Nós precisamos de mártires

Por Igor Gonçalves Caixeta

 

Introdução

Em 2014, um movimento organizado em torno da tese da fraude eleitoral conseguiu unir a direita, radicalizá-la, e deslegitimar a escolha para chefe de Estado da maioria dos brasileiros. Hoje, tenta repetir tal feito. Os esquecidos passos iniciais desse movimento, recontados, a seguir, a partir de seus encontros e manifestações entre 2014 e 2018, foram registrados por pesquisadores, jornalistas e por seus próprios integrantes. Eles revelam personagens, linguagens, intenções e táticas da coalizão de direita que, por um tempo, se apoderou das instituições do Brasil, e daqueles que abriram-lhe passagem. A conspiração contra o sistema eleitoral não é apenas uma das recentes estratégias adotadas por Jair Bolsonaro e seus seguidores mais convictos. É também, há cerca de uma década, ponto de encontro e reencontro de muitos outros atores que deram sustentação ao autoritarismo de direita cultivado no Brasil.

Ao longo do século XXI, teses de eleições fraudadas em favor da esquerda foram propagadas e respaldadas por um emaranhado de ativistas direitistas, nacionais e internacionais. Seus projetos foram amplificados no Brasil por uma máquina de propaganda e ativismo em constante mutação. Por meio de vasta arquitetura midiática e intensa atuação nas ruas, nos tribunais, nas casas legislativas e nos quartéis, uma rede de militantes, empresários, ideólogos, políticos, juristas, jornalistas, militares e subcelebridades — muitos dos quais tentam, agora, se desvencilhar do governo Bolsonaro — normalizou discursos radicais de direita, como a oposição à validade democrática da esquerda. Contribuíram, assim, para a edificação de um movimento que tem como horizonte o renascimento militarizado e purificado da nação, e, como caminho, a mobilização de massas em defesa de certas elites e a glorificação e institucionalização da hierarquia, segregação e extermínio. Um movimento com tendências fascistas, mais ou menos declaradas.

A eleição presidencial de 2022 e as subsequentes campanhas de legitimação e deslegitimação de seus resultados abrem o novo capítulo de uma história cujo primeiro grande ato começou logo após a reeleição de Dilma. Tomando o caminho do golpe, concretizado em 2016, a direita recuperou e manteve, por seis anos, a hegemonia que havia perdido. Saída encontrada, nos últimos três pleitos presidenciais, frente à concorrência eleitoral imposta pelo Partido dos Trabalhadores, seu golpismo assumiu múltiplas faces. Algo a princípio difuso e sobretudo virtual mobilizou forças que alcançaram o impeachment de uma presidente e a prisão de um ex-presidente. Depois, o golpismo manteve ativa e radicalizada a base do governo Bolsonaro, que não teria sido eleito sem ele.

A última expressão golpista, que surgiu após a terceira vitória de Lula, parece, por ora, ter fracassado. Uma sequência de acampamentos, marchas, tentativas de locaute, de atentados a bomba, da destruição e ocupação de prédios públicos, dentre tantas outras formas de intimidação e de promoção do caos, foi insuficiente para devolver, aos golpistas, o controle sobre o Poder Executivo Federal. Essa face do golpismo pode se repetir, e não será sua última. Um golpe de Estado, afinal, é sempre um longo e complexo processo. Independente do teor que assuma no futuro, por trás da articulação do golpismo provavelmente estará, junto a outros grupos e indivíduos, quem primeiro organizou uma bem-sucedida reação à vitória da esquerda no passado recente: o movimento fascista que performa a luta contra fraudes eleitorais.

 

Dos blogs ao Facebook: a disseminação de uma ideologia

A confiança nas urnas eletrônicas, paulatinamente implementadas no Brasil desde 1996, é alvo de questionamentos antigos, que não se limitam a um lado do espectro político. Depois de atingir 9% dos votos nas eleições para a prefeitura do Rio de Janeiro, Leonel Brizola (PDT), importante figura da esquerda brasileira na segunda metade do século passado, contestou, no ano 2000, a ausência de recontagem dos votos no sistema de apuração eletrônica. Catorze anos depois, Protógenes Queiroz, então deputado federal do Partido Comunista do Brasil, anunciava em seu Twitter, sem oferecer provas, a razão pela qual não teria sido reeleito: fraude nas urnas eletrônicas. Foram, no entanto, grupos e personalidades da direita, os responsáveis por tornar a oposição ao processo eleitoral do Brasil uma efetiva pauta de mobilização e articulação política, questionando sobretudo as eleições presidenciais.

 

Nós precisamos de mártires
Cartazes contra as urnas eletrônicas na “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, no dia 22 de março de 2014, em São Paulo (SP), na primeira foto, e no Rio de Janeiro (RJ), na segunda (imagens do Le Monde Diplomatique/YouTube e de Daniel Silveira/G1)

No fim de 2014, após aparições pontuais em protestos que reuniram um punhado de manifestantes pertencentes a diferentes facções da extrema direita (de neointegralistas a intervencionistas), conspirações contra as urnas eletrônicas e o Tribunal Superior Eleitoral fizeram-se públicas nas ruas de diferentes cidades brasileiras. Dilma Rousseff, sua equipe e a maioria do eleitorado brasileiro haviam concretizado aquilo que grande parte de seus opositores julgava improvável, ainda que temesse profundamente: a reeleição do Partido dos Trabalhadores, mais um mandato somado aos 12 anos que haviam se passado de governo da centro-esquerda no Brasil. E uma vez que o voto popular recusou, novamente, a direita na presidência, a direita optou por recusar a escolha para presidente do voto popular. Na concepção golpista que começava a se difundir, a derrota dos segmentos direitistas seria fruto não de seu quarto fracasso consecutivo nas eleições presidenciais, mas de algum tipo de manipulação fraudulenta das urnas. Os votos no PT seriam, portanto, ilegítimos. Propulsora dos primeiros protestos contra a reeleição de Dilma após o segundo turno, esta argumentação encontrou base em ressentimentos, teorias conspiratórias e notícias falsas há algum tempo em circulação, sobretudo virtualmente.

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Protesto contra a reeleição de Dilma em Curitiba (PR), no dia 1º de novembro de 2014. Nos cartazes, “Impeachment Já”, “90% do P.I.B. não elegeu a Dilma!!!”, “Fora Toffoli”, “Fraude”, “Votar para que se a urna vota por você?”, “Olavo de Carvalho tem razão / Fora Foro de São Paulo” (imagens do YouTube [1][2][3]).
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“Investigação nas Urnas Já!”, “A verdade sobre o Foro de São Paulo / Fraude nas urnas! Quero o voto transparente!”, “Família, propriedade, liberdade. Fora Foro de São Paulo”, em cartazes no protesto contra a reeleição de Dilma, no dia 15 de novembro de 2014, em Goiânia (GO) (imagens do YouTube).
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“Fora PT / Quando não podemos confiar como nossos votos são contados, a democracia não existe”, “Fraude”, “Punição para o ladrão da PeTrobrás”, em cartazes fotografados em 29 de novembro de 2014, durante protesto contra a reeleição de Dilma, em São Paulo (imagem de Eduardo Knopp/Folhapress).

Em cantos obscuros da internet, mesmo a primeira vitória de Dilma já havia sido desacreditada. Posteriormente deletado, o texto “DEMOCRACIA HACKEADA – Como o PT fraudou as eleições 2010”, postado em novembro de 2010 na página wikileaks-Brasil (sem qualquer vínculo com a Wikileaks, apesar da apropriação da nomenclatura), foi compartilhado por outros blogs antipetistas ([1][2]) após a eleição da ex-presidente naquele ano. De forma confusa e sem evidências, a publicação alegava que hackers e programadores petistas teriam instrumentalizado o Software Livre (sistema operacional adotado pelas urnas eletrônicas em 2008) para fraudar as eleições em favor do PT.

Anos mais tarde, grandes plataformas de mídias sociais, cada vez mais conglomeradas e mais utilizadas por brasileiros, deram aos ativistas de direita, vanguardistas no uso das redes digitais, uma oportunidade de conquistar a visibilidade e subsequente relevância que almejavam, mas não alcançavam, por meio de seus sites, blogs e comunidades do Orkut. A tese da fraude eleitoral, como tantas outras pautas da direita, começou, então, a se popularizar. Nas eleições de 2014, a mesma teoria conspiratória veiculada quatro anos antes pela falsa Wikileaks foi compartilhada por cerca de 30 mil pessoas no Facebook, após ser republicada pela página do movimento Revoltados Online. Numa ferrenha disputa virtual, incontáveis robôs, perfis falsos e seguidores comprados somaram-se a militantes, jornalistas, candidatos, personalidades midiáticas e usuários comuns, que operavam em favor de diferentes campos políticos.

2014 foi um ano eleitoral de grande hostilidade, dentro e fora das redes virtuais. Marcaram o pleito a dramática morte do candidato a presidente Eduardo Campos (PSB) e sua substituição por Marina Silva (também do PSB em 2014), uma incipiente operação Lava Jato, a eleição do “congresso mais conservador desde 1964” (“recorde” batido em 2018), manifestações de rua anti e pró-Dilma, e a contestação, pela direita, das pesquisas de opinião que apontavam a reeleição da petista. Após a vitória do PT no segundo turno, destaca-se a rápida instalação das noções de incerteza institucional e de necessidade de um terceiro turno, uma faxina geral, ou mesmo uma intervenção militar, justificados pelo antipetismo extremado nas mídias tradicionais, nas ruas, e, principalmente, na internet.

Nós precisamos de mártires
Imagem que circulou nas redes sociais em 2014, o retorno de um boato sobre as eleições gerado na blogosfera da direita em 2010.

Por muito tempo, a operacionalização das mídias sociais pela direita foi ignorada por boa parte dos pesquisadores da área. Junho de 2013, por exemplo, foi, em geral, “considerado uma primavera de renovação nas iniciativas midiáticas independentes do espectro de esquerda”, segundo Marcelo Alves dos Santos Júnior, professor da PUC-Rio. Em sua tese de doutorado, Marcelo pontua que, no mesmo período, grupos de direita também fizeram-se presentes, ativos e visíveis nas redes. Um exemplo do pesquisador dá dimensão do crescimento virtual da direita: no mês dos protestos, a página reacionária Movimento Brasil Consciente recebeu quase o dobro de compartilhamentos no Facebook que o Mídia Ninja, coletivo jornalístico progressista que ganhou fama ao cobrir as manifestações.

Desde 2013, quando o país entrou em evidente ebulição política, páginas como a Movimento Brasil Consciente construíram, entre seus seguidores, a desconfiança em relação às urnas eletrônicas. Pouco adepta a evidências, a fan-page conspirava, na época, contra a empresa Diebold, fabricante das urnas brasileiras multada nos EUA (por razões não relacionadas às urnas eletrônicas). Sua campanha conspiracionista continuou no ano seguinte. No primeiro turno das eleições de 2014, a página compartilhou um vídeo gravado por um eleitor em frente a uma urna, que insinuava dificuldade para digitar 45. Legendas adicionadas ao vídeo pela Movimento Brasil Consciente alegavam, falsamente, lentidão da máquina quando os números eleitorais do PSDB eram pressionados, e ainda levantavam suspeitas sobre a barra de carregamento que surge na tela da urna antes da mensagem “FIM”, no término da votação. Um dia depois do segundo turno, ressuscitaram a tese da Diebold. Uma tosca associação dava certa lógica (ainda que conspiratória) à teoria disseminada num post de Facebook: entre o uso de urnas eletrônicas na Venezuela e no Brasil, e a acirrada vitória de partidos de esquerda nesses países em 2013 e 2014.

Nós precisamos de mártires
Posts de 5 e 27 de outubro de 2014 (dias de 1º e 2º turno), no Facebook das páginas de conteúdo antipetista e conspiratório Canal do Otário e Movimento Brasil Consciente.

Inúmeros boatos e teorias como essas invadiram diferentes mídias em 2014, depois que aproveitadores de todo tipo perceberam a disseminação de sentimentos de revolta no Brasil. Em setembro, o então candidato à presidência pelo PRTB, Levy Fidelix, defendeu, em entrevista ao Portal Terra, a implementação do voto impresso, que, na sua opinião, evitaria fraudes nas urnas eletrônicas (argumentação questionável). Após a vitória de Dilma, circulou, inicialmente no Facebook, a falsa acusação de um auto-intitulado mesário de Campina Grande (PB), que afirmava que “a urna de sua seção já estava com 400 votos a favor de Dilma antes da votação”. Ao mesmo tempo, no WhatsApp, difundia-se uma notícia-vírus: um falso relato da Polícia Federal confirmando as fraudes nas urnas, uma armadilha de cliques para infectar aparelhos de brasileiros. No YouTube, o Ficha Social, canal de boatos e notícias sensacionalistas, reportava, em vídeos apresentados por figuras como Kim Kataguiri: uma eleitora de São Paulo (SP) cujo voto teria sido utilizado por outra pessoa, uma urna em Porto Alegre (RS) que computaria votos sozinha, mais um dito mesário, para quem dinheiro teria sido prometido em troca da conivência com a adulteração de votos para o PT em 2006, dentre outras falsas denúncias e explicações espetaculares para falhas pontuais do sistema eleitoral ou confusão dos eleitores.

A eclosão aparentemente repentina da tese da fraude eleitoral no fim do pleito de 2014 foi, na verdade, o resultado de uma lenta construção discursiva, estatisticamente constatada no Facebook por Marcelo Alves. Às ligações dos atores responsáveis por popularizar essa e outras interpretações reacionárias sobre a política e a sociedade brasileira, o professor deu o nome de Rede Antipetista. Cada vez mais confundidos entre si, liberais, conservadores e expressões reconhecidamente radicais da direita, possuíam, em 2014, candidatos eleitorais e programas políticos ideais distintos. Encontravam, contudo, no antipetismo e em todos os ódios a ele articulados, o convite para uma parceria estratégica. Em meio à heterogeneidade desta gigantesca rede, um agente atingia centralidade ímpar, dada sua capacidade de influência intelectual: o escritor Olavo de Carvalho.

Nós precisamos de mártires
Post de Olavo de Carvalho em seu Facebook, em 5 de outubro de 2014.

Dos anos 1980 aos 2000, Olavo de Carvalho circulou da astrologia ao neofascismo, do Tradicionalismo sufi ao catolicismo neotomista, nas grandes mídias tradicionais e na internet, em clubes e associações de militares, católicos, evangélicos, judeus, empresários e advogados. Seu nome e ideias ocuparam diversos espaços de produção ideológica. Materializado por livros, entrevistas, artigos de opinião, apresentações, vídeo-aulas e polêmicas do Orkut, viabilizados e reproduzidos por uma infraestrutura embrionária da nova direita, o olavismo difundiu-se entre brasileiros. Antes mesmo de junho de 2013, quando a oposição ao PT ganhou fôlego inédito e a reorganização da direita começou a se evidenciar, o autor já havia fundado certo culto à sua imagem, e alguns de seus discípulos conquistavam cargos públicos e atenção midiática. Marcel van Hatten, deputado federal do Partido Novo, era um deles. Em evento antifraude de 2015, recordou como eram pequenos os grupos de estudo de Olavo de Carvalho quando foi um de seus alunos, aos “17, 18 anos”. Com 18, em 2004, o aprendiz de Olavo tornava-se vereador pelo PP no município de Dois Irmãos (RS).

Ao longo de sua formação em universidades e institutos militares, jovens estudantes inspirados pelo escritor fundaram alguns dos primeiros grupos ultraliberais e neoconservadores, responsáveis, em grande medida, pela renovação da direita no Brasil. Quando estudava geografia na USP, Celso Zanaro explicitou o radicalismo dessa nova militância, então uma tendência minoritária, mas rapidamente convertida em direita mainstream. Aos 22 anos, era membro da União Conservadora Cristã, coletivo com influências olavistas, integralistas [1], e integristas [2], e histórico de atuação junto a skinheads de extrema direita (nas primeiras marchas pró-Bolsonaro e em atos anti-maconha). Em 2011, em entrevista ao portal IG, Zanaro convocou brasileiros dispostos ao martírio em nome de ideais reacionários: “Estamos aqui para batalhar tanto intelectualmente quanto fisicamente”. “O que precisamos é de homens dispostos a morrer por seus valores”.

Três anos depois, a importância de Olavo de Carvalho como pensador, propagandista e estrategista da direita já era visível, ao menos para a própria direita e para alguns pesquisadores de sua atuação em sites como Facebook. Teorias por ele difundidas, como a tese da dominação da América Latina pelo PT e pelos “socialistas do Foro de São Paulo”, davam à militância antipetista uma explicação caso Dilma fosse reeleita, enquanto mantinham viva sua ansiedade e indignação. Perder as eleições, numa concepção olavista, era um passo na direção da implantação de uma ditadura comunista – há décadas em andamento, de acordo com o escritor, devido ao dito domínio (e subsequente degeneração) esquerdista da cultura, uma “estratégia gramsciana” aplicada em campos sociais amplos e diversos como educação e mídia.

Ao ser questionado pelo comediante Danilo Gentili sobre a possibilidade do PT fraudar as urnas eletrônicas, no programa do ex-pastor Caio Fábio D’Araújo Filho, exibido virtualmente no dia 13 de outubro de 2014, Olavo de Carvalho disse que o partido faria o que fosse necessário para se manter no poder – de fraude eleitoral a assassinato. No dia seguinte, num esvaziado ato pró-Aécio a duas semanas do segundo turno, o cantor Lobão e outros convidados, como o recém-eleito Coronel Telhada, ecoavam Olavo: denunciavam a “ditadura do politicamente correto” e a “atmosfera totalmente stalinista” instaladas no Brasil. Um dia após as votações que reelegeram Dilma, depois de desistir de fugir para Miami, restou a Lobão pedir orientação ao principal ideólogo da nova direita brasileira, que o atendeu, prontamente, numa reunião virtual.

 

Notas:

[1] Principais representantes do fascismo brasileiro nos anos 1930, compunham a Ação Integralista Brasileira (e outros grupos nas décadas seguintes, como o Partido da Representação Popular).

[2] Católicos ultramontanos, medievalistas ou fundamentalistas, com longa tradição de atuação pela extrema direita desde o século 19, da França ao Brasil.

 

A fotografia em destaque é de Nilton Fukuda.

Leia também a , a 3ª e a parte da série.

1 COMENTÁRIO

  1. Legal! Fora algumas poucas discordâncias, muito legal o autor ter compilado esses acontecimentos a esta altura. Ansioso pela próxima parte!

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