Por Thiago Canettieri
Este texto será publicado em partes nos próximos meses nesta coluna. Leia as partes I, II, III, IV, VI e VII.
CENA 4
Já se sabia há alguns dias que aquela hora chegaria. Algumas dezenas de viaturas da polícia militar de diferentes batalhões cercavam a área com as luzes giratórias ligadas antes mesmo do nascer do sol. Centenas de militares, organizados em grupos de 4 ou 5 ocupavam todo o perímetro da ocupação. A tropa de choque, com escudos e cachorros, também estava presente, bem na única via que dava acesso à ocupação. A ordem de despejo foi emitida pelo Tribunal de Justiça.
Um dos advogados populares ficou responsável por dar a notícia numa assembleia. Todos moradores já estavam apreensivos pois sabiam da possibilidade que se confirmou mais tarde. A discussão agora da assembleia era como proceder. O movimento não poderia estimular a permanência e uma possível resistência. O risco era muito elevado. Já se sabia que as ações policiais estavam cada vez mais duras e violentas contra o movimento de moradia. Contudo, contrariando os militantes, os moradores queriam resistir. “Eu não vou sair daqui, para onde eu vou? Embaixo da ponte?”
A assembleia se estendeu por quatro horas. Os militantes reconheciam a derrota e não podiam assumir, como movimento, uma resistência que desenrolaria em confronto violento com a polícia. Os moradores não tinham outra opção, a não ser defender a casa que construíram e moravam há 6 anos. As lideranças comunitárias, que estavam de acordo com o discurso dos militantes, começaram a fazer um convencimento quase pessoal. “Olha o seu filho, a polícia não tem dó. A gente vai continuar a luta em outro lugar”.
Já de madrugada, o clima era de pura derrota. Esperariam até a polícia chegar e abandonariam o terreno. As famílias guardavam o que era possível nos carros, carrinhos de mão e sacolas.
Quando a polícia chegou, alguns representantes do movimento foram até o comandante tentar ganhar tempo. Pouco tempo depois da polícia, duas ambulâncias, caminhões da assistência social, levariam as coisas das famílias para depósitos alugados pela prefeitura até que indicassem para onde seriam levados seus pertences. Famílias inteiras não tinham ideia onde ir dormir. Algumas outras ocupações se dispuseram a receber algumas pessoas. Outras voltariam para morar de favor.
“Não vamos nos dispersar, porque a luta continua” – gritava uma das pessoas. O plano que foi traçado na assembleia, que funcionou como convencimento para as famílias que deixariam suas casas, era que o movimento manteria contato com as famílias. Seriam um novo núcleo de sem-casas e, a partir daí, se organizaria uma nova ocupação. Entretanto, mesmo com esse plano, a situação parecia fugir do controle.
Um senhor ateou fogo no seu barraco e colocou um botijão de gás de cozinha dentro. Os bombeiros foram avisados e entraram na ocupação enquanto as pessoas saiam. A polícia, para garantir a passagem dos bombeiros, usou spray de pimenta em algumas pessoas. O botijão foi retirado antes de uma explosão e o incêndio começou a ser controlado quando outras pessoas também colocaram fogo em alguns barracos, deixando a paisagem da ocupação em remoção como um cenário de guerra.
Com a dispersão das famílias por toda região metropolitana, a capacidade organizativa se perdeu. As famílias que foram expulsas da ocupação, não voltariam a ocupar – ao menos não organizadas, como uma resposta ao despejo. A maior parte dos ex-ocupantes agora mora de aluguel ou de favor, voltando aos números do déficit habitacional.
O DIA DEPOIS
A maneira como o Estado age com as ocupações é, recorrentemente, dada pela prática de remoções. Às vezes, configurado de maneira tendenciosa o esbulho possessório do terreno, a ocupação dura menos de um dia. Outras tantas, a disputa fundiária é resolvida no judiciário. Via de regra, esse caminho resulta em uma vitória do proprietário.
A remoção é um ato de força do Estado que preserva o caráter jurídico da propriedade formal. Mesmo que em desacordo com legislações vigentes, por exemplo, o Estatuto da Cidade, ou mesmo a determinação constitucional que “a propriedade atenderá à sua função social”, as decisões judiciais são frequentemente favoráveis à manutenção da propriedade[1].
O despejo é, portanto, a expressão da derrota de uma ocupação. As famílias são retiradas, em situações com mais ou menos uso da violência – vale ressaltar, todo despejo é violento.
Como ressalta Rafael Bittencourt[2], as primeiras ondas de ocupações já nos anos 2000 foram frustradas. A polícia e o judiciário agiam rapidamente para que os movimentos não lograssem a conquista dos imóveis ocupados. Nesse primeiro momento privilegiou-se ocupações de construções abandonadas, mas sempre resultou em saída forçada das famílias ocupantes.
O caso descrito na cena anterior significou um marco no ciclo da luta das ocupações urbanas. A partir daí se consolidou um novo padrão de relacionamento entre o poder público (município e governo do estado, em especial) e os movimentos sociais não alinhados aos espaços institucionais de participação.
A partir de 2016, acompanhou-se em um crescendo a militarização da questão das ocupações urbanas. A violência policial cresceu tremendamente. Esses movimentos sociais que atuavam na prática da ocupação de terrenos periféricos para a autoprodução de casas e do bairro lidam com um investimento tremendo da polícia para promover os despejos de modo mais rápido. Frequentemente, isso significava também mais violento.
Além disso, a partir de 2016 uma onda de deslegitimação dos movimentos sociais ganhou força e influenciou a postura austera do poder público e legitimou a ação violenta das forças policiais. O relativo sucesso conquistado por esses territórios passou a ser ameaçado, e muitas das ocupações que tentaram se consolidar nesse período foram despejadas, não raro com o uso de um aparato militar intensivo (como helicópteros e blindados)[3].
Antes disso, os movimentos e ocupantes não eram despejados imediatamente. Mesmo que a repressão policial estivesse sempre presente em atos de coação, o despejo seguia os dispositivos jurídicos de praxe. Nesse ínterim, era possível que os movimentos aumentassem os custos políticos para a execução das ordens de despejos. Por exemplo, podia-se construir uma creche para as crianças, realizavam-se campanhas de solidariedade nas redes sociais que, eventualmente, chegavam até em pessoas famosas, até shows de artistas nas comunidades já ocorreram, e, além disso, aconteciam também os atos públicos que disputavam a opinião pública.
Esse novo padrão de despejos imediato foi possível por duas inovações repressivas: de um lado, uma inovação repressivo-jurídica: as primeiras viaturas que chegavam no local enquadravam a situação como esbulho possessório. Mesmo que os advogados populares contra-argumentassem, afirmando que o proprietário, na ocasião do ato, não detinha a posse do imóvel – e, portanto, o enquadramento dado era equivocado -, as ocupações eram despejadas antes das primeiras 12 horas de existência. De outro lado, a inovação repressiva-policial, envolveu a mobilização das tropas de choque da polícia militar muito rapidamente que, com uso de armamentos não-letais, promoviam a dispersão dos ocupantes. Dessa maneira, o despejo acontecia muito rapidamente, impedindo a mobilização dos instrumentos que colaboravam para a manutenção da ocupação.
Notas
[1] MILANO, Giovanna. (2017). Conflitos fundiários urbanos e poder judiciário. Curitiba: Íthala.
[2] BITTENCOURT, Rafael. (2016). Cidadania autoconstruída: o ciclo de lutas sociais das ocupações urbanas na RMBH (2006-15) Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais.
[3] PAOLINELLI, Marina Sanders; CANETTIERI, Thiago. (2019). Dez anos de ocupações organizadas em Belo Horizonte: radicalizando a luta pela moradia e articulando ativismos contra o urbanismo neoliberal. Cadernos Metrópole, v.21, n.46.