Nós precisamos de mártires

Por Igor Gonçalves Caixeta

 

Dos hangouts às ruas: a formação de um movimento

A primeira semana após a reeleição de Dilma Rousseff

Lobão: Nosso querido Aécio partiu de férias, foi pra fazenda, depois vai pra Paris, e isso deixou a rapaziada um pouco órfã. E agora a gente tem que dar uma unificada nas pessoas porque tá todo mundo muito… com muita motivação, ou mesmo depois dessa ressaca, mas é uma vontade, realmente, de elaborar uma reação do que nós faremos. Hoje mesmo aconteceu uma manifestação na Paulista, aconteceu no Brasil todo. Eu passo a palavra a você Olavo, e quero saber: o quê que nós vamos fazer a partir de agora?

Olavo de Carvalho: O próximo passo, evidentemente, é contestar a lisura dessas eleições. Porque os sinais de fraude são tantos e tão eloquentes: tem maquininha que aparece 400 votos pra Dilma, tem maquininha que vota sozinha, tem eleitor que vai votar e consta que ele já votou, embora não tenha assinatura dele, quer dizer, é só a maquininha que registrou. Tem tanta irregularidade! […] Então, olha, o próximo passo é o problema da eleição. “Ah, impeachment”, segunda etapa! Primeiro contestar a eleição. Primeiro investigar e punir essas fraudes. Punir na figura do senhor Toffoli que é o responsável único!

Lobão: E como invalidar o pleito? Tipo assim, não o impeachment, né? Mas tipo assim… não valeu nada, vamo de novo?

Olavo de Carvalho: Não, vamos por partes. Não pode ter ejaculação precoce. Primeiro pegar o senhor Toffoli, depois invalidar eleição, depois pedir impeachment, depois o fechamento do PT. Uma coisa de cada vez. Se você não cumpre as condições anteriores, se você não tem as premissas, você não tem as consequências. […] Então o primeiro passo é impugnar essa eleição, mostrar que houve fraude e punir o Toffoli e ir em cima do STF, né? Pedir a destituição do STF no Senado, do STF inteiro!

Nós precisamos de mártires
Imagem em miniatura da live postada no canal de YouTube de Lobão, em 27 de outubro de
2014.

Olavo de Carvalho, Lobão, e outros antipetistas, como Danilo Gentili e Rodrigo Constantino, encontravam-se pela ferramenta Google Hangouts desde 2013. A maioria de suas reuniões virtuais visava, à primeira vista, o debate de fatos políticos recentes. Serviam, no fim, como espaços pedagógicos, portais para a entrada e radicalização dentro do sistema de crenças da extrema direita. Estas lives, gravadas e posteriormente publicadas no YouTube, davam às teses de Olavo o alcance de outras personas midiáticas (famosas por angariar atenção nas redes sociais), que, por sua vez, desfrutavam da influência e do público olavistas, grandes o suficiente para tirar figuras como Lobão do ostracismo. Com a tese das fraudes, as lives transformaram-se em salas de articulação e planejamento mais concreto de um movimento golpista. O diálogo que abre a segunda parte desta reportagem é parte de um hangout gravado em 27 de outubro de 2014. Um “Bate-papo pós eleição com Lobão, professor Olavo de Carvalho e professor Bene Barbosa sobre a eleição no 2º turno, TSE e muito mais”, nas palavras de Lobão.

A vídeochamada pende entre a revolta – denúncia da dita corrupção, da maldade, da conspiração das esquerdas (camufladas, inclusive, de direita) – e a zoeira – repentinas piadas e ofensas de apelo sexual de Olavo e constrangedoras risadas de seus aprendizes. No hangout, a função de Lobão era mediar a discussão, comentar notícias e boatos e citar alguns dos livros e posts de Carvalho. Ao ideólogo, coube anunciar a fraude eleitoral, “comprovada” por nada menos que boatos de internet, teorizar o Brasil à luz de outras conspirações, como a teoria do marxismo cultural e do socialismo fabiano, oferecer consultoria a Aécio (“eu sugiro, seu Aécio Neves, da próxima vez você perguntar pra mim o que você deve fazer, que eu lhe dou a receita infalível pro senhor chegar na presidência, e não cobro um puto dum tostão, e não aceito cargo de recompensa!”), tratado, a todo momento, como liderança contingencial, e propor algumas metas para o movimento que se opunha aos resultados democráticos. Eram elas: naturalizar a tese da fraude, contestar a vitória da esquerda, derrubar Dilma, criminalizar o PT, e remover os ministros do STF. Se os três primeiros alvos foram atingidos até 2016, os outros dois mantiveram-se como campanhas recorrentes da extrema direita até o presente.

Bené Barbosa, o terceiro participante do hangout, é, como Lobão e o falecido Olavo, bem estabelecido no ecossistema midiativista da direita, e também viu alguns de seus objetivos progredirem com a ascensão reacionária. Presidente do Movimento Viva Brasil e lobista pró-armas, Barbosa atua contra o desarmamento desde a década de 1990. Dos anos 2000 até hoje, vem se movimentando no Senado, no Ministério Público, na mídia tradicional e nos meios alternativos da direita, como indicam seu canal no YouTube, que reúne recortes dessas participações.

Recebido como especialista na temática das armas, passou por todas as grandes redes de televisão: Globo, SBT, Record, Band e Cultura. Pregou, também, no rádio e na internet. Numa chamada de vídeo, em uma de suas últimas entrevistas para a Jovem Pan (que amplificou suas ideias em pelo menos sete ocasiões desde 2005), Bené ostentou armas, uma bandeira Gadsden [1], e decepção em relação à moderação que enxergava na campanha armamentista do governo Bolsonaro. É convidado frequente, ainda, para discursar para públicos de canais que tendem ao libertarianismo estadunidense, em espaços como o Flow Podcast e entre sobrevivencialistas. Barbosa é, em resumo, um grande fomentador do mercado de armas e da cultura de milícias tão bem estabelecidos nos EUA.

Seu armamentismo talvez não pareça radical se chamado de “segurança privatizada” em eventos como o “Fórum da Liberdade” [2], o que ocorreu quando lá palestrou em 2013. O que Barbosa constrói, contudo, é a projeção de uma grande guerra, ainda mais intensa, ampla e naturalizada que aquela que já atormenta e dizima sobretudo pobres, negros, indígenas, e ativistas ou representantes destes e doutros povos estigmatizados e explorados no Brasil. Um projeto de país ancorado numa prerrogativa apocalíptica, uma profecia auto-realizável que Barbosa explicou no hangout de outubro de 2014: “O atirador esportivo, o caçador, é a última linha de frente, é o last hope do negócio. Onde tudo fracassar é o cidadão com as suas armas que vai defender o país, todo mundo sabe disso”. Após a reeleição de Dilma, para ele, ficou “óbvio que houve fraudes”. O momento era ideal para defender o armamento da população, que poderia ser vendido como estratégia de prevenção da ditadura comunista que Olavo tanto profetizara.

Bené Barbosa: É impossível você pavimentar a estrada do totalitarismo se você não tiver uma população desarmada, e é exatamente isso que tá acontecendo. […] Esse governo que aí está não aceita não possuir o monopólio da força, isso é muito claro e óbvio. E nessa leva tão entrando os cidadãos, tão entrando os atiradores, os colecionadores, os caçadores, inclusive os policiais! Já se discute inclusive a proibição de compra de armas particulares por policiais. Então eu gostaria que o Olavo comentasse um pouquinho mais sobre isso, porque eu acho que é muito importante a gente reforçar essa ideia. Não importa se você quer ter uma arma ou não, se você vai comprar uma arma ou não. O importante é o que está se implementando no Brasil não é o desarmamento contra a violência, é o desarmamento realmente pra dominação da população brasileira.

Nem a ideologia olavista nem o próprio ideólogo eram estranhos para Bené Barbosa, que se introduz ao público do hangout recordando um encontro com Olavo de Carvalho em 2005, na cidade de Curitiba. Em resposta ao pedido de Barbosa citado no trecho, Olavo ofende as Forças Armadas, que, para ele, deveriam ter se rebelado contra as campanhas de desarmamento do governo petista. A razão desta suposta cumplicidade? A boa e velha infiltração do Foro de São Paulo, que alcançaria até mesmo grupos famosos por seu anticomunismo, como os militares. Carvalho e Barbosa propunham, então, que somente mais armas e mais balas nas mãos de policiais e da população impediriam um crescente domínio de forças externas, vindas de países como Cuba e Venezuela, operadas a nível nacional pela “tirania do PT”. Foram adiantadas, no primeiro hangout antifraude de 2014, algumas das falas repetidas por Bolsonaro em palanques Brasil afora durante seu governo, geralmente acompanhadas de insinuações a fraudes nas urnas e nas eleições. Vejamos, como exemplo, parte de seu discurso de 11 de maio de 2022, após passeio de moto com apoiadores custeado por verba pública, em evento do agronegócio na cidade de Maringá (PR):

Jair Bolsonaro: Tenho presente comigo aqui o atual ministro da Defesa, General Paulo Sérgio, e o meu último ministro da Defesa, General Braga Netto, que bem sabem a importância de que uma nação bem armada é uma forma de evitar qualquer interesse externo sobre a sua pátria. E o Brasil tem uma área que é cobiçada por muitos países, que é nossa região amazônica. E para vocês, família brasileira, a arma de fogo é uma defesa da mesma, e é um reforço para nossas Forças Armadas, porque o povo de bem armado jamais será escravizado. Somente os ditadores temem o povo armado. Eu quero que todo cidadão de bem possua sua arma de fogo para resistir, se for o caso, à tentação de um ditador de plantão. […] Graças a Deus, tenho o reconhecimento de grande parte do povo brasileiro. Dizer que essa maneira como fui recebido aqui, como em qualquer outro lugar do Brasil, é a verdadeira pesquisa popular. A vontade de vocês tem que prevalecer, e todo meu Ministério está empenhado em defender a nossa constituição e a nossa liberdade. Todos têm que jogar dentro das quatro linhas. Nós não tememos resultados de eleições limpas. Nós queremos eleições transparentes, como a grande maioria, ou porque não dizer, a totalidade do seu povo.

De 2014 a 2022, das análises na internet de um guru e um instrutor de tiro aos discursos de um presidente da República para seus correligionários, verificamos o mesmo conspiracionismo, anticomunismo, voluntarismo, (para)militarismo, aceleracionismo e culto à violência. Traços comuns de experiências fascistas, estudadas por pesquisadores como Robert Paxton, autor de A Anatomia do Fascismo. Publicada pela primeira vez (no idioma original) em 2004, a obra tornou-se uma importante referência sobre o fascismo, ao propor uma abordagem processual bastante aprofundada aos estudos do fenômeno. No livro, Paxton descreve a evolução do ciclo fascista em cinco fases: a formação de um movimento, seu enraizamento no sistema político, a instalação pelo movimento de uma ditadura, o exercício desta ditadura, e a radicalização ou entropia do regime. Mas não pensemos no cultivo do fascismo como um processo instantâneo ou rígido. Além de desenvolver-se gradualmente, o ciclo do fascismo pode não se completar, movimentos ou regimes fascistas podem retornar a fases anteriores, e diferentes estágios podem ocorrer simultaneamente.

Lamentavelmente, no Brasil, o fascismo parece ter se tornado mais popular como opção política (ainda que para um minoria da população) do que como categoria analítica. Os termos usualmente empregados para descrever a tendência ideológica que, por um tempo, tomou conta do governo federal e dos movimentos em sua órbita, são “populismo de direita” e “bolsonarismo”, o populismo de Bolsonaro. Uma razão de governo perigosa, mas não tão radical quanto o fascismo, que teria ficado no passado. Há, contudo, autores como Armando Boito Júnior, que defende a tese de que o fascismo se desenvolve no Brasil e utiliza uma definição bastante sucinta do fenômeno: “uma ditadura cujo regime político é um regime reacionário de massa”. O professor da Unicamp complementa: “se o fascismo é esse regime político, também deve ser denominado fascista o movimento social que luta pela instauração desse regime e a ideologia que mobiliza esse movimento e legitima a ditadura fascista.” Segundo Boito Júnior, o fascismo é um projeto geralmente semeado pelas classes médias e instrumentalizado por grandes empresários, que percebem-no como uma arma contra os trabalhadores e os movimentos democráticos.

Já a italiana Nadia Urbinati, no livro Me the People (ainda sem tradução para o português), de 2019, volta sua atenção ao populismo, que difere do fascismo. Para a autora, o populismo pode ser igualmente reacionário e, como o fascismo, também se vale da mobilização de massas. Na sua visão, trata-se, entretanto, de um sistema de governo que não rompe com os procedimentos democráticos e nem emprega violência inconstitucional. Apresentando-se como representante, messias, ferramenta de vingança do povo, como o principal inimigo de uma elite saqueadora, o populista utiliza a democracia para fins não democráticos, sem realmente destruí-la, já que mantém aberta a possibilidade do debate e de eleições minimamente disputáveis, na concepção de Urbinati.

A nós, brasileiros, cabe perguntar: quando exatamente é que a democracia é rompida? Ela não se dilacera uma vez que, além do resultado das urnas, uma série de direitos humanos e civis são ameaçados? E quem é que a violência (para)estatal deve atingir no Brasil para ser considerada inconstitucional? Uma infinidade de massacres de cidadãos brasileiros subjugados não seria suficiente? Não teríamos vivido, sobretudo na última década, algo semelhante às primeiras fases do processo de fascistização analisado por Paxton? Não assistimos, há algum tempo, a popularização de uma ideologia e a ascensão de um movimento como os que descreve Boito Júnior?

O que hoje é perceptível – um perigoso movimento de massas, uma máquina de ameaças e tentativas periódicas de destruição de um combalido Estado democrático de direito – começou como uma ideologia praticamente idêntica ao “bolsonarismo”. Inicialmente desorganizada, contudo, e mesmo subestimada por cientistas políticos. Nem por isso menos capaz de ser rapidamente incorporada ou pelo menos tolerada pelos interessados no fim prematuro do segundo governo de Dilma. Marcelo Alves afirma, em sua dissertação, que após a derrota do PSDB em 2014, “o principal tema da Rede Antipetista se tornou a fraude eleitoral.” Como na internet, o desenvolvimento da tese da fraude nas ruas foi gradual. Quem visse o primeiro protesto contra a reeleição de Dilma, realizado por pessoas que, se não acreditavam, no mínimo apostaram nas fraudes eleitorais, dificilmente imaginaria a proporção que a radicalidade reacionária que ali aflorava tomaria na sequência.

Nós precisamos de mártires
Primeira manifestação contra Dilma após sua reeleição, na Zona Oeste de São Paulo, em 27 de
outubro de 2014 (imagens de Roney Domingos/G1).

Não foram encontradas notícias de manifestações “no Brasil todo”, como sugeriu Lobão, em 27 de outubro de 2014, mas um pequeno protesto realmente aconteceu em São Paulo. No ato, que prometia 20 mil pessoas e reuniu entre 20 e 30 moradores, estudantes e trabalhadores da região da Faria Lima, foram registradas denúncias contra as “urnas fraudatórias” e a “opressão à classe média”, e apoio ao “fim da corrupção”, ao impeachment de Dilma, à volta dos militares, à insurreição armada, e à separação do Brasil entre os estados que votaram no PT e os que preferiram o PSDB. Em sua primeira mobilização fora da internet, o movimento antifraude mostrava-se radicalizado, disposto a subverter as eleições e outras garantias constitucionais, como os direitos humanos e as fronteiras nacionais, mas ainda numericamente inofensivo. Para sua sorte, o apoio e logística necessários para que começasse a se massificar nas ruas não tardou a chegar.

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Cartazes antifraude na segunda manifestação contra Dilma após sua reeleição, na Avenida
Paulista, em 1º de novembro de 2014 (imagens do YouTube [1][2][3][4]). Na última imagem, a
intimidade entre forças de segurança e manifestantes que marcou a nova leva de protestos da
direita.

Quatro dias depois de oficializada a vitória do PT, o PSDB pediu ao Tribunal Superior Eleitoral uma auditoria da apuração dos votos e do sistema eleitoral brasileiro, a fim de “verificar a lisura das eleições”. Como a revolta pós-eleição de Olavo, o pedido do PSDB de 30 de outubro de 2014 foi justificado por boatos sobre fraudes propagados nas redes sociais. E como o líder intelectual da extrema direita, a centro-direita que perdera o segundo turno das eleições decidiu incendiar a militância antipetista e corroborar com a desconfiança e pouco caso em relação aos métodos democráticos. No dia seguinte, Reinaldo Azevedo, uma das principais personalidades antipetistas em 2014, comentou a possibilidade de fraude e algumas denúncias e boatos na Jovem Pan e na Veja, onde publicou o texto de título “PSDB faz bem em pedir auditoria das urnas; é crescente a desconfiança de milhões de eleitores; descrença também reflete inconformismo com a reeleição de Dilma”. No mesmo dia, páginas e sites como Internautas Cristãos anunciavam protestos contra a reeleição do PT em mais de trinta cidades ao redor do Brasil. Era declarada a retomada da mobilização da Rede Antipetista. A seguinte passagem da chamada para os atos, encontrada no site religioso, sugere a incorporação de teorias e metas de Olavo pelos divulgadores do dia de manifestações: “Inconformados com a má administração, os escândalos de corrupção, as estranhas relações do Partido dos Trabalhadores com entidades internacionais e a forte suspeita de fraude nas urnas eletrônicas, os brasileiros prometem tomar as ruas do país em protesto pedindo a cassação do mandato da presidente e o fechamento do PT.”

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Felipe Andreoli, repórter do CQC (Rede Bandeirantes), tentou cobrir o protesto de 1º de
novembro de 2014 em São Paulo, mas foi hostilizado por pessoas que gritavam “Fora PT” e
“Foro de São Paulo”, e acusavam-no de trabalhar para o governo (imagens do YouTube).

Convocados pelas redes sociais, distintos segmentos da direita somaram forças a partir do dia 1º de novembro. De tendências liberais, conservadoras, armamentistas, intervencionistas, separatistas, cristãs e paganistas, uma porção de grupos farejava o potencial disruptivo despertado na semana que sucedeu as eleições, e outros tantos eleitores de Aécio queriam dar vazão à revolta consequente de uma derrota não aceita. A rede de boatos, conspirações e posicionamentos virtuais descrita até aqui começava a tomar corpo fora da internet, mas não sem ela.

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Manifestação em defesa da auditoria nas eleições, que reuniu cerca de 350 pessoas em Brasília
(DF), no dia 1º de novembro de 2014 (imagem do Correio Braziliense).
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Manifestação contra Dilma após sua reeleição no dia 1º de novembro de 2014, no Rio de Janeiro.
Em frente à Assembleia Legislativa, manifestantes gritavam “fora PT”, “fora comunistas” e
“fraude nas urnas” (imagem do YouTube).
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Manifestação contra a reeleição de Dilma no dia 1º de novembro de 2014, em Belo Horizonte
(MG). No cartaz amarelo, “Auditoria nas urnas já!” (imagem do YouTube).
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“Fraude na urna”, em manifestação contra a reeleição de Dilma no dia 1º de novembro de 2014,
em Blumenau (SC). Participantes do ato gritavam “não é mole não, o PT dividiu uma nação” e
“fiscalização, o PT roubou essa eleição” (imagem do YouTube).

Em São Paulo, segundo a pesquisadora Camila Rocha, o protesto foi organizado através de evento de Facebook criado por Paulo Batista, candidato a deputado estadual pelo PRP com a campanha do “Raio Privatizador”, que rendeu-lhe muitos memes mas poucos votos em 2014. Apoiada por Olavo de Carvalho, a manifestação recebeu 100 mil confirmados online, mas só contou com cerca de 2,5 mil participantes. Alguns dos mais conhecidos rostos e grupos da nova direita, já proeminentes nas redes sociais, marcaram presença, tentando coordenar e seduzir o movimento: os Revoltados Online, Lobão, Kim Kataguiri, Eduardo Bolsonaro. Munido de um megafone, Renan Santos, um dos fundadores do Movimento Brasil Livre, foi registrado por uma videorreportagem do protesto feita pelo Diário do Centro do Mundo (DCM). Em cerca de cinco anos, o ativista e empresário descreveria Olavo como o principal problema do governo Bolsonaro, cuja candidatura Renan havia apoiado. Mas em 2014, o liberal mergulhou de cabeça no discurso olavista. No vídeo do DCM, vemos Renan acusar o PT, partido que acabara de ganhar as eleições, de entregar a democracia brasileira “na mão de um conluio de tiranos da América Latina, isso é muito claro, todos nós sabemos, que é o Foro de São Paulo”.

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Com crachá dos organizadores do evento, Renan Santos, um dos fundadores do MBL, ao lado do
irmão, no protesto de 1º de novembro de 2014 contra a reeleição de Dilma, em São Paulo
(imagem do YouTube).
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O irmão de Renan, Alexandre Santos, um dos fundadores do Movimento Brasil Livre, em
entrevista para o Jornal da Gazeta, em 1º de novembro de 2014, na manifestação contra a
reeleição de Dilma em São Paulo (imagem do YouTube). Alexandre era dono da produtora
responsável pela campanha eleitoral de Paulo Batista, criador do evento do protesto no
Facebook.

Num outro momento do protesto, em meio a gritos de “uh, é Bolsonaro!”, ao lado de Kataguiri e Santos, o recém-eleito deputado estadual pelo PSC de São Paulo, Eduardo Bolsonaro, anunciava aos manifestantes que seu pai seria candidato nas próximas eleições presidenciais. Trajando uma Glock na cintura, Eduardo demonstrou aderência ao movimento que veiculava a farsa da fraude, ao afirmar para o Estadão: “nenhum de nós confia nas urnas eletrônicas”. Desconhecidos também se fizeram ouvir na grande mídia: “São Paulo é o nosso país!”, “Esse governo é ilegítimo! Ele fraudou as urnas!”, “Foram mais de três milhões de votos só numa urna… gente, isso é golpe!”, “Não temos nenhum conhecido que seja a favor do PT, por isso também achamos estranho que Dilma tenha ganhado”, “Com esse comunismo, com a implantação do bolivarianismo, Venezuela já tá aqui!”, “Viva a PM!”. Vilões e heróis salvadores, cores e bordões dos protestos multiplicavam-se de volta nas redes sociais, através de publicações da imprensa, de fanpages e dos próprios manifestantes, que compartilhavam fotos e vídeos dos atos em sites como Facebook e YouTube.

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Homem entrevistado pelo DCM durante protesto em São Paulo contra a reeleição de Dilma, no
dia 1º de novembro de 2014 (imagem do YouTube).

As mais extremas vertentes da direita brasileira, agora, tinham plataformas e representantes. Sua radicalidade tornava-se cada vez mais pública, mesmo que, por vezes, codificada. O primeiro protesto oposicionista com milhares de participantes após a reeleição de Dilma contou com gente como um anônimo, entrevistado pelo DCM, que poderia passar despercebido, não fosse por alguns de seus adereços. Além do adesivo escrito “Fora Dilma” usado como uma sugestiva braçadeira, ele levava no peito um colar com um pingente de mjölnir (o martelo de Thor na mitologia nórdica), símbolo comumente adotado por neonazistas e supremacistas brancos. Questionado pelo repórter sobre quem gostaria que ocupasse o lugar de Dilma, o homem respira fundo e responde: “Bolsonaro”.

 

A segunda semana após a reeleição de Dilma Rousseff

O pedido de auditoria das eleições no dia 30 de outubro de 2014 foi o primeiro flerte do PSDB com a extrema direita após a reeleição de Dilma. As manifestações do dia 1º de novembro, sua resposta. Ela mostrava-se aberta a cooperar com a direita tradicional, convocava Aécio Neves à ação, mas tinha projeto, estilo e pautas próprias, a começar pela mais urgente: a consolidação do questionamento do resultado das eleições. Durante todo o processo eleitoral, a Rede Antipetista já havia emprestado sua máquina de propaganda a Aécio, operando a campanha não oficial do candidato na internet. Preencheu o vácuo deixado por seus coordenadores de campanha: o ex-deputado Xico Graziano, retirado do cargo a três meses do pleito por sua incapacidade de estabelecer uma estratégia para o tucano nas redes sociais, e Agripino Maia, à época presidente nacional do DEM, que substituiu Graziano mas sequer acreditava que Aécio chegaria ao segundo turno.

Nessas eleições, vertentes da direita abandonaram a competição interespecífica, optando pela predação conjunta da esquerda e de seus ideais. Agora, a extrema direita, por si só múltipla, chamava a direita já estabelecida para parasitarem a democracia mutualisticamente. Aos ainda interessados na legalidade, golpistas como Olavo de Carvalho ofereciam a difamação. Assim aprendeu, rapidamente, Xico Graziano. Depois de sofrer ataques virtuais, no dia 2 de novembro, por se posicionar contra o impeachment, causa que denominava autoritária, Graziano descreveu os agressores e o movimento a que se vinculavam, num trecho de publicação em seu Facebook:

Xico Graziano: Existe no Brasil uma ideologia própria da direita que se encontra desamparada do sistema representativo, quer dizer, sem partido político. Sua força se mostra na rede da internet. Essa corrente luta para destruir o PT, acusando-o de querer implantar o comunismo por aqui. Defendem as liberdades individuais, combatem tenazmente a corrupção organizada no poder, desprezam totalmente as lutas sociais, mostrando-se intolerante com o direito das minorias. O Deputado Bolsonaro e o ensaísta Olavo de Carvalho são seus expoentes. Tudo bem. Acontece que, no período das eleições presidenciais, essa tendência se articula no seio do PSDB, trazendo para nosso partido suas causas. É normal existirem as alianças eleitorais, e para tal existe o segundo turno. O problema surge quando os militantes da direita exigem que nós, os sociais democratas, encampemos sua ideologia, o que seria um absurdo.

Ao que o ensaísta respondeu em meio a insultos, num hangout com Lobão de 3 de novembro de 2014, que os que qualificavam seu movimento como autoritário, estes sim, eram os verdadeiros teóricos da conspiração. Mesmo os integrantes mais radicais do movimento, argumentava Olavo em seu nome, não almejavam um regime militar. Junto à causa separatista, os pedidos de intervenção registrados pela mídia no último protesto eram indesejados por Lobão e Olavo, que preferiam que o movimento não fosse visto como extremista. Ainda assim, o ideólogo argumentava que, frente ao que descrevia como um cenário de fraude e dominação total imposto pelo PT,

Olavo de Carvalho: […] você não tem mais a quem recorrer. Então alguém na massa pede socorro às Forças Armadas, é porque não tem outra alternativa! Os caras nos estrangulam, e quando você pede socorro pras Forças Armadas, ah, você é um fascista, você é um nazista, você é um racista, é assim!

Não eram extremistas. Na live de avaliação dos protestos do dia 1º, Lobão reclama da perda da virilidade no Brasil, onde o patriarcado teria sido substituído por “um monte de feminista xota seca de axilas cabeludas”. Olavo justificava clamores intervencionistas, chamava legalistas, como Graziano (que pouco depois aderiu ao impeachment), de covardes, e trazia sustentações cada vez mais mirabolantes para a tese das fraudes eleitorais. Seu movimento descredibilizava os votos vitoriosos de mais de 54 milhões de brasileiros, atacava jornalistas nas ruas, alguns de seus membros se preparavam para uma guerra civil. Mas seguramente, não eram extremistas.

Olavo de Carvalho: O motivo pra passeata é o seguinte: houve fraude nas eleições, em primeiro lugar. Não é possível uma eleição secreta na qual somente 23 pessoas têm o controle da eleição toda. […] A fraude tá mais do que comprovada, vai ser nas maquininhas dessa firma Smartmatic, que é uma firma criada em Havana, criada pelos cubanos. O proprietário é venezuelano mas ela é um negócio cubano!

Para muitos, o radicalismo reacionário era acessório… o preço cobrado pelo enfraquecimento da esquerda e a subversão do voto popular. Os executores da reação entendiam que o antipetismo seria a porta de entrada da direita de volta ao governo, e a tese da fraude eleitoral, a chave. A partir daquele momento, contra o PT, para aquele golpe, a direita teria de operar como coalizão. Suas facções mais radicais, por sua vez, começavam a se perceber como capazes de estabelecer mais articulações entre si, e de pautar a imprensa e os políticos liberais e conservadores. De dirigir, se possível, o processo golpista.

Lobão: O próprio Bolsonaro falou durante a passeata uma coisa muito… nós nos olhamos, ele falou, imagina, Lobão, nós dois aqui, poxa, juntos, tanta gente tão diferente… Tava o Bené Barbosa no carro, o Paulo Batista, uma série de pessoas. Quer dizer, era uma sociedade civil, ali, todo um mosaico, né? E ele foi muito claro nesse sentido, ele falou assim, olha, nós somos muito diferentes, durante a passeata, nós tamos aqui com todas as nossas diferenças, depois a gente quebra o pau, agora a gente tá fazendo uma ação focada em tirar o PT do poder. Foi muito claro, muito objetivo em falar isso. Agora, este ponto, exatamente esse é o foco. Dia 15 vai haver uma nova passeata, que eu espero, tenha o quíntuplo de pessoas na rua. Mas o que eu quero dizer, e eu acho que dentro desse hangout a gente precisa frisar, é ter um foco numa coisa objetiva, e um alinhavo nesse foco. Porque senão fica o tiroteio com um monte de bala vindo pra tudo quanto é lado…

Olavo de Carvalho: Foco é fraude eleitoral… fraude eleitoral e impeachment! Fraude eleitoral e impeachment imediato! O impeachment por causa desse negócio…

Lobão: O STF engaveta depois qualquer coisa, não é?

Olavo de Carvalho: Claro, claro. No momento não tem que ter um programa de ação, programa de governo, coisa nenhuma. Nós temos que concentrar no objetivo negativo, apenas o que nós não queremos. Porque você fazer um país de 200 milhões de pessoas entrar num acordo quanto àquilo que quer, é impossível. Mas a rejeição é praticamente unânime! Se não fosse essa falsificação nos votos, o Aécio Neves teria pelo menos 70% dos votos.

Nesta segunda fase de atuação, que sucedeu uma campanha essencialmente virtual anterior à vitória de Dilma, o movimento antifraude tinha uma missão a curto prazo: unir antipetistas e mobilizá-los em oposição ao resultado das urnas. O movimento era parte de uma onda maior de insatisfação apropriada pela direita. Entre os que surfavam nesta movimentação histórica, a oposição ao Partido dos Trabalhadores era o único consenso absoluto.

Como os cartazes, gritos e organizações presentes no último protesto, o manifesto de retorno de um dos principais grupos da nova direita, o Movimento Brasil Livre, postado em sua página de Facebook em 4 de novembro de 2014, sugere que a pauta antifraude, apesar de essencial para o estabelecimento de um terceiro turno, era apenas uma dentre as várias causas defendidas pelos que militavam contra o PT. As intenções definidas na publicação parecem ter sido estipuladas às pressas para a nova leva de protestos que se anunciava, e não acompanharam o movimento ao longo de sua trajetória. Era o “objetivo negativo” implícito o que realmente importava.

Nós precisamos de mártires
Manifesto do Movimento Brasil Livre de 4 de novembro de 2014.

Fundado em junho de 2013 por Fábio Ostermann [3], o MBL renasceu, no fim de 2014, sobretudo como um movimento contra a corrupção, não apenas da Petrobrás, mas também do processo eleitoral. Como parte, portanto, do movimento antifraude, mesmo que essa não fosse sua principal pauta. Não há qualquer menção ao impeachment em seu manifesto. Ser pró-impeachment, originalmente, era ser contra a fraude – difundida na mídia (em especial na internet), teorizada por Olavo de Carvalho, e institucionalizada pelo pedido de auditoria do PSDB. A condição de existência do primeiro “objetivo positivo” do golpe, o impeachment de Dilma, foi um objetivo negativo, a rejeição de eleições supostamente fraudadas. Como outros organizadores e participantes dos protestos, o MBL evocava tal reivindicação. Nem mesmo a defesa do liberalismo econômico, causa pela qual o movimento ficaria conhecido, figurava entre suas demandas iniciais. Mas lá estava, em seu manifesto, o pedido de “auditoria externa das urnas eletrônicas utilizadas nas eleições”.

Nós precisamos de mártires
“O MBL” em foto de 1º de dezembro de 2014: um empresário liberal, um instrutor de tiro
anarcocapitalista, um católico tradicionalista, um youtuber liberal e um comentarista político do
SBT. Desde a eleição de 2014, com exceção do ativista pró-armas, todos os presentes na foto
foram candidatos a cargos do legislativo por diferentes partidos de direita (mas só os dois
últimos foram eleitos).

O caráter inicialmente indefinido e abrangente adotado pelo MBL mostrou-se útil para o grupo na conquista de apoiadores. Uma publicação virtual do dia 7 de novembro feita por Hermes Rodrigues Nery, coordenador do Movimento Legislação e Vida, indica que não eram apenas jovens ultraliberais que se identificavam com o movimento. Na foto do protesto do dia 1º que ilustra o post do site Mídia Sem Máscara (criado por Olavo de Carvalho), também estão presentes, além de Kim Kataguiri e Paulo Batista, o próprio Nery, militante anti-aborto, o suplente de deputado Paulo Eduardo Martins, e o já citado Bené Barbosa, ativista do armamentismo, todos descritos como integrantes do MBL. Também chama atenção na publicação de Nery o trecho a seguir, que repete um nome anteriormente citado por Olavo de Carvalho – Smartmatic – e introduz outro que logo ganharia certa relevância no movimento antifraude – o de Dalmo Accorsini.

Hermes Nery: Há tempos que especialistas e técnicos vem alertando da vulnerabilidade do sistema das urnas eletrônicas, nada confiável, não adotado em outros países, a não ser os manipulados pelo Foro de São Paulo. Dalmo Accorsini, por exemplo, denuncia que a empresa SMARTMATIC “com vínculos comprovados com o governo de Cuba e Venezuela, operou abertamente nas eleições brasileiras”, favorecendo assim o PT.

O primeiro escolhido ou auto-proclamado especialista a compor o movimento antifraude não foi um cientista da computação, engenheiro da computação, ou técnico em informática. Não foi alguém como Diego Aranha, professor universitário que, apesar de nunca ter afirmado a existência de fraudes nas urnas eletrônicas brasileiras, fala publicamente sobre sua possibilidade há anos, o que lhe conferiu certa entrada na mídia antipetista. Para integrar o movimento era preciso mais que conhecimento técnico e científico: o candidato deveria compartilhar da visão de mundo conspiratória de seus membros. Apto ao posto, surgiu Dalmo Accorsini, brasileiro que vive em Miami, cuja especialidade, talvez, fosse descobrir boatos antigos. O que o tornou uma certa referência dentro da militância antipetista foi sua defesa e propagação da tese da conspiração da Smartmatic.

A empresa de automação eleitoral ofereceu serviços pontuais ao TSE, mas não teve a centralidade nas eleições sugerida pelas conspirações da extrema direita, e não há qualquer evidência de que tenha se envolvido com fraudes no Brasil. Contudo, sua atuação em eleições venezuelanas, e o fato de que seus fundadores nasceram na Venezuela, tornaram-na alvo recorrente de suspeitas e de denúncias de fraudes eleitorais, não só no Brasil. Acusações contra a empresa vindas da oposição venezuelana e norte-americana ao chavismo datam de, respectivamente, 2004 e 2006. Por aqui, a polêmica da Smartmatic foi introduzida por Graça Salgueiro, escritora olavista que traduziu para o português um texto conspiratório atribuído a um ex-militar venezuelano. A tradução foi publicada no Mídia Sem Máscara em abril de 2013, próximo às eleições que primeiro elegeram Nicolás Maduro na Venezuela. Em 2014, coube a Accorsini propagar a tese do envolvimento da Smartmatic com fraudes eleitorais, desta vez no Brasil.

Nós precisamos de mártires
Imagem em miniatura da live postada no canal de YouTube de Lobão, em 15 de novembro de
2014.

No dia 10 de novembro, Accorsini se juntou a Olavo de Carvalho, Lobão, Kim Kataguiri, Bené Barbosa, Hermes Nery, Marcello Reis e outros ativistas de direita (que ficaram pelo caminho da história), num hangout com o intuito de estabelecer as diretrizes do terceiro dia de protestos após a reeleição de Dilma, marcado para o feriado da Proclamação da República. A pauta da fraude eleitoral ainda norteava os organizadores das manifestações, como demonstram algumas de suas falas no encontro ao vivo. Lobão, como sempre, abriu a reunião: “Nós temos um único intento, que é declarar a inelegibilidade da Dilma Rousseff, com essa fraude que aconteceu nas eleições e todas as falcatruas que o PT vem cometendo.” O fundador do movimento Revoltados Online, Marcello Reis, continuou: “O povo, automaticamente, depois do dia 26, se sentiu enganado, se sentiu lesado com as urnas eletrônicas.” Os “mais de 8 mil emails relacionados a fraudes” que sua organização teria recebido provariam sua tese. Enquanto Kataguiri se dizia favorável à auditoria das eleições em lugar da recontagem dos votos, que, para ele, poderia ser igualmente manipulada, Reis se posicionava contra auditar o processo eleitoral, defendendo a destituição imediata de Dilma e o “voto no papelzinho” nas próximas eleições.

Sobre outras pautas, os homens procuraram se aproximar de um acordo. Definiram que não pediriam uma intervenção militar. Para Reis, os militares já teriam agido se assim quisessem. Era tarde demais para algo do tipo, de acordo com Olavo: se as Forças Armadas intervissem, o Foro de São Paulo (cuja principal arma, segundo Dalmo, era a Smartmatic) estaria pronto para invadir o Brasil, numa guerra internacional temida pelos militares. Mas “o povo” não teria medo, segundo Olavo, e derrubaria, ele mesmo, a presidente Dilma. Também foi decidido, na live, que uma “uniformidade de cores, slogans e camisetas”, proposta por Lobão, não seria definida para os protestos, uma vez que um “símbolo unificador” surgiria naturalmente. Além disso, demasiado controle dos manifestantes era contraproducente diante da expansão que almejavam para o movimento. “Então deixa a coisa andar, pode virar anarquia!”, defendeu Olavo.

Nós precisamos de mártires
Marcello Reis expõe uma arte do protesto que ajudou a organizar, durante reunião virtual com
outros ativistas antipetistas, em 10 de novembro de 2014 (imagem do YouTube).
Nós precisamos de mártires
Arte do protesto contra a reeleição de Dilma Rousseff em São Paulo, do dia 15 de novembro de
2014, feita pelo movimento Revoltados Online.
Nós precisamos de mártires
Em São Paulo, no protesto do dia 15 de novembro de 2014, a arte antifraude e pró-
impeachment dos Revoltados Online estampou camisetas de manifestantes, vendidas por 50
reais na internet (imagem do YouTube).

As manifestações do dia 15 confirmaram que os que se mobilizavam contra a presidente democraticamente eleita não seriam controlados por um pequeno grupo. Seu direcionamento e demandas até poderiam ser sugeridos pelos organizadores dos protestos, e a presença de termos como “Foro de São Paulo” e “Smartmatic” em cartazes e discursos nos protestos sinaliza uma boa recepção do “antipetismo oficial” entre os manifestantes. Mas eles tinham seus próprios objetivos, que não se restringiam àqueles previamente firmados num dito “Manifesto Pela Democracia” pelos participantes do hangout do dia 10.

Nós precisamos de mártires
Padre Carlos Aguiar, liderança da Liga Cristã Mundial, em discurso na Avenida Paulista durante
o terceiro protesto contra Dilma após sua reeleição, em 15 de novembro de 2014 (imagem do
YouTube). Criado por um imigrante que atuou numa milícia cristã durante a guerra civil do
Líbano, o movimento assumiu como principal objetivo, a partir de 2014, a politização de teorias
e sentimentos anti-islâmicos e anti-muçulmanos. De cima do caminhão dos Revoltados Online,
Aguiar defendeu a monarquia e a “civilização judaico-cristã”, e disseminou uma conspiração
islamofóbica (que chamou de denúncia): “o PT está trazendo para o Brasil – apesar da liberdade
religiosa, mas escondida debaixo dos panos – a islamização do Brasil.”
Nós precisamos de mártires
“Brasil acima de tudo!”, brado criado por paraquedistas do Exército após o decreto do AI-5 em
1968, e parte do slogan da campanha de Bolsonaro em 2018, em cartaz intervencionista afixado
num caminhão que circulava no protesto contra a reeleição de Dilma Rousseff, no dia 15 de
novembro de 2014, em São Paulo (imagem do YouTube).
Nós precisamos de mártires
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“Volta C.C.C”, em cartaz no protesto contra a reeleição de Dilma, no dia 15 de novembro de
2014, em São Paulo (imagem do YouTube). O C.C.C., ou Comando de Caça aos Comunistas, foi um
grupo paramilitar de extrema direita que atuou durante a ditadura.

Em São Paulo, onde cerca de 8 mil pessoas se reuniram, o dissenso entre os manifestantes era visível. Os mais raivosos e violentos xingaram e deram pauladas em indivíduos identificados como esquerdistas, enquanto outros tentavam contê-los. Havia desde os que, apesar da oposição à Dilma e ao PT, diziam respeitar os resultados das urnas, passando pelos que pediam “apenas” o impeachment da presidente, até os que clamavam pela volta dos militares. A discordância de parte dos presentes em relação aos pedidos de intervenção militar deu origem a um protesto dissidente, para onde foi Lobão, que descobriu, na Paulista, sua incapacidade de comandar os militantes de direita. A TV Brasil registrou as lamúrias do cantor: “Tava indo pra lá, quando eu chego tem um caminhão enorme com ‘intervenção militar’. Aí eu falei: pô, mas a gente combinou a semana inteira! Isso não pode acontecer, isso é um tiro no pé do movimento, isso é um absurdo, então eu vou embora”.

Nós precisamos de mártires
Tweet de Lobão em 15 de novembro de 2014.

No mesmo dia, mas longe dali, houve quem não achasse feio o que era espelho, quem se identificasse com os “cretinos da extrema direita” e os acolhesse. Para uma pequena plateia que exaltava as Forças Armadas em Copacabana, um deputado federal do PP exclamou: “Nós temos que ter, seja quem for, mas entre nós, uma candidatura em 2018, que possa realmente trazer esperança para o Brasil”. Convocado ao microfone como “meu presidente”, Jair Bolsonaro abriu seu discurso no protesto do Rio de Janeiro exaltando a polícia e declarando a inconfiabilidade das urnas e da reeleição do PT. Atacou os inimigos de sempre (o desarmamento, o Bolsa Família, o PT, o PCdoB, o PSOL), mas também teve suas falas guiadas por seguidores mais insistentes, que gritavam sobre o Foro de São Paulo e a Smartmatic. Àquela altura, a promessa para 2018 de Bolsonaro não chamou muita atenção midiática, sendo brevemente citada pela Folha de São Paulo. Um vídeo gravado por um manifestante mostra a recepção do público deste anúncio: apesar da possibilidade da candidatura do capitão Bolsonaro alegrar a maioria dos presentes, para outros, era “muito tempo pra esperar” até 2018.

Nós precisamos de mártires

Nós precisamos de mártires
Cartazes antifraude nos protestos contra a reeleição de Dilma do dia 15 de novembro de 2014,
em São Paulo e no Rio de Janeiro, na última foto (imagens da internet [1][2][3][4][5][6]).

Notas

[1] Conhecida como a bandeira do anarcocapitalismo, consolidouse como símbolo da extrema direita dos EUA: já foi adotada por terroristas da KKK, manifestantes do Tea Party, supremacistas de Charlotesville, conspiradores da QAnon e insurgentes do Capitólio.

[2] Barbosa participou da 26ª edição do evento, organizado em Porto Alegre pelo Instituto de Estudos Empresariais, think tank liberal. Sua fala armamentista e as de outros palestrantes foi patrocinada pelas empresas Gerdau, Sousa Cruz e Ipiranga, em parceria com a PUCRS, gigantes dos ramos da produção de aço, tabaco, distribuição de combustíveis e educação superior.

[3] De 2018 a 2022, foi deputado estadual (NOVORS); na época, era estudante e fomentador de diferentes think tanks ultraliberais vinculados à Atlas Network, organização com sede em Washington, EUA.

 

Leia também a , a 3ª e a parte da série.

A imagem em destaque é do Metrópoles.

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