O burocratismo não está na forma jurídica adotada. Pouco importa o que está escrito no estatuto, no boletim ou no site do movimento ou partido, nenhuma formalização representa seguro antiburocracia. A perspectiva que me parece mais fértil é deslocar o debate para a questão da participação e mobilização. Por Ricardo Rugai
Por dentro e por fora é uma série de artigos de debate sobre as lutas e os movimentos sociais, da iniciativa conjunta de Paulo Arantes e do coletivo Passa Palavra. Série aberta a um amplo leque de colaboradores individuais, convidados ou espontâneos, mais ou menos empenhados (ou ex-empenhados) nas lutas concretas, que ajude a aprofundar diagnósticos sobre a sociedade que vivemos, a cruzar experiências, a abrir caminhos – e cujos critérios seletivos serão apenas a relevância e a qualidade dos textos propostos.
O texto e debate sobre a burocratização que se deu no Passa Palavra me causaram duas impressões: primeiro, a sensação de que é um tema instigante, a ponto de motivar meu comentário àquela altura e escrever algo agora; depois a sensação de que estou diante de um velho e recorrente debate, cujos termos não mudaram muito. Foi a partir desse incômodo que esse texto foi escrito. Vamos a ele.
Procrastinar é uma atitude que a maioria de nós toma corriqueiramente na vida. Isso também ocorre na militância e no debate político de diversas formas; a procrastinação nos faz concentrar a atenção em problemas menos cabeludos [espinhosos], desviando o foco dos problemas mais complexos.
A explicação é simples: encarar o problema mais escabroso, sem nenhuma garantia de que vamos resolvê-lo, é nos arriscarmos ao desânimo e à impotência; sentimentos paralisantes que não contribuem para a tenacidade que a ação requer. Mas vamos ao tema.
Guardo vivamente na memória um caloroso debate ocorrido há 15 anos atrás no movimento estudantil. Ele ocorria em vários espaços simultaneamente. Uma parcela legitimamente indignada de estudantes se mobilizava contra as diretorias encasteladas nos centros acadêmicos. Não sem razão: raras assembléias, diretorias sem o menor interesse pela participação, manipulações das entidades, desvios de grana [dinheiro] e estrutura muitas vezes; enfim tudo o que rola [sucede] normalmente numa entidade burocratizada.
Não vou entrar nos pormenores da luta contra isso, mas o fato é que depois de muita mobilização esse quadro foi revertido em diversos espaços. Estudantes afinados politicamente com algo próximo do anarquismo, conselhismo, autogestionários, marxistas heterodoxos, conseguiram se impor politicamente e promover mudanças. Quais?
A luta contra a direção burocrática normalmente redundava num novo estatuto, no qual o poder deliberativo era amplamente (quando não totalmente) transferido à assembléia; os poderes da direção eleita eram restritos; o nome direção muitas vezes mudava para coordenação e convocação e o estímulo à participação coletiva tornava-se uma regra.
Uma vez alcançado esse objetivo, que mobilizava gente durante um certo período, as coisas aos poucos iam se acalmando, a participação caía, até mesmo os militantes mais ativos passavam a participar menos, enfim o movimento esfriava quando não se dissolvia quase totalmente.
Passado algum tempo se reiniciava um ciclo deplorável. Um outro pequeno grupo de estudantes, normalmente ligado a algum partido ou tendência, surgia com o desejo de agitar o movimento, reviver o centro acadêmico, e normalmente o discurso era de que faltava uma “direção de verdade”. O movimento recomeçava, o estatuto era rediscutido, eleições chamadas, as assembléias reapareciam etc.
Há uns cinco anos atrás fui chamado a uma palestra que abria um congresso do centro acadêmico e para minha tristeza o debate parecia ser o mesmo: qual o grau de poder da diretoria e da assembléia?
Os dois pólos desse ciclo vicioso, quase estereótipos, se repetiram de diferentes formas e em diferentes graus nos diversos espaços onde continuei atuando depois do movimento estudantil ou onde conheci companheiros atuando depois do movimento estudantil: nas associações de bairro, movimento sem-teto e sindical.
O interessante é que tanto a “solução” dirigista quanto a “autogestionária” têm mais em comum do que suspeitam e gostariam. Ambas esperam que as formas organizativas modifiquem substancialmente o movimento ou a falta de movimento. Mais do que isso: na maioria dos casos ambos identificam as formas organizativas a uma mudança jurídica! Sim, o estatuto representa uma construção formal, legal! E esse me parece um erro fundamental. É como se as pessoas estivessem ali, à espreita, ávidas por participação; bastaria remover a direção traidora num caso e autoritária noutro, para que as massas tomassem conta da arena.
Antes que muitos se voltem contra mim adianto que considero importante a existência de tais mecanismos organizativos, jurídicos inclusive, que permitam a participação e impeçam na medida do possível a burocratização. Mas aí também mora uma grande ilusão.
Um velho militante me disse certa vez que estatuto só servia para duas coisas: primeiro, reunir gente para discutir e começar algo, o que era muito bom. Depois, na prática cotidiana, o estatuto seria esquecido e até descumprido rotineiramente sem problemas… até que alguns brigassem – dizia ele – e uma parte lembrasse de desengavetá-lo para utilizar alguns artigos e parágrafos contra a outra. Constatei a verdade dessas considerações na prática ao longo do tempo.
O fato é que o burocratismo não está na forma jurídica adotada; ele é um fenômeno que se desenvolve em torno de nós e do qual nós mesmos participaremos se não abrirmos os olhos. Pouco importa como você se define politicamente, pouco importa o que está escrito no seu estatuto, no seu boletim ou no site do seu movimento ou partido, nenhuma formalização representa seguro antiburocracia.
Me lembro bem de quando o centro acadêmico que mencionei derrubou a estrutura de direção vertical e do processo que se seguiu depois. Como era esperado, as coisas foram de um extremo ao outro, aos poucos se transformaram no seu contrário. Hegel e Marx explicam isso com dialética, um senhor “sem-teto” usou uma metáfora muito boa (“vulgar” diriam alguns…) para explicar uma situação parecida me dizendo: – Tem gente que acha que quanto mais for para esquerda, mais distante vai ficar da direita; eles pensam que a terra é plana… Mas o mundo é redondo e às vezes quem caminha demais prá um lado de repente tá junto de quem fugia…
Da rejeição ao “poder da direção” caiu-se no esvaziamento total da direção/coordenação eleita. De fato, com medo de ser autoritária, ela se limitava a chamar assembléias, onde tudo, absolutamente tudo, seria decidido. Lembro-me de assembléias que discutiram a marca de cerveja a se comprar para uma festa, o supermercado onde se devia comprar, a decoração de um mural, enfim, miudezas que poluíam e tornavam arrastado e sem sentido o tal “espaço democrático”.
Os “novos participantes” que se arriscavam a ir pela primeira vez num espaço novo para eles sentiam-se totalmente por fora. E, assim, as assembléias se esvaziaram novamente, participavam delas somente os militantes, que cada vez mais criavam uma linguagem própria e um clima absolutamente hostil à participação mais ampla. A assembléia, na verdade, tornou-se uma reunião de diretoria executiva aberta, tão alheia às questões mais gerais e palpitantes para a coletividade quanto as antigas reuniões fechadas da diretoria derrubada. Cristalizaram-se os bons de fala e discurso, os que só ouviam e votavam e a maioria que nem ia. E eis que o movimento deu a volta ao mundo.
Em síntese, a luta antiburocrática tomou uma forma burocrática.
Os exemplos que mencionei me fazem correr um sério risco. Alguns podem dizer – Mas também mudaram apenas as formas, os estatutos! É preciso imprimir uma nova dinâmica na prática, nas relações entre as pessoas! Tudo isso é verdade e também vem sendo tentado por militantes muito sinceros e empenhados. Mas suspeito que isso somente desloca o horizonte do problema, cuja solução continua dependendo de uma mudança de atitude dos militantes, da vanguarda, da “minoria ativa” como preferem alguns. E aqui pouco importa se está organizada em partido ou grupo autogestionário (aliás, é curioso como as “vanguardas” informais que se formam na prática militante se sentem tão diferentes das “vanguardas” formalizadas dos partidos).
Estou sugerindo que a burocratização não é apenas fruto de uma direção autoritária malvada, cuja remoção resolveria o problema. Também não é uma questão de “crise de direção” apenas. Quantos movimentos são ou foram dirigidos por militantes que pensam assim e não se percebe nenhuma mudança no nível de mobilizações e organização?
Mais do que isso – agora falando diretamente para quem imagino que freqüente este espaço virtual – não é somente uma questão de implantar uma forma autogestionária, conselhista, federalista, ou coisa do gênero. Nossa tendência a crer que o problema pode ser resolvido dessa forma talvez reflita o desejo de que o problema esteja em nossas mãos, enfim, de que seja menos cabeludo do que é. Mas, se assim fosse, teríamos muitos exemplos de “sucesso” nos movimentos sociais. Quantas vezes militantes afinados com essa perspectiva não quebraram a cara diante da falta de participação nos movimentos e das imensas dificuldades para a mobilização?
Observando os movimentos sociais em geral, a verdade é que o nível de participação e mobilização não difere substancialmente quando ele tem uma direção pelega [fura-greves ou simplesmente reformista], uma “direção revolucionária” de tipo trotskista ou uma “minoria ativa” anarquista ou conselhista atuando. Obviamente as coisas não são iguais, mas estou me atendo ao nível de participação e mobilização real, que afinal é o objetivo de estarmos por lá (embora para muitos o movimento pareça ser um fim em si mesmo, um “brincar de casinha” onde tudo é puro e perfeito, embora socialmente estéril…).
Não estou apregoando que não há saída contra a burocratização, mas simplesmente propondo compreendê-la de outra perspectiva. Afinal de contas, quais as causas da imensa desmobilização? Porque o desinteresse pelos movimentos sociais? Onde a esquerda como um todo (nós inclusive e não apenas os malvados autoritários e reformistas) está errando?
Essa questão é a fundamental a meu ver. Porque movimento ou entidade com pouca participação é solo fértil para burocrata, seja ele bem ou mal intencionado. Depois de alguma experiência no movimento sindical isso ficou mais claro ainda para mim. Logicamente existem os vermes acomodados na estrutura. Mas também existem militantes sinceros que foram ficando, ficando até que se tornaram parte da coisa. E isso é mais preocupante do que burocratas mal-intencionados.
Compartilho aqui dois exemplos sobre os quais já pensei muito, e sinceramente não tenho resposta sobre o que fazer.
O primeiro é de um companheiro militante muito ativo, sincero, com toda uma formação antiburocrática. Depois de algum tempo atuando na base em seu trabalho, seu grupo constituiu uma chapa [lista] e ganharam a eleição sindical. Ele foi guindado à condição de presidente da coisa (é uma coisa mesmo…). Sempre defendeu o rodízio de cargos e a alternância do poder, debatiam isso, investiram na formação, fizeram greves combativas e bem longas para a atual conjuntura, diversas lutas etc. No fim do mandato não havia ninguém disposto a assumir a direção, pediam que ele ficasse, gostaram tanto que pararam de ir às assembléias por confiar na diretoria; enfim, um processo de acomodação que era combatido pela própria direção. Ele cogitou seriamente largar, mesmo assim ninguém se dispôs a assumir; e uma oposição do pior tipo ameaçava retomar o sindicato. Resultado: ele está lá no segundo mandato, com medo de que o trabalho tão árduo desmorone. Não é por dinheiro, porque não ganha o que ganhava na base e trabalha bem mais. O que você faria?
O segundo exemplo foi um debate dos mais duros sobre liberação sindical e rotatividade ocorrido num outro espaço de coordenação sindical. Foi sugerido o máximo de uma reeleição e mudança de pelo menos metade da diretoria a cada eleição. O clima esquentou. Reações e motivações das mais diversas. Paradoxalmente, havia o reconhecimento unânime de que isso seria o ideal, mas na prática a coisa emperrava. Havia os burocratas que nem se lembravam mais o que era trabalhar e que tremiam diante da proposta. Mas havia também – e aí mora a dificuldade – aqueles que afirmavam que na atual conjuntura as lutas não produziam militantes, que muitos ficavam lá a contragosto, que era difícil renovar, etc. Muitos eu conhecia e posso aqui afirmar que para uma boa parte não era um discurso corporativo hipócrita. Além disso, os trabalhadores ligados ao setor privado tinham outro argumento: quem voltar para a base – perdendo a estabilidade, obviamente – seria demitido sumariamente. E era a verdade nua e crua, ou alguém duvida da “capacidade” dos patrões. Seria um militante a menos na luta e faria muita falta certamente. Mas e daí? Esses eram os honestos, e os acomodados? O sindicato tinha virado seguro-desemprego? É isso? Vale correr o risco? Demissão de todos os lutadores em nome de uma medida antiburocracia? E depois? Ou dane-se?
Eu não tenho resposta. Seria fácil dizer que defendo a aplicação rigorosa de certos princípios férreos contra a burocratização e ficar com minha consciência tranqüila. Dane-se! Corramos o risco de ver todos demitidos e depois a classe que se vire para impedir isso na luta? Não tenho resposta.
Estou aqui compartilhando francamente algumas idéias e experiências. Sabemos o que fazer “tecnicamente” contra a burocratização há tempos: cargos renováveis, nenhum privilégio econômico ou de poder, espaços de decisão abertos, etc. As formas específicas variam sempre, mas esse não me parece o problema. Ficar nele é procrastinar.
O burocrata ocupa espaços vazios e ali se instala, é preciso criar pressão para retirá-lo. E essa pressão só pode vir de participação e mobilização. Portanto, a perspectiva que me parece mais fértil é deslocar o debate para a questão da participação e mobilização, saindo de um círculo fechado onde a questão da burocratização, tornando-se um fetiche, será eternamente discutida e jamais resolvida.
A leitura deste excelente artigo suscitou-me duas reflexões.
Foi Jean Paul Marat quem pela primeira vez analisou de maneira sistemática o facto primordial da ordem política. Machiavelli, Jean Bodin, Hobbes e os outros clássicos haviam partido de um pressuposto, a existência do Príncipe, da autoridade soberana. Mas Marat colocou a questão ao contrário: por que motivo a plebe deixa o déspota existir? Para ele, o problema fundamental era o controlo exercido sobre os representantes, e tal controlo devia ser permanente. Este problema ocupara Marat já antes da Revolução Francesa, numa obra escrita no exílio inglês, Les Chaînes de l’esclavage (As Cadeias da Escravidão). E foi aquela interrogação, pendente como uma ameaça, que orientou a intervenção política de Marat durante a Revolução. Será que, como uma suspensão num líquido — perguntava ele — é necessário um permanente trabalho de agitação para que a plebe fique atenta e impeça o restabelecimento do despotismo? Será que não existe uma forma de organização da plebe que, uma vez institucionalizada, evite qualquer risco de despotismo? Será que não se consegue quebrar de vez a apatia e a falta de participação? Toda a acção de Marat depois de 1789 se orientou no sentido de reforçar a mobilização de base, mas foi assassinado sem ter conseguido solucionar o problema na prática, e legou-o às gerações seguintes, que também não o souberam resolver.
Quando eu estudei a obra de Marat, há trinta ou quarenta anos, quase não havia edições modernas dos seus textos. Não sei se a situação entretanto mudou. Mas na época, em França, uma colecção de bolso de grande difusão, a 10/18, orientada por pessoas de extrema-esquerda, pusera a circular Les Chaînes de l’esclavage. De resto existiam apenas algumas antologias editadas pelo Partido Comunista Francês e pelas publicações soviéticas em línguas estrangeiras. E nestas antologias estavam cuidadosamente suprimidas as passagens em que Marat se referia à organização de base. A tal ponto, dois séculos depois, o problema continuava a ser vital para os novos déspotas, ou candidatos a déspotas! Para ler integralmente Marat tive de consultar numa biblioteca de Paris os exemplares do jornal que, por vezes com risco de vida, ele publicou durante a Revolução Francesa. Mesmo para um pesquisador devotado e alheio ao fetichismo dos documentos, a emoção foi grande ao ter nas mãos aqueles papéis ilustres.
Se o problema da apatia da base, levantado por Marat, continua a ser o nosso problema, e se ele tinha tanta urgência na época da Revolução Francesa como tem hoje, é porque esse é o ponto crucial do confronto entre as classes. Os exploradores nunca venceram só a partir do exterior. Têm conseguido vencer porque têm absorvido uma parcela da vanguarda constituída no interior da classe explorada, revitalizando com ela as classes dominantes. Não se trata nunca de uma luta dupla, trabalhadores de um lado e burgueses do outro. Trata-se sempre de uma luta tripla, em que parte da classe dos gestores se coloca ao lado da burguesia e outra parte se coloca ao lado dos trabalhadores. A situação é mais complicada ainda, porque no interior da classe trabalhadora, através da burocratização das organizações, se formam novos gestores. E a burocratização ocorre quando as bases se tornam inactivas. A passividade é a causa originária da burocratização, embora os burocratas, em seguida, estimulem a passividade para continuarem a sustentar-se. O perigo para que Marat alertara é o mesmo perigo que desde então continua a ameaçar: o perigo da apatia que permite a formação de burocratas, o perigo da conversão das vanguardas em burocracias e das burocracias em elites, e o perigo do rejuvenescimento das classes dominantes graças a essas novas elites. Quando a revolução perde o fôlego é porque os gestores de esquerda e as vanguardas convertidas em elite se reunificaram com os gestores de direita, dando ao capitalismo novos fundamentos, mais sólidos.
Enquanto o capitalismo durar, durará este perigo. Mas as derrotas que os trabalhadores têm sofrido não são um simples recomeço. Atingem-se novos patamares, com novas oportunidades, mas também com outros riscos. Por isso a questão tem de ser discutida de cada vez. É o que estamos aqui a fazer.
Exato, o problema não é haver a ou b, mas as pessoas aceitarem que as coisas sejam assim. Precisa começar a ser discutida a razão de as pessoas não participarem, de as pessoas aceitarem, de as pessoas não quererem saber. Talvez seja o caso de se pensar que luta por igualdade efetiva seja sempre atividade de uma minoria, mesmo que heroica e/ou suicida, e são apenas momentos episódicos que criam grandes atuações de massas. Talvez, ao invés de nos questionarmos porque as coisas não acontecem, seria o caso de irmos indagar o que houve de diferente que fez com que surgissem pontualmente grandes momentos de agito. As revoluções são exceções cujas imagens míticas deixamos que poluam nossa percepção das coisas.
Há luta? Claro que há, mas não aquela que nós desejamos e nem as que mistificamos. O peso da existência é grande demais e tantos outros temas se colocam para as pessoas em sua vida cotidiana. Elas passam a vida lutando dentro de um cosmo quase imperceptível. Há o peso da cor da pele, o peso da estética, o peso da pobreza/miséria, da origem geográfica, da questão de gênero, das redes sociais e afetivas, da opressão do vizinho…É tanta coisa com a qual se tem que lutar que não sobra tempo para se pensar em grandes reformulações, participações e projetos. A luta do dia é a luta da vida, do estar vivo no dia seguinte ou não humilhado. Em meio a este caos todo, na maioria das vezes, quem se apresenta chamando para a participação quer, na verdade, usar-nos para ascender e ao nosso lado não há muitos que desejam construir uma parceria, também ansiosos de serem chefes, de terem status, de terem dinheiro/poder. A situação é pesada.
Olá,
Tanto o texto aqui em destaque, quanto o comentário de João Bernardo, são fundamentais para nossa reflexão em torno das experiências participativas e autogestionárias em processos intensos de mobilização de base.
O texto em questão, por exemplo, chama a atenção para a importante articulação entre o fazer (os acontecimentos relatados) e o pensar sobre (tentativa, séria e sem respostas fáceis e retóricas, de entendimento dos fatos).
Já o comentário do João Bernardo destaca, mesmo que indiretamente, o papel até aqui desempenhado pelo Coletivo Passa Palavra e todos aqueles que estão engajados nessa iniciativa: justamente o nome de nosso especial, ou seja, pensar a esquerda – em sua prática e experiências – por dentro e por fora.
Não se trata de vangloriar um grupo, ou qualquer coisa parecida: mas, sim, de reconhecer essa característica do trabalho até realizado por este sítio.
Realmente, o especial tem sido de grande valia e formação para a esquerda não-ortodoxa – que quer, mesmo, encarar de frente algumas questões sempre formuladas, mas pouco aprofundadas.
Abraços.
Bom texto R. Rugai…
Lembrou muito sua fala em 2005 num debate do pré-congresso dos estudantes de história. Na oportunidade, chamamos você, o Nabil (PT) e o José Anibal (PSDB). Até hoje não entendi porque raios esse último foi chamado.
O debate foi sobre “Representação e Representatividade” e lá você nos alertou sobre o ciclo vicioso que geralmente esse debate leva. Ainda mais na História-USP onde a idéia de C.A. autogestionário sempre reaparece (os últimos dois congressos [2008 e 2010] foi a mesma coisa).
Devemos também pensar o que é exatamente “participação”. Ao contrário do que muitos dizem, hoje vivemos uma sociedade extremamente participativa. Somos constantemente convocados a “fazer coisas”. A todo momento estamos “fazendo coisas” lá onde de fato não fazemos nada.
A ação política foi substituída por esse “fazer coisas”. Como disse o R. Schwarz (num outro contexto): Nunca fomos tão engajados! Hoje poderíamos reformular: “Nunca fomos tão participativos”.
Também não tenho resposta… Mas essa virá dos movimentos, que de uma forma ou outra, estão agindo políticamente.
Tanto o artigo como o debate estão muito bons. Este tema, da burocratização dos movimentos sociais, deve ser tratado e retratado nestas espaços, sempre se buscando aprofundar mais no tema. Neste sentido, não é a toa que este site sirva de espaço para estes debates, assim como os trechos em que Marat tenha se referido às organizações de base tenham sido suprimidas pelos bolcheviques/stalinistas da França e da URSS.
Mas, entrando no debate em si, o artigo propõe interessantes reflexões. A mais importante creio ser a de desfocar o debate do ponto direção (vanguardismo)/ assembléia (base) para o da participação em si. Pensando assim, meu raciocínio logo aponta para a distinção entre períodos revolucionários e períodos de não acirramento da luta de classes. Entretanto, pensando assim não se reflete de fato sobre os fatores da mobilização, e que são milhares…
Um grupo/coletivo que não ficou restrito à crítica às organizações burocráticas (partidos, sindicatos, Estado, etc) mas “avançou” para a crítica a própria classe ou grupo dominado foram os situacionistas. Para isto basta ler qualquer um dos documentos deles, principalmente o “A Miséria do meio estudantil” (obs, não trato aqui os estudantes como grupo dominado).
Quando às citações sobre o ME, principalmente nos parágrafos 6, 7 e 8. Isto me fez lembrar do tempo em que militei no ME aqui em Manaus. É como se o ME, pelo menos nos cursos mais participativos politicamente, vivesse em ciclos, e não conseguisse superar isto. O eterno retorno do mesmo. No caso da Estadual de Manaus me pareceu ser uma deficiência muito grande no projeto político dos estudantes que criticavam os “partidários”. Acabou que a disputa ficou muito presa a estes e eles uma vez “vencidos” acabou o confronto e a graça do ME.
Pra finalizar, no caso do sindicalista que está “preso” na direção do sindicato, eu tomaria uma atitude situacionista. Neste caso, eu renunciaria sem dúvidas, até porque, se for pra tirar os burocratas para colocar no lugar uma pessoa, qual a diferença? Deixa então o burocrata lá, pelo menos ele vai ganhar algo com isso…(no mínimo, um pretigiozinho dentro do partido)…. Ah, e aproveitaria a oportunidade pra tentar criar
uma situação…
Assim como ocorre com o voto, deveria haver alguma lei e correspondentes punições que obrigassem as pessoas a lutar, a participar e se interessarem por sua própria libertação e melhoria de vida.
Será que daria certo?
Muito bom o artigo. Contribui bem com a discussão da burocracia a partir de reflexões teóricas e fundamentalmente práticas que se colocam no dia-a-dia. Estou preparando um material para essa discussão da burocratização e incorporei argumentos deste artigo.
Há algumas questões fundamentais. Primeiro, essa reflexão de que a burocratização é um problema. No entanto, ela se restringe aos setores já mobilizados, que hoje são minoria. Portanto, a grande questão é a dificuldade de mobilização, problema que deve ser considerado o mais relevante hoje para a esquerda mais combativa e autônoma. Segundo, o texto foge de uma análise maniqueísta, baseando-se no cotidiano da luta, que realmente traz questões complicadas e que não possuem uma resposta que pode ser dada à priori.
Ainda que eu me esforce bastante para fazer reflexões teóricas sobre esses temas, estou cada vez mais convencido que, sem a prática, muitas vezes nos perdemos em problemas que não são reais e não tocamos em outros, muito importantes. Esse artigo, a meu ver, contribui com questões práticas relevantes e, de fato, muitas vezes difíceis de se resolver.