Por Felipe Corrêa

 

Leia a primeira, a terceira, a quarta, a quinta e a sexta partes desta série.

A “Cultura da AGP” no Brasil e os “Novos Movimentos Sociais”

Ainda que sob a ditadura militar (1964-1985), desenvolvem-se no Brasil movimentos populares amplos e radicalizados. Nas cidades, cresce, já nos anos 1960, mas fundamentalmente nos fins dos anos 1970, o chamado “Novo Sindicalismo” que, por exemplo, em 1979, protagonizou 430 greves — crescimento que também se evidencia com a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Coordenação Nacional da Classe Trabalhadora (CONCLAT). Por outro lado, desenvolve-se, em grande medida estimulado por setores progressistas da Igreja Católica, um movimento comunitário de base, forte e algumas vezes bastante radicalizado, que tomou corpo e foi impulsionado pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). No campo, já nos anos 1980 ocorrem greves de bóias frias em várias partes do país e cria-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

1-1981_conclatEsse fluxo de lutas traz dois aspectos relevantes. O primeiro, a opção estratégica que termina por canalizar praticamente a totalidade do movimento sindical e comunitário na base social que impulsionaria o Partido dos Trabalhadores como uma alternativa parlamentar e institucional aos movimentos. Esse fato, dentro de algum tempo, contribuiu com a burocratização dos movimentos e com a significativa perda de suas bases. O segundo é que tanto os movimentos das cidades quanto os do campo constituem modelos de movimentos populares ainda bastante clássicos — principalmente no que diz respeito às questões de classe (eram, em grande medida, movimentos da “classe trabalhadora”), que se articulavam em torno de necessidades materiais, e que se organizavam de maneira hierárquica, constantemente burocrática. Eram, em suma, movimentos populares clássicos.

Por mais que as mobilizações como as Diretas Já e as lutas contra a ditadura envolvessem estudantes e jovens, foi somente nos fins dos anos 1990 e início dos anos 2000 que a cultura dos chamados “Novos Movimentos Sociais” chegou e se estabeleceu, de fato, no Brasil. Essa cultura militante, que havia surgido nos Estados Unidos e na Europa, ainda nos anos 1960 e 1970, e que foi teorizada por intelectuais como Alberto Melucci e Alain Touraine, trazia novos elementos em relação aos movimentos populares clássicos.

Os chamados “Novos Movimentos Sociais”, expressão que se generaliza a partir dos anos 1960, são impulsionados por uma ampla variedade de grupos: estudantes, pacifistas, ecologistas, feministas, de defesa dos direitos dos homossexuais, medicina alternativa, direitos dos animais, entre outros. Com seu surgimento, foi necessário que se formulasse um novo referencial teórico para interpretar esses movimentos, os quais possuíam maior heterogeneidade do que os movimentos clássicos, e eram caracterizados, em grande medida, pelas mudanças culturais do período. Protagonizados em sua maior parte pela juventude, os novos movimentos contavam com uma base vinculada às culturas alternativas e a estilos de vida que questionavam as normas culturais vigentes. As reivindicações apresentavam-se associadas a símbolos, crenças, valores e significados coletivos, relacionadas aos sentimentos de pertencimento a um grupo diferenciado e com o sentido existencial dado por cada indivíduo a si mesmo. A democracia transforma-se em uma necessidade organizacional dos movimentos, sem necessidade de ser legitimada por ideologias bem definidas como o marxismo, o anarquismo, o liberalismo, o nacionalismo etc. [Enrique Laraña. La Construcción de los Movimientos Sociales]

agpNo Brasil, isso se evidencia de maneira mais clara no início dos anos 2000, com o estabelecimento da AGP no país, ainda que seja possível, anos antes, identificar traços desse tipo que seriam acentuados com o passar do tempo. Se a AGP, portanto, não criou a cultura dos Novos Movimentos Sociais no Brasil, pelo menos ela foi um fator enorme de impulsão e auxiliou de maneira determinante seu estabelecimento no país. Aglutinando distintas reivindicações, o novo movimento surgido com a AGP buscava articulá-las por meio de uma plataforma comum. Constituído na maior parte por jovens estudantes — muitos deles vinculados à contracultura, que crescia desde os anos 1980 — as manifestações e seu próprio processo organizativo adquiriram caráter libertário, influenciadas, em grande medida, pelas organizações internacionais envolvidas no movimento, e por indivíduos que, no Brasil, estavam no centro da organização e que defendiam posições anarquistas, libertárias, autonomistas ou de certo marxismo heterodoxo. O neozapatismo foi o movimento que uniu toda essa “nova esquerda”, de caráter autônomo e libertário, conciliando distintas ideologias no seio de um mesmo movimento e também influenciando o caráter que lhe seria dado. Adotam-se assembléias e métodos horizontais para as tomadas de decisão, propõe-se a integração das diversas bandeiras de luta sob o guarda-chuva do anticapitalismo, incorporam-se demandas identitárias e culturais distintas, valoriza-se o pluralismo e o discurso do “novo” em relação ao “velho”, caracterizado, em muito, pelas formas hierárquicas de organização, como os partidos, os sindicatos etc.

Ainda que o MST tenha feito parte da discussão inicial e da fundação da AGP, o fato é que, com o passar do tempo, ele se distanciou do processo e os coletivos e grupos de afinidade que ficaram encarregados da articulação possuíam bases sociais muito restritas — para não dizer, generalizando, nenhuma. Portanto, similarmente às características do movimento em outros lugares do mundo, a base classista, característica central dos movimentos “clássicos”, era escassa, ou mesmo praticamente nula.

O caldo organizativo de cultura militante, que chamo aqui de “Cultura da AGP”, foi caracterizado pela promoção de posições, em grande medida, autônomas, libertárias e bastante renovadas no que diz respeito à velha e clássica esquerda. Essa nova esquerda caracterizava-se por uma crítica à “velha esquerda” e promovia elementos que tiveram consequências significativas, muitas vezes negativas.

  • Valorizava-se a cultura e a identidade, mas se perdia a noção política de intervenção na correlação de forças da realidade, fazendo com que o movimento se voltasse mais para si mesmo do que para fora;

  • Estimulava-se a amizade e os vínculos pessoais, muitas vezes em detrimento da convivência política e de uma posição programática e uma política de alianças consistentes;

  • Criticava-se a concepção restrita de classe fundamentada no proletariado urbano-industrial, mas se abria mão de uma nova caracterização das classes, do processo de luta de classes e da sua centralidade nas lutas;

  • Estimulava-se a participação de jovens estudantes, mas, ao mesmo tempo, promovia-se o fim de uma política classista e a intervenção sem representação mais ampla de setores populares;

  • Propunha-se o novo contra o autoritarismo das antigas formas de organização, não sem promover certa arrogância e impedir a participação de movimentos com bases mais amplas;

  • Criticava-se o compromisso e a disciplina autoritários, ao mesmo tempo em que se descartava a necessidade da responsabilidade militante, do trabalho regular e do trabalho de base;

  • Pensava-se em novas formas de mobilização, não sem fazer com que a festa substituísse a luta;

  • Pregava-se contra a intervenção somente teórica da velha esquerda, assim como seus dogmatismos e sectarismos, e sustentava-se a ação nas ruas, a prática como resposta, não sem criar um “praticismo” que evitava a reflexão crítica, o aprofundamento teórico-ideológico e a promoção de slogans vazios de conteúdo;

  • Encorajavam-se os processos de tomada de decisão democráticos, não sem criar mitos e dogmas como as decisões por consenso, a necessidade de todos participarem de tudo e uma cultura do “tudo é permitido”, que inverte a noção de autoritarismo;

  • Promovia-se a falta de estrutura, muitas vezes associando organização a hierarquia e a dominação, proporcionando espaço para o surgimento de “tiranias das organizações sem estrutura”;

  • Justificava-se a necessidade de integração e internacionalização das lutas, mas, ao mesmo tempo, suprimia-se a necessidade de se conceber estratégias adequadas a cada realidade e promovia-se um discurso e uma prática afins com o espontaneísmo;

  • Valorizavam-se as novas formas de comunicação — como a internet, que surgia constituindo uma ferramenta central para o movimento — e as novas tecnologias, não sem desvalorizar o trabalho concreto e acreditar que elas, por si mesmas, poderiam ter algum conteúdo político ou libertador.

black-blocEm suma, por um lado, esse novo movimento forjado pelas bases da AGP promovia questões absolutamente centrais (valorização da cultura e da identidade coletiva; a ênfase na construção de novas relações e vínculos pessoais, a participação da juventude, a crítica ao autoritarismo da velha e clássica esquerda, a necessidade de novas formas de mobilização, a prática de luta concreta, a necessidade de democracia ampla nos processos de decisão, o abandono de posturas dogmáticas e sectárias, a integração e a internacionalização das lutas e a promoção de novas tecnologias e ferramentas de comunicação). Por outro, trazia junto com essa promoção, outras características que lhe condenariam seriamente dentro de um prazo não muito longo (falta de perspectiva política classista e popular, abandono das propostas programáticas e das políticas de aliança, criação de uma cultura da irresponsabilidade e da falta de compromisso — do “faço quando der e quando eu estiver disposto”, a falta de um trabalho regular e do trabalho de base, a substituição da luta pela festa, a falta de reflexão crítica e de produção teórica e ideológica de nível, o estímulo das posições individuais em detrimento do coletivo, o “democratismo”, o espírito autocomplacente, o surgimento de lideranças que se beneficiavam da falta de estrutura do movimento, a falta completa de estratégia, o espontaneísmo e a crença de que nas novas tecnologias e nas novas ferramentas de comunicação havia um conteúdo político).

Nesse sentido, o processo responsável pela criação da Cultura da AGP foi constituído por um esforço, em grande medida libertário, de contrapor uma esquerda clássica e autoritária, que até então vinha detendo a hegemonia dos processos de mobilização. Buscando superar os problemas dessa esquerda, a cultura dos novos movimentos promovida pela AGP incorreu em outros, talvez até mais problemáticos. Foi uma construção realizada com base na crítica à esquerda clássica. E foi por falta de debate sério, de um processo aprofundado de crítica e autocrítica, que o movimento errou onde errou e não foi capaz de superar os seus erros. Se fosse perguntado abertamente aos grupos e indivíduos que atuavam inspirados na AGP se eles estavam de acordo com muitas dessas características (por exemplo: estamos negando abertamente a necessidade do trabalho de base?), certamente se contestaria (claro que não!). Isso evidencia que, muito pela falta da discussão coletiva, envolvendo esse processo crítico, e pela cultura tática, de curto prazo, que impedia reflexões mais aprofundadas, esses aspectos foram se evidenciando, tomando conta do movimento, garantindo uma certa hegemonia, afastando pessoas que discordavam deles, e, por fim, acabando com o próprio movimento.

A tese central do texto é essa. A AGP buscou oferecer alternativas à esquerda clássica e autoritária. Fez isso e demonstrou sua limitação, já que, junto com as soluções propostas, e que foram levadas a cabo, vieram outros problemas. Seu refluxo deveu-se, mais do que a qualquer outro fator, às insuficiências que foram geradas e mantidas dentro do próprio movimento. Em suma, o principal responsável pelo refluxo da AGP, foi a própria AGP e a cultura que foi promovida e incorporada como modus operandi dessa rede.

0630wtowinningSe a esquerda deseja, de alguma maneira, repensar seu projeto político, criar uma nova esquerda que supere os vícios da antiga e possa apontar para algo distinto, é fundamental que se realize uma análise crítica desse processo.

Seguindo a estrutura de aspectos positivos e negativos apresentada anteriormente, pretendo apresentar uma reflexão crítica de aspectos centrais do Movimento de Resistência Global no Brasil, colocando, algumas vezes, e sempre em nota, “causos” que, ainda que dêem ao texto caráter bastante informal, sustentarão seus principais argumentos. Manterei sempre uma estrutura parecida nos tópicos, apresentando o problema colocado, como se buscou solucioná-lo e as consequências envolvidas nessa construção em cima da crítica à velha esquerda.

(Continua)

A Bibliografia virá no final desta série.

1 COMENTÁRIO

  1. Caro Felipe, estou plenamente de acordo com seu texto, particularmente no que diz respeito a limitação de autocritica e planos a medio e longo prazos. A ação direta se esvaziou em parte porque acreditou-se que ela seria suficiente por si mesma. Mas acho que outro ponto importante a ser considerado foi a maneira que vários coletivos e individuos lidaram com a repressão e a criminalização, particularmente das manifestações. Depois do A20 muitas pessoas decidiram “abandonar” o barco… depois de 2001 e o 11 de setembro e sua guerra contra o terror esvaziou a coisa em muitos lugares do mundo. Parece-me que um elemento de temor, de riscos concretos de morte, de prisoes e etc produziu algo novo que até entao as pessoas pensavam e imaginavam, mas que nao tinham experimentado da forma que aconteceu. Outro problema que sempre apareceu foi a questão Publico/Privado. As vezes penso que muita gente acreditou que a AGP seria parte da solução da crise de sentido (e politica) que sentiam (sentem?). Evidente que um tanto de paixão e furia é fundamental para qualquer luta politica, e que acabamos por colocar muitos de nossos sonhos e desejos nisso, não acredito que possa ser diferente, mas enfim , um modo de se relacionar as vezes ingenuo que esquecia das contradições inerente a todos os seres humanos, e muitos conflitos subjetivos, assim como alguns compromissos estavam muito mais relacionados a uma vontade de pertencer a um coletivo novo, com novas promessas do que apenas a falta de disciplina. As vezes eram diferentes prioridades. Um forte fator psicologico esteve presente e que nunca foi considerado adequadamente: Ou as pessoas desconsideravam qualquer coisa nesse sentido ou justificavam o fato de não nos ocuparmos disso alegando pertencer ao campo privado, sem estar relacionado com o público. A politica subjetiva do privado e do publico não pode ser enfrentada nos momentos de medo e crise.
    Bom texto meu velho!

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