência tinha como finalidade debater “Vulnerabilidades encontradas no código-fonte dos programas utilizados durante as eleições de 2014”.
Especialistas em computação e sistemas, representantes partidários, e ativistas da direita como Hermes Nery, o inimigo dos direitos sexuais e reprodutivos, e Cláudia Castro, membro do Revoltados Online, discursaram na comissão. Houve, na ocasião, quem denunciasse a Diebold, alvo de antigos boatos antifraude, mas o foco de Nery foi mesmo a Smartmatic. Ele pediu uma CPI que a investigasse, e leu trechos do já citado texto conspiratório sobre a empresa publicado num site de Olavo de Carvalho. Castro, a revoltada, disse que fazia suas palavras as do “professor Hermes”, e aproveitou a ocasião para divulgar dois sites de sua organização, “o www.fraudenasurnas.com e o www.averdadeincomoda.com.br”.
Horas mais tarde, Olavo de Carvalho, Lobão, Marcello Reis e uma nova convidada encontraram-se para discutir as últimas ações no Congresso e planejar, minimamente, a atuação dos opositores do governo em 2015, num “HangOut Especial de Natal”. Por trás de um ícone virtual da Escola Brasileira de Reiki, estava Beatriz Kicis. Atualmente deputada federal (PL-DF), Kicis se apresentou a Lobão, que encontrara nas últimas semanas no Congresso, como “aquela sua fã”, e a Olavo, como cunhada de Miguel Nagib, fundador do Escola Sem Partido. O que a levou de encontro às lideranças de direita, contudo, não foi seu esoterismo, sua tietagem, ou o parentesco com outros direitistas. Além de compartilhar da ideologia do grupo e de ter disponibilidade para militar diariamente em Brasília, Kicis era procuradora do Distrito Federal.
O núcleo antipetista tinha, cada vez mais, preocupações legais. Já descrente de uma intervenção militar, Marcello Reis não se aproximou apenas da então procuradora (que, em pouco tempo, tornou-se membro do Revoltados Online). Também anunciou, na live do dia 16, uma entrevista com Ives Gandra Martins, jurista conservador que, nas palavras de Reis, era o guru de seu movimento, e o projeto de estabelecer uma união na classe dos advogados em favor da direita. “Os passos que nós vamos ter que tomar, é sempre tá calçado no jurídico.” Outro guru dos extremistas, Olavo de Carvalho incentivava igualmente a atuação jurídica atrelada aos movimentos de rua, uma estratégia, inclusive, para não prejudicar possíveis ações militares. “Clamar por intervenção é denunciá-la antecipadamente. Intervenção militar é um negócio que requer algum segredo, né, algum sigilo. Eu não sei se os milicos tão tramando alguma coisa, eu acho que não. Mas se estiverem não vamo fazer barulho pra atrapalhar eles. Deixa eles fazerem o que tem que fazer, porra. Vamo fazer a nossa parte e eles fazem a deles.” Olavo garantia que o movimento anti-Dilma, com gente disposta “a dar dinheiro, a dar seu tempo, a dar sua energia, a dar sua vida”, não pararia de crescer. Recomendava, para tanto, que os militantes não interrompessem suas ações por todo o Brasil, e começassem o “combate no exterior”, que Dalmo Accorsini já estaria planejando. Especialidade de Accorsini, a tese da fraude nas urnas tampouco deveria ser negligenciada.
Olavo de Carvalho: Atenção, nessa questão das urnas, tem dois termos que precisam ser repetidos, martelados e remartelados: o primeiro é apuração secreta. Apuração secreta é coisa da União Soviética. Basta a apuração ser secreta para a eleição ser totalmente inválida, mesmo que não se roubasse um voto! Em segundo lugar, tem que usar o termo Smartmatic, essa empresa criminosa que já tá acusada no mundo inteiro, já tá mais suja que pau de galinheiro, e que os americanos já conhecem! Eles já sabem o que é a Smartmatic, cê não tem que explicar muito não, eles já conhecem de outros carnavais.
As ações do movimento antifraude em 2015 começaram em Portugal, na primeira batalha da guerra de pretensões internacionais contra a Smartmatic e as supostas fraudes no Brasil, idealizada por Olavo e Accorsini. Em 21 de fevereiro, o patriota de Miami e outros manifestantes antipetistas se encontraram em frente ao consulado-geral do Brasil em Lisboa, e, de lá, dirigiram-se à Praça Luís de Camões. Além de uma curta caminhada com pouquíssimos participantes, o “Conclave pela Democracia do Brasil em Lisboa” contou com uma coletiva de imprensa numa sala de conferências, presidida por Dalmo, pelo jornalista colombiano Ricardo Puentes e por Manuel Matias, representante do Partido Pró-Vida de Portugal (hoje absorvido pelo Chega, principal partido de extrema direita do país). Não foram apresentadas as evidências prometidas das ditas fraudes, mas uma série de teses conspiratórias circulou ali: dos planos maquiavélicos do Foro de São Paulo, da Smartmatic e de Dias Toffoli, à explicação da suposta fraude através da lei de Newcomb-Benford, modelo matemático já refutado como prova de fraudes eleitorais.
Poucos se interessaram pelo Conclave em fevereiro, mas isso não impediu seu retorno em março de 2015, mês em que a direita se apresentou como um verdadeiro movimento de massas. Convocados e articulados durante meses nas redes sociais, manifestantes, sobretudo de classe média e alta, contrários a Dilma Rousseff e ao PT, participaram, no dia 15, de atos de grandes proporções em diferentes cidades do país. O maior deles, em São Paulo, reuniu 1 milhão de pessoas, segundo seus organizadores, e 210 mil, de acordo com o Datafolha. Impeachment, fim da corrupção, e tantas pautas presentes em protestos de 2014, retornavam em 2015. “Não estou pedindo um novo golpe de Estado, e sim uma intervenção constitucional para convocar novas eleições limpas, sem urna eletrônica, sem manipulação do PT. Que vão todos para Cuba!”, bravejou à AFP uma manifestante em Copacabana. A tese da fraude foi repetida em São Paulo, onde Marcello Reis exclamou para a multidão: “Acabei de receber a informação de que Washington vai provar que as urnas foram fraudadas”. Reis, provavelmente, se referia ao “Conclave de Washington”, realizado seis dias depois dos protestos.
De dezembro de 2014 a março de 2015, Dalmo Accorsini angariou 15 mil dólares em doações para a realização de um encontro antifraude no National Press Club, na capital dos EUA, que prometia convidados famosos: “Ex-Primeiro Ministro da Espanha Jose Maria Aznar, Ex-Presidente colombiano Alvaro Uribe, Ex-Presidente do Mexico Vicente Fox, Ex-Governador da Florida Jeb Bush, Senador Marco Rubio”. Nenhum deles apareceu. Em seu lugar, discursaram, no dia 21 de março de 2015, algumas personalidades da extrema direita menos conhecidas, como Cliff Kincaid, escritor norte-americano que já defendeu o nacionalismo branco, e Thomas Korontai, presidente do Instituto Federalista, responsável por criar, recentemente, junto a generais das Forças Armadas, um “Projeto de Nação” para o Brasil, e por coordenar intervencionistas no “Movimento Nacional de Resistência Civil” organizado após as eleições de 2022. “Washington” não provou que as urnas foram fraudadas, mas articulou homens perigosos, ajudou a inserir teses olavistas, o movimento antifraude e os últimos protestos na mídia de direita estadunidense, e atestou o potencial lucrativo dos conclaves.
O antipetismo, de forma mais ampla, tornou-se uma causa bastante vantajosa para quem o mobilizasse. Em sua loja virtual, o Revoltados Online cobrava, em março de 2015, 175 reais pelo “kit impeachment”, contendo uma camisa, um boné, e cinco adesivos com mensagens como “Fraude”, “Fora Dilma” e “100% Anticomunismo”. Os itens ainda podiam ser comprados em protestos, como indica um vídeo do Estadão, que cobriu a segunda manifestação do ano contra Dilma em São Paulo. O El País também registrou o protesto de 12 de abril, onde entrevistou a fundadora do movimento Nas Ruas, Carla Zambelli. Ela foi uma dos muitos até então desconhecidos, que conquistaram dinheiro, visibilidade nas redes sociais, espaço nas mídias tradicionais e cargos públicos, basicamente, por militarem contra o PT e tudo o que ele representava. Hoje deputada federal pelo Partido Liberal, Zambelli propagou, ao jornal, a tese da fraude nas urnas, e mostrou que conhecer a história do próprio país não era requisito para se tornar uma liderança da nova direita: “A Dilma saindo, entra o Temer. O PMDB também é um problema, mas acho que devemos dar a chance a ele, já que trata-se de um partido que nunca esteve na presidência”.
Era o momento não só da construção de um impeachment, mas de carreiras políticas. E se conhecimento histórico era dispensável para construí-las, estar em evidência era essencial. Cientes disso, membros do MBL caminharam durante quase um mês, da capital paulista à capital brasileira, num protesto que chamaram de Marcha Pela Liberdade. Os 22 integrantes do MBL que saíram de São Paulo no fim de abril (acompanhados de carros e ônibus que carregavam seus pertences e os abrigavam à noite), transformaram-se em cerca de 400 manifestantes de diferentes movimentos em Brasília no fim de maio. Bastante aquém dos 100 mil brasileiros prometidos, em vídeo, por Adolfo Sachsida. Ainda assim, atentamente recebidos pela mídia e por deputados e senadores da oposição, que os esperavam na frente do Congresso Nacional. Alguns deles entraram e protocolaram um pedido formal de afastamento de Dilma na sala do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. Sentaram-se em seu gabinete diversos coordenadores de movimentos, como Kataguiri, Kicis e Reis, que meses depois afirmaria categoricamente, como convidado numa audiência da Câmara: “eu não sento em gabinete”. Em setembro, queria se distanciar da política tradicional, mas naquele dia, juntou-se a Cunha, aos tucanos Carlos Sampaio e o pastor-deputado Fábio Sousa, a Jair e Eduardo Bolsonaro, dentre outros congressistas que tentavam pegar carona no que se pretendia um dia histórico.
De cartazes de manifestantes de fora do Congresso a discursos de políticos e aspirantes a políticos dentro da sala de Cunha, a tese da fraude eleitoral esteve no centro dos acontecimentos do dia 27 de maio. O seguinte diálogo, parte de um vídeo gravado por Beatriz Kicis no gabinete do presidente da Câmara, evidencia o empenho pela penetração do movimento antifraude, de sua base conspiratória e de seus projetos, no legislativo e no judiciário brasileiro, já no primeiro semestre de 2015:
Jair Bolsonaro: Uma proposta que será votada hoje será o voto impresso, que acaba com a dúvida da suspeição por ocasião das eleições patrocinadas pela Smartmatic. Então, vossa excelência não pode, realmente, tomar um partido, mas conduzindo o trabalho da Casa, no coração, tenho certeza, que o senhor será favorável a essa forma de auditar as urnas eletrônicas através da emenda número 10, que trata do voto impresso.
Beatriz Kicis: Presidente, eu poderia falar também? Beatriz Kicis, eu sou membro do Revoltados Online e do Foro de Brasília, que é um grupo que foi formado por juízes, promotores, desembargadores, em contraposição ao Foro de São Paulo. Eu sou procuradora do Distrito Federal, e uma das autoras do pedido de impeachment. Coube ao Foro de Brasília, quando o MBL sugeriu a caminhada, fazer em parceria com o MBL, porque somos todos juristas, fazermos um pedido de impeachment. Então, o que eu tenho a dizer é que esse pedido tá bem fundamentado, porque feito, analisado, por advogados, procuradores, juízes, promotores. Não tem motivo pra se dizer que não tem fundamento. Peço a vossa excelência que examine com zelo, com cuidado, porque o pedido está bem fundamentado. E também reforço… por que a maior preocupação hoje, nossa, são as urnas. Nós não confiamos nas urnas eletrônicas, acho que pra uma democracia a segurança é um princípio que é fundamental. Não se pode ter democracia se não há sequer segurança nas eleições. Então peço a vossa excelência que também encaminhe a PEC número 10, que trata do voto impresso, porque isso é um clamor também do povo brasileiro que está desperto. Obrigada.
Ainda que não fosse a vez da PEC de Bolsonaro, o movimento antifraude avançava, quase despercebido. Paralelamente, com seus eventos e votações próprias, mas também desde dentro do movimento pró-impeachment. Alguns de seus integrantes ouviram do deputado Alberto Fraga, então DEM-DF, que os movimentos, tão bem recebidos, começaram bem, mas perderam força. “Não esmoreçam, nós temos que continuar! Esse ato aqui é importantíssimo, mas não pode parar por aqui não.” Entre aplausos, a representante de um movimento respondeu que ambos prosperariam se somassem forças. Razões jurídicas para o impeachment até seriam procuradas, mas pouco importavam. Mais importante era estabelecer as condições nas ruas e no Congresso para derrubar Dilma, e para isso, movimentos sociais e políticos anti-Dilma (muitos dos quais, antifraude) deveriam se unir.
Horas depois do ato seguido de reunião no Congresso, Kicis decidiu iniciar um canal de entrevistas no YouTube. O primeiro convidado foi Paulo Martins, que esperava para assumir como suplente na Câmara dos Deputados, entrevistado do vídeo de título “Fraudes nas Urnas e Impeachment”. Enquanto a fraude se explicava, segundo Kicis, pela conspiração da Smartmatic, o impeachment era descrito, pelos dois, essencialmente, como uma “guerra cultural”, uma luta pela hegemonia de símbolos e códigos de um grupo. A direita percebia-se cada vez mais hegemônica. Consequentemente, ficava cada vez mais à vontade.
Paulo Martins: Sobre o pedido de impeachment que aconteceu hoje, eu acho extremamente válido, positivo, porque… ao contrário do que muita gente fica pensando, ah, fundamentação jurídica, não sei o que, esses caras frouxos do PSDB que têm medo de bancar a posição, essa coisa toda. Eu não tô preocupado com isso, tô enxergando uma coisa maior. O impeachment não começou agora, quando foi protocolado o pedido, ou quando outra pessoa protocola. Ele começa quando as pessoas começam a discuti-lo. Então o impeachment começou, de fato, lá no ano passado, na primeira manifestação que aconteceu em São Paulo, quando tinha lá mil pessoas, dez mil pessoas, depois outras que foram crescendo. O impeachment, sempre dizem assim, é um processo político e jurídico. Não, tá errado! É um processo político, jurídico e social, que remete no político em seguida. E o processo social se dá quando isso se torna uma pauta na vida das pessoas, e as pessoas falam disso. Então eu não tô preocupado com a covardia do PSDB, de verdade. Isso só pode atrasar ou não o processo… mas o impeachment já está acontecendo. Se ele chega antes do final do teto do mandato da Dilma é uma outra coisa, mas que ele tá acontecendo, está.
Beatriz Kicis: Eu ouvi uma frase uma vez, que eu achei muito engraçada. Cê falou, quando é que começa o impeachment… Essa frase diz o seguinte: quando as pessoas que falam “seje” começam a falar impeachment, é porque o negócio tá ficando sério.
Paulo Martins: Ficou bom!
(risadas)
Beatriz Kicis: A minha empregada falou impeachment hoje! A gente tava em casa, ela falou impeachment! Eu falei assim, Maria, eu vou gravar depois um vídeo com você, tá? Você vai falar! Porque eu lembrei dessa frase, não é bacana isso?
Paulo Martins: Claro que é.
Beatriz Kicis: Tá na boca do povo!
O enraizamento no sistema político
Na metade de 2015, a tese da fraude eleitoral contava com espaços, atores, redes e repertórios sólidos o suficiente para se instalar de vez na política brasileira. Sólidos, mas não rígidos, o que permitiu sua adaptação frente às transformações no percurso do golpe. Com a queda na aprovação de Dilma (fruto não só da propaganda e de protestos antipetistas, mas também da desaceleração econômica e de medidas fiscais e aumentos de impostos implementados pelo governo), a popularização do argumento das “pedaladas fiscais” para afastá-la, e a oficialização do rompimento do presidente da Câmara com a petista (uma retaliação às investigações da Lava Jato que dele se aproximaram, e que não foram obstruídas pela presidente), o caminho do impeachment parecia acertado. Se tudo desse certo, o vice presidente Michel Temer seria empossado, e, com o PMDB, as diferentes facções da direita que possibilitaram sua chegada à presidência (liberal, nacionalista religiosa, militarista, ruralista, dentre outras) constituiriam um novo governo.
Mas a tese da fraude não morria ali. Primeiro, porque alimentava o antipetismo, garantia do impeachment e principal recurso de uma nova geração de políticos e de ativistas com atuação nos meios jurídico, midiático, militar e em movimentos sociais. Depois, 2018 se aproximava. Se antipetistas perdessem as eleições presidenciais, poderiam sacar a mesma arma de 2014, lapidada durante quatro anos. Mais importante, a evocação da tese da fraude era o chamado à construção, em equipe, de projetos e planos de ação da extrema direita. O pressuposto para adentrar o movimento que se dizia oposto às fraudes era profundamente simples e radical: a crença de que a esquerda não deveria ter acesso a espaços de poder. Alegar luta contra fraudes eleitorais era um modo circunstancial e um pouco mais discreto de externar tal crença, mas extremistas captavam bem a mensagem.
A cadeira da presidente não era o único lugar a ser retomado pela direita, mas, naturalmente, assegurá-la era de vital importância, sobretudo para os que sonhavam em ocupá-la. Poucos se preparavam para este momento como Jair Bolsonaro. Em junho de 2015, ao ter o primeiro projeto de emenda constitucional (preliminarmente) aprovado em vinte e cinco anos de atuação na Câmara, o então deputado foi entrevistado pelo G1. Prometeu, uma vez mais, ser candidato a presidente nas próximas eleições. Alguns dos discursos e estratégias que viria a adotar em 2018 já eram por ele trabalhados: além de se posicionar contra a Comissão Nacional da Verdade e o que chamava de “kit gay”, e a favor da exploração de reservas indígenas “com países de primeiro mundo”, Bolsonaro declarou, na entrevista, participar de “uns 200 grupos” de WhatsApp, que utilizava como canais de divulgação. Se os ataques grosseiros a minorias, o militarismo e a instrumentalização de tecnologias fossem insuficientes para que alcançasse a presidência, o então deputado poderia, ainda, tumultuar as eleições. Conhecendo o desprezo pela democracia de Bolsonaro, notório defensor da ditadura, não é exagero afirmar que o projeto que propunha na ocasião, a PEC do voto impresso, tinha esta intenção. “Tumultuar”, aliás, é até lisonjeiro. Quem sabe, de alegações de divergência entre o voto eletrônico e o voto no comprovante proposto pelo capitão da reserva, não sairia uma judicialização ou anulação das eleições? Um estado de sítio, um golpe de Estado, ou, pelo menos, a manutenção da fúria de seu eleitorado? Na esteira do que Aécio Neves tentou, de improviso, em 2014, Bolsonaro construiu, durante anos, tanto uma candidatura a presidente, quanto um plano B caso fracassasse.
A conquista da presidência, ele e seus apoiadores sabiam bem, estava longe de garantida. Mesmo em franca ascensão, a nova direita reconhecia os obstáculos em seu caminho. O principal deles tinha nome e sobrenome: Luiz Inácio Lula da Silva. Segundo mais votado nas eleições presidenciais de 1989, 1994 e 1998, eleito em 2002, e reeleito em 2006 para um segundo mandato que encerrou com mais de 80% de aprovação, o ex-presidente chegaria em 2018 como um candidato extremamente competitivo. Aproveitando-se do pavor direitista evocado pelo fantasma de um terceiro mandato de Lula, Dalmo Accorsini recolheu fundos para um novo evento internacional, desta vez na Noruega, realizado em julho de 2015. Além de espalhar boatos sobre fraudes em eleições no Brasil e em outros países latinoamericanos, o evento tinha como intuito impedir a nomeação de Lula ao Nobel da Paz. Se ele ganhasse o prêmio, entregue em Oslo, sua eleição em 2018 tornaria-se inevitável, na visão de Accorsini.
Acontece que, tal qual as fraudes nas urnas e a instalação do comunismo no Brasil, a nomeação do petista ao Nobel em 2015 era um factoide inventado pela extrema direita. Mas no Brasil destes novos atores políticos, a mentira tornara-se um bom negócio. Accorsini disse ter recebido cerca de 50 mil reais em doações para realizar seu novo conclave. Desta vez, diferentes brindes foram oferecidos para incentivar os doadores, como um livro de Olavo de Carvalho autografado pelo escritor, para quem contribuísse com 180 reais, e uma “viagem para Orlando para a inauguração do “Comedy Club” do Danilo Gentili com 3 dias de hospedagem”, por 5 mil reais. Estes souvenirs vendidos por Accorsini, contudo, não bastaram para que sua audaciosa meta de 150 mil reais fosse atingida.
Danilo Gentili, Lobão, e outras atrações prometidas para o encontro em Oslo, no fim, não participaram. Nem mesmo o “evento”, em si, fez-se presente. Ao que indicam fotos e vídeos postados por seus participantes, o Conclave de Oslo foi, muito mais, um passeio turístico no exterior custeado (parcialmente, alega Accorsini) por doadores virtuais. O empresário Otávio Fakhoury, o ex-procurador da Fazenda Nacional Hugo César Hoeschl, sua esposa Tânia Cristina D´Agostini Bueno, e uma filha do casal, acompanharam Dalmo Accorsini na capital norueguesa. Para além da justificativa do Nobel, o organizador da viagem aparentemente nutria um interesse pessoal, e porque não dizer, racial, em relação ao país europeu. Num hangout com Jair Bolsonaro e Beatriz Kicis, realizado em maio de 2015, durante uma tentativa do então deputado de votar a PEC do voto impresso, Accorsini divulgou, empolgado, o seu mais novo conclave: “O Danilo já tá até planejando um panelaço lá na frente do comitê do prêmio Nobel. E vindo do Danilo Gentili eu acredito que ele é bem louco de fazer isso mesmo. Seja como for, seriam panelas nórdicas, seria uma coisa fina, entendeu? Bem reaça! De olhos azuis! Vou mostrar meus olhos azuis pro Lula pra dar um susto nele.”
Depois que foi usada por Lula para designar torcedores que xingaram Dilma no Itaquerão, na abertura da Copa do Mundo de 2014, a expressão “elite branca” abriu uma ferida na direita brasileira. É evidente que nem todo direitista ou antipetista era branco ou parte da elite econômica do Brasil, mas boa parte dos apoiadores e lideranças da direita realmente o eram, e alguns abraçavam não apenas uma mera identidade do grupo, mas pautas que o atendiam enquanto classe. A defesa de desigualdades, e dos interesses, valores e estética da elite brasileira, podem ser ilustrados, como parte da linguagem da direita, através de falas de integrantes do movimento antifraude. Accorsini, por exemplo, na mesma live em que revelou seu orgulho branco, declarou-se contrário às manifestações públicas de homossexualidade. Outra defensora de um “direito ao preconceito” era Beatriz Kicis. Anos antes de recepcionar, junto ao presidente Bolsonaro, a neta de um ministro de Adolf Hitler no Brasil, a ex-procuradora já mostrava-se adepta aos mais abjetos ideais da extrema direita, ainda que de forma um pouco mais cínica. Em vídeo de novembro de 2015, uma entrevista com Fernando Francischini (mais conhecido pela cassação de seu mandato de deputado estadual em 2021, após propagar desinformação sobre as urnas eletrônicas), Kicis ironizou e negou acusações de racismo. Ao mesmo tempo, legitimou “sentimentos” racistas, e quase verbalizou explicitamente seus próprios sentimentos do tipo, mas optou por um racismo mais velado:
Beatriz Kicis: Nós somos a “elite branca-fascista-racista”… Hoje eu tava ouvindo, no plenário, aquele deputado Ivan Valente do PSOL de São Paulo, né? Dizendo que essas redes sociais, elas têm que ser punidas sim, porque ficam incitando o ódio. São racista, essas elite branca, racista. Quê isso, meu amigo? Eu fui chamada na CPI dos crimes cibernéticos, lá ficou mostrado meu trabalho, que ninguém incita ódio, é um trabalho muito mais educativo e de denúncia, isso sim. Mas eles não tão nem aí, não! Eles vão pra tribuna e falam qualquer coisa. Negócio deles é dividir, e é causar conflito entre as pessoas. O brasileiro é o povo da miscigenação. Não existe no Brasil essa coisa de branco não gosta de preto. Isso nunca aconteceu aqui, você já viu? De repente tem uma pessoa ou outra que tem um sentimento, preconceituosa… mas se for um sentimento, isso é problema dela. Se ela não externar na forma de uma atitude racista… Ninguém pode obrigar branco a gostar de… de… sabe? Loiro, moreno, não interessa, gente! O sentimento e o pensamento é livre. Agora, o que a gente tem que olhar é se a atitude, ela tem agressividade e violência. E eu digo, o brasileiro não tem isso.
A futura deputada já anunciava para qual grupo social seria direcionada sua atuação política. Em outro vídeo de seu antigo canal de entrevistas, desta vez gravado com Otávio Fakhoury e Olavo de Carvalho (na casa do escritor, nos EUA), Kicis explicitou o caráter burguês de sua “revolução”. Sim, pois para a extrema direita, um processo revolucionário começara. Realizados em diferentes cidades brasileiras no dia 16 de agosto de 2015, os novos protestos – que contaram, como de costume, com posicionamentos antifraude em falas ([1][2]) e cartazes de manifestantes – inflamaram os radicais de direita. Kicis acreditava que era hora de “começar a endurecer o jogo”. “Agora é impor! Impor! Impor! Nós mandamos, nós somos o poder, nós somos o poder soberano”, concordava Olavo. Mas quem era esse “nós”? A quem pertencia essa “revolução”? De que lado estavam os militantes da direita nesta “guerra”?
Beatriz Kicis: Como eu te falei né professor, que eu acordei sentindo aquele cheiro de revolução francesa ontem, e fiz uns posts, umas coisas assim, tipo… Nós não vamos aceitar esse imposto de renda 35%! Nós não vamos aceitar isso que estão fazendo com os empresários! Nós vamo lutar! Então assim, a gente pode não ter ainda muita estratégia. Tamo montando, temos o professor, que nos orienta, temos outras pessoas que nos orientam também, e nós temos coração gente, nós temos, sabe? Nós temos muita vontade, ganas, de vencer essa guerra, por isso eu acredito que a gente vai vencer, sim.
Olavo de Carvalho: Não, nós vamos vencer, mais dia menos dia, não interessa o tempo que vai levar. Esses caras tem que sair do cenário, todos eles. E vir uma nova geração, limpa, eleita em eleições legítimas, sem Smartmatic, tem que fechar a Smartmatic. O que nós estamos vivendo é a revolução brasileira, é o grande momento da revolução brasileira!
Ainda que a “revolução” direitista não contemplasse pautas dos trabalhadores, sua participação no movimento era almejada. Tal ambição foi um dos principais temas discutidos por antipetistas no Conclave de Miami, quinto evento organizado por Accorsini. O encontro na cidade pólo da direita latinoamericana sucedeu o Conclave de São Paulo, evento antifraude de maiores proporções (divulgado, inclusive, pela grande mídia brasileira). No fim de novembro de 2015, na capital paulista, palestraram diferentes figuras da direita do Brasil e de outros países da América Latina, com destaque para os mais conhecidos: os deputados ou futuros deputados federais Marcel van Hatten, Beatriz Kicis, Carla Zambelli, Jair Bolsonaro e Luiz Philippe de Orleans e Bragança. Alguns dos participantes retornaram (uns presencialmente, outros virtualmente) na reunião em Miami, realizada em fevereiro de 2016. O local escolhido para o novo conclave foi a sede do Interamerican Institute for Democracy, organização de latinos residentes nos EUA, opositores de governos e de partidos de esquerda em seus países de origem. Em Miami, os participantes do conclave fizeram um balanço de sua atuação até então. Apesar de conquistas e avanços, para muitos, havia uma séria questão de classe a ser resolvida. Accorsini, Kicis, e o advogado e empresário Ton Martins (que recentemente co-escreveu uma Constituição liberal, assinada por Bragança), reclamaram da ausência das camadas populares na nova direita. “A gente tá falhando miseravelmente na mensagem pro povão.” “Esse é o momento de atingir outras camadas.” “Nós não conseguimos atingir a classe c e d.”
Indagado sobre como o grupo poderia “chegar a essa gente”, Olavo de Carvalho enfatizou a importância do trabalho de base. “Uma atuação profunda, dentro da Igreja Católica, dentro da Maçonaria, e dentro das Forças Armadas, é uma coisa urgentíssima! E finalmente a mídia, que é o grande mata-burros aí no nosso caminho.” “É conversar com empresários, investidores, etc, lançar essa ideia: vamo fazer um novo jornal e desbancar todos. Se desbancar o jornal, você acaba desbancando televisão, também, mais cedo ou mais tarde. Cê não pode esquecer que a origem de todas as televisões são os jornais diários. Então há um espaço a ser preenchido. Com relação à militância, a coisa é mais difícil, mas nós podemos começar a coletar militantes através de internet, dizer, olha, se você tá disposto a lutar, venha falar conosco, venha em endereço tal, fale com fulano, e vamo começar a treinar um por um. Isso aí já tá atrasado.” Colonizando diferentes espaços de influência e poder, a extrema direita formaria, a longo prazo, uma militância. Mas não qualquer militância, como Olavo salientava:
Olavo de Carvalho: Não podemos desistir de nada, temos que participar da próxima eleição, tentar vencê-la, evidentemente, temos que tentar o impeachment, temos que tentar tudo. Mas o básico é esta penetração em profundidade. Nós temos que começar a formar militantes. E militantes imbuídos no espírito de sacrifício, como diziam os founding fathers americanos, dispostos a arriscar sua vida, seus bens, sua liberdade e sua honra.
Talvez porque considerava uma forma de atrair camadas populares, talvez porque sabia que dificilmente elas se fidelizariam à direita (o que intensificaria a necessidade da violência reacionária), na visão do ideólogo, era fundamental que o movimento antipetista investisse em mais radicalidade, aumentando o nível de exigência sobre sua militância. A militância que Olavo propunha fez-se mundialmente conhecida em 8 de janeiro de 2023, dia em que prédios dos três poderes foram atacados pela extrema direita em Brasília. Antes disso, quando ainda estava vivo, durante o governo Bolsonaro, o ideólogo promoveu experimentos do tipo, como os “300 do Brasil”, protótipo de milícia ligada não só ao escritor, mas a parlamentares, a ministros civis e militares, e ao então presidente. Enquanto a pandemia do covid-19 explodia, por volta de junho de 2020, o grupo pregava uma “intervenção militar com Bolsonaro no poder” e o “extermínio da esquerda”. Abrigados numa chácara com estrutura para treinamento militar, seus membros reproduziram marchas que evocavam certa estética neofascista transnacional, agrediram jornalistas, e simularam um ataque ao prédio do STF utilizando fogos de artifício. Segundo mensagens interceptadas pela Polícia Federal no celular de uma das lideranças do grupo, que adotava o codinome da nazista Sara Winter (de real sobrenome Giromini), Olavo de Carvalho foi o grande idealizador dos “300” (que contava, na realidade, com cerca de 30 integrantes). Quatro anos antes, em Miami, o escritor não cansava de ressaltar o quão violentos seriam os futuros militantes de extrema direita, e o quão descartáveis eram, para ele, as suas vidas. “Temos que conscientizar os jovens: olha, vale a pena você morrer pra destruir isso. Nós temos que falar o português claro: nós precisamos de mártires. Gente que aceite morrer.” “A coisa mais urgente é nós começarmos a formar militantes, quer dizer, pessoas que estão comprometidas com este objetivo e dispostas a tudo! A arriscar sua vida! Nós precisamos começar a treinar essa gente anteontem!”
Outras “medidas urgentes” definidas em Miami foram o estabelecimento de uma estrutura hierárquica para o movimento (que Kicis prometeu explicar melhor num grupo de Telegram), e o aprimoramento de sua captação de recursos. Para Leandro Ruschel, influenciador direitista residente em Miami que à época se apresentava como investidor no mercado financeiro, ainda que seu país natal fosse, na sua opinião, “formado por pessoas mais preguiçosas ou medrosas, ou, enfim, aquelas características latinas que a gente conhece”, havia “muita gente no Brasil interessada” em investir na direita. “Eu acho que tem que oferecer pra esses empresários, ou pessoas que tenham essa capacidade financeira, a oportunidade! Porque todo mundo gosta, também, de investir em algo que possa dar retorno. Poxa, uma página que tenha 80 milhões de visitantes, além de ser poder, é dinheiro, né?” Já Olavo acreditava que o grupo não deveria se limitar ao Brasil em sua busca por financiamento, e se ofereceu para encaminhar alguém do movimento para um “curso de fundraising” nos EUA. Hermes Nery também via o país norte-americano como uma grande incubadora da direita: “A gente precisa ir, com um pequeno grupo, vocês que já estão aí nos Estados Unidos, existem fundações, organismos, nos Estados Unidos, que investem na agenda conservadora! Eu passei uma lista de fundações e organismos pra você, Dalmo, você disse que já tem outros organismos também. Então tem que procurar esse pessoal! Tem que procurar esse pessoal que o nosso projeto é de médio-longo prazo, mas também, nós temos que dar os passos certos nesse sentido.”
Os “conclavistas” organizaram seu último encontro – o Conclave de Brasília – cerca de dois meses depois de Miami, e um mês após as maiores manifestações contra Dilma já registradas. Como os dois conclaves anteriores, a conferência na capital brasileira recebeu apoio institucional da Interamerican Institute for Democracy. É mais provável, no entanto, que os verdadeiros possibilitadores do evento tenham sido parlamentares de diferentes partidos do Centrão, ideologicamente ligados à extrema direita, que viram, no conclave, um canal de propaganda e solidariedade reacionária. Num auditório da Câmara dos Deputados, em 26 de abril de 2016, discursaram os deputados federais Jair e Eduardo Bolsonaro, Marco Feliciano, Sóstenes Cavalcante, Marcel van Hatten, Fernando Francischini e Paulo Martins, dentre outros membros do movimento antifraude que, em sua maioria, participaram de conclaves anteriores. O conteúdo dos discursos proferidos no encontro, em geral, tampouco era inédito. Anunciado como um espaço de discussões técnicas sobre a confiabilidade, transparência e auditabilidade das urnas eletrônicas, o “Conclave pela Democracia” em Brasília, como as edições que o antecederam, foi um palanque para a extrema direita brasileira divulgar seus ideais. Seus mais famosos participantes, Olavo de Carvalho e Jair Bolsonaro (que se identificou ao escritor como “teu aluno”), se valeram da “casa do povo” e da transmissão ao vivo pela TV Câmara para defender, juntos, Ustra, um coronel que torturou de crianças a mulheres grávidas na ditadura militar, e negar, covardemente, a veracidade das denúncias de violações de direitos humanos feitas por vítimas das Forças Armadas. “Democracia”, só mesmo no título do evento e do canal do YouTube que o divulgou. E que ainda divulga-o, afinal, a campanha do movimento antifraude não cessou desde 2014, e vídeos com trechos como este, que contabiliza quase 30 mil visualizações só no YouTube, seguem disponíveis na internet.
Poucos dias após o último conclave, no fim de abril, começaram os trabalhos da comissão do impeachment na Câmara dos Deputados. Em maio, a presidente foi afastada pelo Senado, e em agosto, teve seu mandato cassado. Não foi a tese da fraude eleitoral, principal justificativa dos primeiros protestos oposicionistas após a reeleição de Dilma, o que embasou sua destituição. Em 2015, a auditoria do PSDB já havia concluído que as eleições não foram fraudadas. A cassação de Dilma foi fundamentada, então, por acusações de crime de responsabilidade fiscal. Ao mesmo tempo, a atuação do movimento antifraude e de outras parcelas da extrema direita ao longo do processo do impeachment foi convenientemente ignorada pelos que desejavam dar ares de legalidade, normalidade e moderação à queda da presidente. Com a retirada do Partido dos Trabalhadores do Planalto, concluía-se a primeira etapa da reconstrução de uma hegemonia da direita no Brasil. O próximo grande passo para a efetivação deste projeto envolveu, uma vez mais, a atuação conjunta de diferentes direitas e representantes de grandes instituições. Trata-se da injusta prisão do ex-presidente Lula em 2018, evento jurídico-midiático-militar que entregou ao segundo colocado nas intenções de voto, um integrante do movimento antifraude, a dianteira na corrida pela Presidência da República.
“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos!”, entoou, no Tribunal Superior Eleitoral, o blogueiro Ted Martins, durante audiência pública sobre o voto impresso no início de 2018. Bolsonaristas não faltaram no evento: lá estiveram figuras como Beatriz Kicis, Douglas Garcia, hoje deputado estadual pelo Republicanos-SP, e Pedro Stepien, padre polonês antiabortista que virou notícia por rezar com o então presidente Bolsonaro na frente do Palácio do Alvorada. A audiência pública no TSE em fevereiro foi um prelúdio do que estava por vir ao longo de 2018. Além do slogan da campanha de Jair Bolsonaro nas últimas eleições, utilizado pelo ex-deputado desde 2014, os discursos proferidos na tribuna durante a audiência contaram com citações de Olavo de Carvalho, pedidos de “voto no papel” no lugar das “urnas fraudulentas”, e convocação de desobediência civil caso o voto impresso não fosse implementado.
Foi meio a contragosto, com ressalvas, que militantes e eleitores de extrema direita – principais disseminadores de teorias conspiratórias sobre o sistema eleitoral – adotaram Aécio Neves como candidato em 2014. Quatro anos depois, tinham exatamente quem desejavam na disputa pela presidência. E enquanto Aécio aventou alegar fraude nas eleições de 2014, Bolsonaro foi integrante ativo do movimento antifraude durante anos. Teorias conspiratórias sobre o processo eleitoral tornaram-se, então, elemento central da campanha oficial e não-oficial do favorito a ganhar o pleito de 2018, o candidato da extrema direita. A grande mídia brasileira, é bom lembrar, não descrevia Bolsonaro assim, isto é, não explicitava o perigo da tradição ideológica que ele representava. Aos poucos, sua aversão às urnas eletrônicas e ao TSE, junto a outras expressões de sua radicalidade reacionária (e de seus apoiadores), difundiu-se e normalizou-se.
Após o episódio da facada em Juiz de Fora, em 6 de setembro, Bolsonaro ficou ainda mais confortável para tocar sua campanha extremista. Em primeiro lugar havia o drama, o choque, a vitimização que envolviam o ataque ao “messias antissistema” (cuja responsabilidade foi rapidamente atribuída à esquerda por seus apoiadores), um dia antes da comemoração da independência do Brasil e a um mês do primeiro turno das eleições. Bolsonaro ganhava, então, veiculação midiática incessante e gratuita, enquanto sua equipe podia se dedicar à propaganda nas redes digitais, onde não tinha concorrentes à altura. Depois, outros candidatos a presidente, como Geraldo Alckmin (na época filiado ao PSDB), até então críticos ao autoritarismo bolsonarista, optaram por uma trégua com o candidato do PSL. O projeto autoritário da direita angariou, finalmente, as condições que precisava para se popularizar como nunca: uma massiva rede de propaganda, um bom nível de apoio e complacência da elite político-econômica brasileira, e elementos discursivos suficientes para que um estado de conspiração fosse construído no Brasil.
Sempre foi estratégia da extrema direita forjar, discursivamente, uma série de “inimigos da nação”, em geral vinculados entre si nas teorias conspiratórias reacionárias. A articulação de inimizades permeou toda a campanha presidencial de Bolsonaro: o capitão era anunciado, há anos, como a salvação frente à ameaça do comunismo, feminismo, gayzismo, bolivarianismo, globalismo, islamismo (e assim sucessivamente), unidos numa grande conspiração contra a pátria, a propriedade, a família e os valores do “cidadão de bem”. No período eleitoral, surgiram boatos que envolviam alguns destes diferentes “inimigos” numa mesma trama contra a eleição de Bolsonaro.
Dez dias após a facada, O Globo divulgava, pela manhã, que o “entorno de Bolsonaro” estaria preocupado com a possibilidade de um ataque do Hezbollah (grupo islamista libanês apoiado pelo governo iraniano) ao então candidato. Mais tarde, Bolsonaro gravava sua primeira transmissão ao vivo do hospital, confabulando sobre o “plano do PT” de fraudar as eleições através do voto eletrônico. Dois dias depois, notícias falsas sobre a Smartmatic (em ressurgente evidência desde 2017, quando Rodrigo Constantino começou a atacá-la), eram espalhadas nas redes sociais. No fim de setembro, foi a vez de Joice Hasselmann trazer os libaneses de volta ao esquema conspiratório que se montava. Num evento de mulheres da elite paulistana, a então candidata a deputada federal (PSL-SP) afirmou que “havia células do Hezbollah no meio do povo” em Juiz de Fora, no dia do atentado a Bolsonaro. No mesmo período, a Revista Crusoé publicou uma matéria ligando Adélio Bispo, o autor da facada, ao PCC. A tese foi reforçada pela revista em 19 de outubro, a cerca de uma semana do segundo turno. No dia 20, por fim, circulou na internet uma carta que teria sido escrita por um deputado norte-americano, do Partido Republicano, para o então Secretário de Estado dos EUA, acusando o Hezbollah, o Irã e a Venezuela de planejarem interferir nas eleições brasileiras. Divulgado pela manhã na Veja, o boato foi propagado à tarde por Hasselmann numa live de Facebook, alcançando, rapidamente, milhões de visualizações e milhares de compartilhamentos em diferentes mídias sociais.
Esta hidra ou Frankenstein concebido a partir da junção de diferentes bodes expiatórios em 2018 foi apenas uma das inúmeras criações da campanha de Bolsonaro, que, em boa medida, reforçavam a tese da fraude eleitoral. Em 6 de outubro, um dia antes do primeiro turno, o PSL apresentava o “Fiscais do Jair”, aplicativo de celular que visava promover uma “apuração paralela” dos votos, através de fotos tiradas por eleitores de boletins emitidos pelas urnas. No mesmo dia, a produtora de vídeos conspiracionistas Brasil Paralelo lançou a “Operação Antifraude”. A “operação” era liderada por Hugo Hoeschl, palestrante nos conclaves antifraude desde a primeira edição, realizada em 2015, e propagador da tese da fraude eleitoral em eleições brasileiras desde dezembro de 2014, quando participou de uma conferência internacional na Polônia. No dia 7 de outubro de 2018, dia da votação do primeiro turno, vídeos falsos similares aos difundidos em 2014, acusando a existência de “urnas viciadas” (dessa vez em favor de Fernando Haddad, o candidato a presidente pelo PT), foram compartilhados por perfis digitais como o de Flávio Bolsonaro, então candidato a senador (PSL-RJ).
Com o anúncio da segunda volta das eleições, a ser disputada por Bolsonaro e Haddad, os ânimos dos bolsonaristas se exaltaram ainda mais. “Nós não estamos mais em período eleitoral, nós estamos, literalmente, em guerra!”, bravejou Allan dos Santos em vídeo de seu canal Terça Livre, alguns dias depois do primeiro turno. Adepto às técnicas olavistas de difusão de mentiras e difamação de opositores, o blogueiro alegou que Bolsonaro já era vitorioso, e convocou os apoiadores do capitão, sobretudo caminhoneiros, a parar o país, denunciar as supostas fraudes e tomar o poder. No canal do MBL, Renan Santos ainda pedia a confiança da direita na democracia, que entregaria-lhes a vitória no segundo turno. Mas também não descartava uma carnificina: “se tiver uma virada de mesa, vai ter morte, vai ter sangue. Essa manifestação pacífica na paulista, esses 700 mil brasileiros vão virar o capeta.”
A sugestão de um levante reacionário, abertamente confabulado no primeiro semestre daquele ano, alcançou nichos ainda mais perigosos, como os fanáticos por armas. Num vídeo publicado em seu canal, em 26 de outubro de 2018, dois dias antes do segundo turno, Lucas Silveira, fundador do grupo armamentista “Instituto Defesa”, pedia que seus seguidores estivessem “preparados”: “Compete a todo brasileiro nesse momento pensar, no domingo à noite, quando a gente começar a ter o resultado das urnas, se o resultado que a gente espera for diferente do resultado de fato publicado, o quê é que deve ser feito? Qual é a melhor resposta do brasileiro, do Estado, quem sabe das Forças Armadas para responder a um escândalo de fraude nas urnas?”
A imagem em destaque é de Gabriel de Paiva.