Por Legume Lucas
Há pouco mais de uma década, um grande camarada escreveu sobre as lutas contra o aumento de tarifas em Salvador. Descreveu uma espécie de “roteiro” pelo qual as pessoas saiam às ruas e, se a passagem não fosse reduzida em uma ou duas semanas, se cansavam e retornavam frustradas para casa por terem sido derrotadas. Neste texto, Manolo afirmou que tais manifestações já estavam no “roteiro”; se pretendêssemos vencer, precisaríamos escapar deste enredo desenhado para nós. O texto tornou-se um clássico, inspirou militantes por transporte no Brasil inteiro, e penso que em alguma medida colaborou com as formulações que embasaram as manifestações de 2013.
Se entre 2011 e 2015 na extrema-esquerda se conseguiu esboçar novas práticas, ideias, organizações e ações, nos anos recentes parecemos estar novamente enredados em roteiros que não cansam de se repetir. Assim como nas séries televisivas que se tornam cada vez mais populares, os roteiros políticos parecem não se cansar de repetir os formatos, ao mesmo tempo também procuram se apresentar como grandes novidades, quando apenas trocaram o sexo, ou a cor da pele, dos protagonistas.
O grande problema: como dito no texto citado, o outro lado continua se organizando, e é mais forte do que nós. Como já mencionei em outro texto, durante os quatro anos de governo Bolsonaro não faltaram motivos para nos mobilizar, mas nossa indignação pouco gerou além de posicionamentos em redes sociais, que serviram, de alguma maneira, para purgar nossas consciências e criar a ilusão de que fazíamos algo relevante, sem sermos minimamente subversivos. Houve exceções aqui e ali, como se viu na luta dos entregadores e nas mobilizações de trabalhadores de telemarketing, que apesar das inovações foram marcadas por certa efemeridade. Sem dúvida a existência de um governo fascistóide e a pandemia restringiram as possibilidades de ação dos trabalhadores, com o isolamento restringindo as possibilidades de contatos sociais tão importantes para a troca de ideias e criação de formas de atuar.
Seria de alguma maneira esperado que o retorno do convívio social e a nova eleição de Lula à presidência facilitassem também a volta das possibilidades de ação da esquerda, que ela voltasse a atuar e propor formas de luta, ou, ainda, que conseguisse organizar resistência aos ataques que os trabalhadores continuam e continuarão a receber. As classes capitalistas continuam se movendo em defesa de seus interesses: isso ocorre, por exemplo, com a formação de milícias que assassinam indígenas, camponeses e sem terra; também ocorre quando as burocracias partidárias reduzem as possibilidades de participação dos trabalhadores.
Para além de elencar estas mudanças, convém analisar mais de perto ao menos uma delas. Escolho a questão do transporte, por ser aquela com que sou mais familiarizado, mas também por condensar alguns pontos que me parecem importantes.
Por alguma razão, o governador do Estado de São Paulo parece ter escolhido o metrô como vitrine. Para tanto, elaborou um plano de privatização da Companhia do Metropolitano de São Paulo (CMSP), concedendo as partes da operação do metrô paulistano em separado: primeiro serão as estações, depois a manutenção, posteriormente os operadores de trens. Ao mesmo tempo, tem bancado um desgaste público e também de suas articulações políticas, ao se recusar a oferecer qualquer gratuidade, indo frontalmente contra o prefeito Ricardo Nunes (MDB), seu aliado, que busca na tarifa zero uma forma de conseguir sua reeleição.
No campo adversário estão os metroviários e seu sindicato. O índice de filiação no Sindicato dos Metroviários de São Paulo é bastante superior à média nacional, com uma intensa vida política na categoria. Isso é produto de um histórico de lutas acumuladas pelos metroviários ao longo de décadas: com greves, operações padrão e resistências cotidianas, conseguiram um bom acordo coletivo de trabalho, tanto em relação a salários, quanto a benefícios. Dentro do movimento sindical do metrô de São Paulo há, ainda, uma tendência de se cumprir as decisões de assembleia; efetivamente, a maioria dos trabalhadores paralisam as atividades, especialmente em setores chave para o funcionamento como a operação de trens, o controle de linhas e a manutenção. Essa adesão é fruto, também, da luta ativa dos trabalhadores, que organizam piquetes nos pátios, constroem discussões coletivas e se mobilizam para que as greves ocorram. Destaca-se ainda o impacto que uma paralisação no metrô possui no funcionamento da maior cidade do Brasil, impactando a circulação de milhões de trabalhadores e diferentes atividades econômicas.
O projeto de privatização em curso, além de tender a piorar o serviço para a maioria da população (como mostram as experiências da linha 9 e da supervia no Rio de Janeiro), quebraria a espinha dorsal de uma categoria modelo de combatividade no país; por consequência, esvaziaria a força do Sindicato dos Metroviários de São Paulo; tudo isso resultando em mais uma dura derrota aos trabalhadores como um todo, não só aos metroviários. Neste cenário, era esperado que as diferentes correntes de esquerda e extrema-esquerda que ocupam a diretoria do sindicato tentassem todas as ações possíveis, pois, ao que tudo indica, trata-se da continuidade da existência da própria categoria com a composição que tem hoje. Entretanto, as ações efetivadas pelo sindicato têm insistido em repetir o mesmo roteiro: entram com ações na justiça contra a privatização e eventualmente ganham uma liminar, que é posteriormente derrubada; e tentam construir greves unificadas com a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e com a Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo), em grandes paralisações contra a privatização. Essas greves, devido à imagem negativa das linhas de trem privatizadas, recebem um apoio popular muito mais elevado que a média, viralizando em redes sociais depoimentos de trabalhadores afetados pela greve responsabilizando o governador pelos problemas. Passado o momento de paralisação, eis o “roteiro”: as ações práticas de privatização continuam; o governador demite ilegalmente lideranças da categoria; a presidenta do sindicato faz uma série de declarações nas redes sociais denunciando o absurdo das arbitrariedades e chama uma nova mobilização para daqui alguns meses.
Parece-me que o caso mais emblemático de se manter preso ao roteiro e de ausência de imaginação política envolve a liberação de catracas no metrô. Correndo o risco de ficar um pouco enfadonho, retomo um pouco do que acompanho nas assembleias dos metroviários desde 2006. A conversa inicial sobre essa prática era difícil, parte dos sindicalistas mais velhos espalhavam uma versão — que depois se mostrou mentirosa — de que na década de 1980 fizeram a liberação de catracas e dezenas foram demitidos. Também davam voz ao setor mais reacionário da categoria dizendo que era da tarifa que vinha o salário do metroviário. As mobilizações do transporte, a crise de financiamento e o avanço da pauta da tarifa zero levaram a uma mudança discursiva gradual dos metroviários. Na prática, e na base da categoria, ainda existia muita resistência à liberação de catracas; não por acaso o Movimento Passe Livre (MPL) procurava incentivar mais a liberação de catracas em ônibus do que em metrôs, sendo comum manifestações que terminaram próximas às estações serem reprimidas por metroviários quando os manifestantes tentavam pular as catracas. Paulatinamente, começou a ganhar mais destaque uma proposta do sindicato afirmando que, se o governador concordasse, não fariam greve e liberariam a catraca. No metrô, a ideia de liberação de catraca só apareceu na boca dos sindicalistas como bravata ou espetáculo: declaravam para mídia que estavam dispostos à liberação, ao mesmo tempo que pediam autorização para o patrão para fazer “ação direta”. Pode até ter funcionado bem para angariar algum apoio público, mas, como pressão efetiva, foi pouco eficaz. Se havia alguma dúvida que a liberação de catraca era um discurso midiático, ela se dissipou durante a greve de 2023. Apresentou-se então, de maneira um tanto inesperada, a oportunidade de construir uma ação conjunta entre aqueles que colocam o transporte para funcionar e aqueles que usam o metrô para vender sua força de trabalho: uma juíza de primeira instância determinou a legalidade da liberação de catracas pelos metroviários, em substituição à greve. O sindicato convocou o retorno dos trabalhadores aos postos de trabalho e, em vez de aproveitar a decisão judicial, resolveu esperar a anuência do governador. Como era de se esperar, o governador, depois de enrolar o sindicato, recorreu da decisão e a derrubou. O medo de correr riscos parece ser tão grande por parte da esquerda que mesmo em situação onde há condições abertas e possibilidades de apoio popular massivo, opta-se por seguir o mesmo script.
A continuidade da política de corte de custos do metrô de São Paulo continuou no ano de 2024 com o fechamento das bilheterias no período da noite. A medida foi justificada pela baixa compra de bilhetes neste período e pelo uso massivo do bilhete único. Para aqueles que pretendiam lutar contra a privatização, a medida abria espaço para mais uma forma de mobilização: tanto a orientação interna do metrô quanto o Código do Consumidor preveem que, se alguém tiver apenas dinheiro para pagar pela passagem e não houver meio de comprar o bilhete, a entrada deve ser liberada gratuitamente. Estava novamente colocada a oportunidade de construir uma ação conjunta de metroviários e população trabalhadora, num contexto de aumento tarifário e de privatização das estações. Um pequeno grupo de militantes produziu um panfleto e incentivou a população a entrar gratuitamente em duas estações. Na primeira, a proposta contou com a adesão de trabalhadores que terminaram o turno de trabalho em um shopping; na segunda, contou com a boemia de uma sexta-feira, e a empolgação da população foi marcante. É de se pensar que o apoio popular incentivaria as estruturas partidárias a se mexerem, talvez colocando militantes para fechar em outros horários as bilheterias, ao mesmo tempo que os metroviários incentivariam a entrar gratuitamente. Não seria difícil, uma vez que a presidente do sindicato é do mesmo partido que os dirigentes do maior movimento de moradia da cidade. Entretanto, sequer na ação com as bilheterias já fechadas foi possível contar com uma ação do sindicato. Os trabalhadores de base tinham certa perplexidade, em parte porque o pequeno grupo não conseguiu construir com os trabalhadores uma ação conjunta e não tinham clareza de como fazer isso: apostaram em uma frágil tentativa de diálogo com as diferentes correntes esquerdistas que atuam no metrô, mas nenhuma delas conseguiu fazer chegar aos trabalhadores de base uma orientação sobre o assunto. Entretanto, o outro lado continua atuando: a direção do metrô enviou seguranças para as estações e mandou uma nova orientação para todos os trabalhadores não liberarem as catracas nesta situação.
A longa exemplificação em relação ao metrô se justifica, pois a situação é por demais emblemática. Mesmo com um forte sindicato, um tema de grande apoio popular, uma perspectiva real de fim da categoria como ela existe, e com possibilidade concreta de ação direta, a esquerda não consegue sair do roteiro e ousar algo fora do previsto. Ainda assim, pequenas ações como a liberação das catracas nas duas estações citadas, ainda que momentânea, parecem demonstrar que o espaço para atuar junto à população está colocado — o que é preciso é saber explorar as frestas.
Ilustram o artigo obras de Barnett Newman (1905-1970).
Bom diagnóstico.
De até em um sindicato considerado combativo não se tem um mínimo de ousadia… e quando a situação requer um “tudo ou nada”, imagina no restante dos sindicatos….
Enquanto isso não tem faltado ousadia e ímpeto à extrema-direita.
Ainda seguindo o roteiro, a força da categoria e a flagrante ilegalidade das demissões levou à reintegração de 6 dos 8 demitidos. Sem dúvida é uma conquista importante, dará ela força para que as frestas comecem a ser exploradas?
https://www.metroviarios.org.br/site/mais-uma-vitoria-contra-as-demissoes-reintegracao-do-altino/