Por Thiago Canettieri
Este texto é a última parte de uma série de textos publicados nos últimos meses neste site. Leia a parte I, parte II, parte III, parte IV, parte V e parte VI e parte VII.
As transformações do capitalismo pós-crise mundial de 2008 e seus impactos no Brasil produziram uma situação estranha: de um lado, abriram a possibilidade de uma forma de luta contra as sucessivas ondas de precarização, espoliação e extrativismo. Contudo, como em um contragolpe, fecharam os horizontes dessas lutas, produzindo um amoldamento neoliberal da forma de disputa política como havia sido concebida. A luta das ocupações urbanas em Belo Horizonte parece ter-se submetido ao mesmo princípio contraditório. Uma tática de luta de alta radicalidade, que retira dos circuitos da acumulação de capital e da especulação imobiliária terrenos e imóveis, transformou-se num dispositivo de gestão de populações. Precisamos entender por que movimentos que eram radicais e defensores da autogestão foram “transformados em fiscalizadores passivos de uma política cuja criação era devida às suas lutas, mas que agora foge de seu controle” [1].
O ciclo de luta das ocupações urbanas descrito e analisado aqui [2] marcou definitivamente os horizontes da política em Belo Horizonte e Minas Gerais. As ocupações, que ofereciam a possibilidade de formação política (sempre limitada) e de recomposição das rendas de famílias precarizadas, também produziam o horizonte de dos ocupantes se tornarem “pequenos proprietários urbanos” [3] e o movimento reduzido à gestão desta demanda por propriedade.
O que vimos então foi a canalização desta energia disruptiva sendo amoldada pela política institucional: o horizonte de gestão imposto ao movimento (e por ele aderido) produziu um incentivo à formação de organizações com o objetivo de participar das eleições. O saldo político da luta das ocupações em Belo Horizonte fica em algum lugar entre produzir mais habitações do que a política habitacional e a pacificação total. Seja como for, a ideia de cidadania e de sujeito político, que animou as lutas populares no contexto da redemocratização brasileira, converteu-se na concepção de clientes. A noção de direito ou mesmo de luta resulta em consumo. Movimentos sociais radicalizados, num contexto de institucionalização, operam como dispositivo de gestão de populações pauperizadas. E, por fim, a militância transforma-se em empresariamento de si. Sucessivos deslocamentos semânticos que indicam a fresta mínima do horizonte de expectativas de uma política de esquerda.
Se, como Isadora Guerreiro e André Dal’Bó [4] diagnosticam, o cenário da luta por moradia em São Paulo redundou na transformação de movimentos como gestores de demandas de mercado que sofrem o amoldamento das políticas públicas, em Belo Horizonte a situação não ficou muito para trás. A autoconstrução de bairros em ocupações para morar parecia indicar um horizonte de autonomia e de radicalidade muito maior que a adesão aos ditames da política habitacional e da centralidade. Entretanto, a mesma força que fez desenvolver as ocupações urbanas como um importante instrumento de luta, numa reviravolta, reconfigurou a política em Belo Horizonte: as ocupações urbanas tornaram-se foco da disputa eleitoral. Quem consegue mobilizar mais votos vindos destes grandes agrupamentos de pessoas? Um estoque considerável de votos, no final das contas. Essa transformação altera o modo como a pretensa politização entra no território. A perspectiva da luta agora é informada diretamente de dentro dos gabinetes.
As ocupações agora se desenvolvem na direção de maximizar a capacidade de extração de uma rentabilidade política dos territórios, o que acaba erodindo, desde baixo, a possibilidade de construção comunitária. Simultaneamente, a energia de mobilização, que agora só movimenta os moinhos eleitorais no marcapasso bianual, se torna cada vez mais diminuta. No final das contas, o lampejo de luta converte-se num ente negociador para efetivar o direito de propriedade (sem necessariamente urbanização, direitos, muito menos politização mais à esquerda). Ao mesmo tempo, os territórios ficam suscetíveis aos mais variados tipos de extorsão que limitam o discurso de cidadania. As lideranças, geralmente mulheres negras, ficam moídas neste processo desgastante e, frequentemente, em risco: ameaçadas pela entrada da política institucional violenta e pelas economias criminais que utilizam as terras para alavancagem financeira das atividades ilícitas [5].
A pressão constante por moradia tende a ser contida agora por acordos políticos de bom comportamento. A motivação que levou à eclosão desse ciclo de lutas sociais, a chamada “fila da política habitacional” [6], retorna. Mas agora, retorna dentro da boca dos próprios movimentos que antes a criticavam.
As contradições e os limites da luta por moradia em Belo Horizonte tornam-se evidentes na exata medida em que o discurso e a prática das ocupações se esvaem.
Notas
[1] Passa Palavra. 2014. Dilemas da luta por moradia. Disponível em: Dilemas da luta por moradia (Parte I) | Passa Palavra
[2] Marina Paolinelli & Thiago Canettieri. Dez anos de ocupações organizadas em Belo Horizonte: radicalizando a luta pela moradia e articulando ativismos contra o urbanismo neoliberal. Cadernos Metrópole, v.21, n.46.
Thiago Canettieri; Marina Paolinelli; Clarissa Campos; Rita Velloso. 2020. Não são só quatro paredes e um teto: uma década de luta nas ocupações urbanas na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Cosmópolis, 2020.
[3] Sérgio Ferro. 2006. A produção da casa no Brasil. In: Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac & Naif.
[4] Isadora Guerreiro & André Dal’bó da Costa. 2020. As ocupações urbanas na macrometrópole paulistana: da potencialidade política ao amoldamento neoliberal. In: Canettieri, T.; Paolinelli, M. S.; Campos, C.; Velloso, R. (Orgs.). Não são só quatro paredes e um teto: uma década de luta nas ocupações urbanas na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Cosmópolis, 2020.
[5] Thiago Canettieri. 2024. Peripheral urbanization, informal real estate markets and crminal activities in Belo Horizonte (MG, Brazil). Journal of Illicit Economies and Development, 6(1): 129-144.
[6] Denise Morado Nascimento. 2016. As políticas habitacionais e as ocupações urbanas: dissenso na cidade. Caderno Metrópoles, 18(35): 145-164.