Por Passa Palavra

Há quem nos pergunte que medidas adiantamos, qual o nosso programa, e se espante por fazermos críticas sem as acompanharmos com propostas. Já noutra ocasião respondemos a uma perplexidade idêntica, quando escrevemos o artigo «Passa Palavra: críticas e propostas». Mas tratava-se então de acusações que nos eram dirigidas — e continuam a ser — pelo facto de termos violado a conspiração do silêncio que envolvia as discussões internas nos movimentos sociais. Analisámos os mecanismos de burocratização que ameaçam mais ou menos seriamente esses movimentos, com especial gravidade no mais importante de todos, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, MST, e expusemos as relações íntimas que se têm gerado entre o MST e o governo e mesmo entre o MST e algumas grandes empresas com interesses na agricultura. Continuaremos a fazê-lo, porque achamos que estas críticas são, por si mesmas, construtivas. Não é com ilusões que se avança, mas com olhos abertos.

Mas a situação em Portugal é muito diferente do Brasil no plano político, porque não existem movimentos sociais nem, para já, nada que possa evoluir nesse sentido. É oposta também economicamente, porque enquanto os capitalistas brasileiros souberam aproveitar a crise para consolidar o desenvolvimento económico e conseguiram transformar o país num neo-imperialismo, em Portugal a crise expôs aos olhos de quem quer ver o arcaísmo e a incompetência dos empresários e reduziu às devidas proporções o surto de crescimento verificado até ao começo deste século. Assim, parece-nos conveniente explicar para o caso português com que objectivo fazemos críticas e o que entendemos por propostas.

Não somos promotores de nenhum partido

Somos um colectivo que mantém um site e não somos promotores de nenhum partido, existente ou por existir, o que não nos impede de ser um colectivo militante, como pode verificar-se pelos artigos que desde há quase quatro anos têm dado corpo ao Passa Palavra.

Isto significa que não rodamos na órbita de nenhum daqueles partidos que têm alternado no governo, mas pensamos que a este respeito ninguém tinha dúvidas. O que importa dizer é que também não rodamos na órbita de nenhum daqueles partidos acerca dos quais se pode admitir com verosimilhança — ou pelo menos sem total inverosimilhança — que um dia venham a encarregar-se de alguns ministérios. Mais directos ao assunto, também não somos agentes de nenhum partido em formação ou que esteja para chegar no bico da cegonha. E, para quem ainda não entendeu, somos igualmente alheios às organizações anarquistas, que são partidos em tudo excepto no nome. Em resumo, a plataforma que nos une não é doutrinária mas prática e partilhamos perspectivas de análise crítica.

Seria escusado explicá-lo, bastaria percorrer um pouco este site, mas não se perde nada em repeti-lo.

Não nos cabe traçar planos de governo

Por isso não nos cabe traçar planos de governo, assim como não nos interessa costurar programas destinados a cativar o público. Também não usamos a internet como substituto da política real. Deixamos esses planos e projectos e programas àqueles que estão ou julgam estar nas proximidades da governação ou imaginam influir nela através de documentos. Isso compete aos capitalistas e aos seus agentes.

Mas não queremos deixar de notar que enquanto à esquerda vários comentadores argumentam que não apresentamos propostas concretas, essa mesma esquerda não se coíbe de desprezar os processos económicos concretos inerentes à manutenção ou ao abandono do euro. Ora, nós analisámos variadíssimas vezes esses processos económicos, o que a maioria dos nossos comentadores preferiu ignorar.

Destacam-se assim dois vícios enraizados na esquerda portuguesa que se diz anticapitalista. Por um lado, é incapaz de discutir o capitalismo enquanto sistema sócio-económico, limitando a crítica ao plano político e moral. Assim se apaga a dinâmica económica e se confunde a crítica com o ressentimento. Por outro lado, amplos sectores da esquerda continuam presos à ilusão de que bastaria um governo de coloração mais ou menos progressista para inverter a actual política de austeridade. E assim não só o capitalismo fica intacto como as lutas sociais são reduzidas a uma forma de pressão para um novo governo de esquerda, na vã esperança de eleger os mais lídimos representantes do povo.

Se nos abstemos de traçar planos de governo não é por ortodoxia ou devoção, mas simplemente por sensatez. É-nos indiferente que governe em Portugal o Partido Social-Democrata ou o Partido Socialista, porque não são eles quem governa. E isto não se passa apenas em Portugal, foi uma evolução verificada em todo o mundo.

As grandes companhias transnacionais constituem centros de poder

Quando o voto era censitário, quer dizer, quando só podia votar quem pagava acima de um dado montante de imposto, ou quando a capacidade eleitoral se reservava a quem sabia ler e escrever numa época em que as grandes massas eram analfabetas, então podia dizer-se que os governos correspondiam à célebre definição e eram o comité de negócios da classe dominante. Mas progressivamente o voto foi-se universalizando e, mesmo detendo o controlo sobre os meios de comunicação e podendo influir no sufrágio, os capitalistas não se arriscaram a perder o aparelho político.

Assim, a expansão da democracia assente no voto universal teve como efeito a passagem gradual do poder para órgãos não eleitos e muitas vezes nem sequer reconhecidos formalmente. O povo elege pessoas para compor órgãos que perderam a influência. Consoante os países, os comités de assessores passaram a prevalecer sobre os ministros, os comités especializados começaram a prevalecer sobre as reuniões plenárias do parlamento, tornaram-se regulares as reuniões informais entre governantes e grandes empresários e nalguns casos, como nos Estados Unidos e agora no Brasil, adquiriu um peso político crescente o Supremo Tribunal, composto por magistrados não eleitos. Sobretudo nas seis ou sete décadas posteriores à segunda guerra mundial desenvolveu-se um aparelho burocrático e tecnocrático, que constitui a colossal parte imersa do iceberg político e tem nos órgãos eleitos a pequena parte visível.

A alteração dos eixos e dos planos do poder político tornou-se ainda mais drástica a partir da crise económica da segunda metade da década de 1970, quando a internacionalização do capital começou a dar lugar à sua transnacionalização. Na fase da internacionalização do capital, as grandes companhias multinacionais adoptavam uma estrutura em que a sede se localizava num país e as filiais reproduziam em ponto pequeno a organização da sede, reservando-se a sede o exclusivo de algumas funções consideradas estratégicas. Na fase actual, porém, cada grande companhia transnacional articula diversas cadeias produtivas cujas empresas componentes se espalham por uma variedade de países, de modo que a articulação de todas as cadeias produtivas pode não estar concentrada numa sede comum. Na fase da internacionalização as grandes companhias ultrapassavam as fronteiras nacionais, investindo em novas empresas e na produção local nos países onde as pautas aduaneiras pretendiam regular o comércio externo. Isto continua a suceder, mas foi-se mais longe. Hoje as grandes companhias, ao integrarem nas mesmas cadeias produtivas empresas dispersas por diferentes países, desenham uma geografia própria, que já não corresponde à geografia política existente.

Deste modo, as grandes companhias transnacionais constituem centros de poder que não só estão acima dos governos nacionais mas além disso se situam noutro plano.

Até uma época recente os governos e os parlamentos ocupavam um espaço necessário entre as grandes empresas e a população. As grandes empresas podiam dominar por dentro os órgãos políticos eleitos, mediante a colocação de assessores e a regularidade com que procediam às reuniões informais com os governantes, mas precisavam dos governos como intermediários entre elas e a população. A situação mudou e hoje as grandes empresas já se apresentam directamente à população como interlocutores políticos. Fazem-no através de fundações que adquirem um papel decisivo na vida cultural; através de Organizações Não Governamentais, que estão para as grandes empresas como outrora as Frentes estavam para os Partidos Comunistas que lhes puxavam os cordelinhos; ou simplesmente através da filantropia, exercida numa enorme escala mundial.

E assim como o capitalismo de mercado tem em Adam Smith e Ricardo os seus teorizadores clássicos e como a crítica ao capitalismo teve o seu teorizador clássico em Marx, também a soberania política das empresas tem um teorizador clássico — Saint-Simon. Quem quiser entender as formas políticas contemporâneas e o papel desempenhado pelas grandes empresas fará bem em ler a obra de Saint-Simon, porque o facto de ele ter morrido há já quase dois séculos não lhe retira a actualidade.

A nossa seara é outra

Ora, Portugal não constitui excepção nestas mutações, por isso nos é indiferente saber quais os senhores e as senhoras que ocupam as cadeiras dos ministérios. Se o poder não reside nos governos mas nas burocracias e tecnocracias estatais e para-estatais, nas redes de grandes empresas e nalgumas grandes instituições financeiras supra-nacionais, então nada se consegue com programas estritamente eleitorais nem apresentando aos governantes ou deputados propostas e petições. Os governos só podem ser inflectidos por uma forte pressão popular.

É aqui que o Passa Palavra pretende contribuir com as críticas que apresenta. Mantemo-nos exclusivamente neste quadro ao afirmarmos que o abandono do euro seria catastrófico para as condições de vida e de luta da classe trabalhadora. Aos capitalistas, aos agentes do capitalismo e à multidão dos seus presumidos agentes deixamos o encargo de fazer programas de governo. Para empregar uma bonita expressão brasileira, a nossa seara é outra. E notem que pensar estratégias de luta não dá menos trabalho do que pensar estratégias de governo.

A dificuldade de unir os trabalhadores estáveis e os precários

Surge aqui o primeiro grande problema. Para que a classe trabalhadora consiga inflectir os governos é necessário que a pressão da rua seja acompanhada por lutas nos locais de trabalho, e não é isto que se tem passado em Portugal. As greves gerais organizadas pela Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses, CGTP, surgem como rituais periódicos ditados a partir de cima, sem nascerem de qualquer generalização da contestação nas empresas, e conseguem algum êxito só na medida em que param os transportes públicos.

Quem discorde desta análise ou julgue que exageramos pode ver o que se passa com a luta dos estivadores, que, apesar de ser organizada por um sindicato filiado à CGTP, não conta com o apoio activo da Central. O Avante, órgão do Partido Comunista, que constitui a força dominante na CGTP, mencionou muito brevemente a luta dos estivadores em 16 de Agosto e voltou a referi-la em 23 de Agosto e em 27 de Setembro. Bastaria isto para concluir que houve um certo apoio enquanto o movimento permaneceu sob o controlo do sindicato, mas quando se radicalizou, adquiriu notoriedade nos meios de comunicação e os empresários pediram a requisição civil, a luta dos estivadores desapareceu do Avante e nunca surgiu nos sites do Partido Comunista e da CGTP. A raíz do problema é, todavia, muito mais profunda, porque se as pressões da base fossem grandes em todos os sectores, a CGTP não teria outra solução senão apoiar lutas como aquela. E chegámos assim à espantosa situação de o secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, num comício em 31 de Outubro, se ter dirigido aos estivadores pedindo-lhes que parassem de fazer barulho e explicando-lhes que «a polícia não faz mal à gente». Não deixem de ouvir. O mais preocupante, a nosso ver, é que os restantes trabalhadores que assistiam ao discurso não vaiaram Arménio Carlos.

Uma das dificuldades principais é suscitada pela necessidade de unir numa frente comum os trabalhadores com estabilidade de emprego e os trabalhadores precários. Mas isto não pertence ao horizonte imediato nem está nas mãos de ninguém realizar a curto prazo uma tal convergência.

O yoga do riso

Toda uma nova ordem do trabalho foi delineada e difundiu-se pelo mundo na sequência do sistema de produção usualmente denominado toyotismo. Ilustrada por conceitos como capital humano ou inteligência emocional, o seu objectivo é aprofundar a lógica da mais-valia relativa, atingindo áreas nunca antes vislumbradas. A partir do momento em que o cérebro é, em parte, a máquina por excelência, o desenvolvimento tecnológico terá que visar uma potencialização desse aparelho. Não nos referimos apenas ao aumento dos níveis de qualificação dos trabalhadores, mas a um higienismo mental que, entre outras iniciativas, se manifesta na organização de workshops de yoga do riso, para que um trabalhador menos stressado e mais motivado possa emergir. A auto-ajuda ao serviço da exploração.

A precariedade é inseparável deste processo. A pretensa resposta às oscilações da oferta e da procura do mercado de trabalho não pode deixar de expor o seu cariz mitológico, quando confrontada com o alastramento do fenómeno a todo o tipo de trabalhos. Não se trata, neste sentido, de despedir — aliás, como agora se diz, dispensar — trabalhadores, mas sim de auferir das benesses da sua insegurança em relação ao futuro. Noutras palavras, mais trabalho por menos dinheiro.

A cisão entre os trabalhadores estáveis e os precários é tão profunda que só poderá ser colmatada por uma grande vaga de lutas e, como o problema é mundial, não parece possível que tal convergência se efectue apenas dentro das fronteiras de um país, ainda para mais diminuto e desprovido de importância como é Portugal.

Serão os alemães malvados?

Aqui surge a outra grande dificuldade. A maior parte da esquerda tende a considerar o internacionalismo como uma espécie de profissão de fé, algo que se insere no final dos documentos com a mesma ausência de convicção com que se canta «a luta final» quando sabemos muito bem que «final» é que ela não é. Ora, o Passa Palavra tem escrito e repetido, tanto em artigos individuais como noutros assinados pelo colectivo, que na actual fase de transnacionalização económica as lutas não podem progredir senão num plano internacional. Não se trata de uma opção, mas de um facto.

Contra este facto, porém, há quem invoque outros factos como, por exemplo, o de o governo da chanceler Merkel ter resultado de eleições, o que mostraria que a classe trabalhadora alemã apoia uma das situações políticas mais reaccionárias da União Europeia. Parece-nos estranho que a esquerda nacionalista recorra a este argumento, porque com a mesma lógica concluímos que a classe trabalhadora portuguesa apoia o actual governo, que decerto não foi eleito apenas com os votos dos patrões, e que o mesmo sucede em Espanha, onde o Partido Popular triunfou nas últimas eleições, e na Grécia, onde o Syriza foi derrotado. Se querem traçar um nexo directo entre as eleições e as orientações políticas da classe trabalhadora — sem sequer terem em conta a evolução das taxas de abstenção — é a isto que chegamos, e então podem pôr a periferia meridional da zona euro no mesmo caixote do lixo onde põem o seu centro histórico.

Quando se evoca a classe trabalhadora na Alemanha, em vez de se estabelecerem relações fúteis com os resultados eleitorais seria necessário, antes de tudo, salientar a forma como os sindicatos e os mecanismos de co-gestão enquadram e disciplinam essa classe trabalhadora. Será que os nossos sindicalistas ainda não se aperceberam do problema ou conhecem-no muito bem e por isso ficam calados? Este enquadramento desvia para outros planos as contradições e os conflitos, que é imperioso analisar, sem esconder as manifestações que recentemente tiveram lugar em apoio às economias da periferia meridional da zona euro. Em 19 de Maio deste ano, e culminando quatro dias de protestos, mais de vinte mil pessoas afirmaram no centro financeiro de Frankfurt a sua solidariedade com as populações da zona euro vitimizadas pela política de austeridade. Houve centenas de detenções. Em vez de aproveitarem estes embriões de solidariedade internacionalista e tentarem articular acções nesse sentido, os sindicatos portugueses preferem circunscrever-se ao espaço nacional e situar a luta num quadro antialemão.

Muito bem, mas não é verdade que os trabalhadores alemães são mais bem pagos do que os portugueses? Claro que são. O salário médio mensal líquido dos portugueses é menos de 2/5 do dos alemães. É precisamente por isso que os trabalhadores alemães são mais produtivos, e é por serem mais produtivos que são mais explorados. Não é à custa de países onde os trabalhadores são miseráveis que o capital se acumula, mas à custa dos trabalhadores que recebem salários superiores para executarem um trabalho mais qualificado e mais complexo, que portanto gera uma mais-valia superior.

Quantas vezes será necessário recordar que até uma data recente os investimentos externos directos, que grosseiramente correspondem aos investimentos das companhias multinacionais e transnacionais, ocorreram na maior parte entre países desenvolvidos? São esses países que o capital procura. Desde o começo da década de 1980 até 2007 a fracção dos investimentos externos directos dirigida para as economias em desenvolvimento oscilou entre um mínimo de 17% (na segunda metade da década de 1980) e um máximo de 35% (em 1992) e 36% (em 2004). Em 2007 a percentagem caiu para 27% e só a crise económica nos países desenvolvidos inverteu esta tendência de longo prazo, pois em 2008 43% dos investimentos externos directos totais dirigiram-se para as economias em desenvolvimento e em transição, que a partir de 2009 têm recebido quase metade do total. Mas note-se que, no conjunto das economias em desenvolvimento, estes investimentos se afastam dos países menos desenvolvidos e, nos outros, dirigem-se para os lugares onde a força de trabalho é mais qualificada e onde, portanto, os salários são superiores à média do país.

Mas o b-a-bá da crítica à exploração capitalista é esquecido pelos nacionalistas de esquerda, porque o seu objectivo é tão somente agravar o fosso que separa os trabalhadores portugueses dos do norte da União Europeia. Argumentos daquele tipo são álibis para passar de contrabando a ideia principal, que é a da unidade a estabelecer entre os trabalhadores e os pequenos e médios empresários portugueses em defesa de um mítico capitalismo nacional.

Aqui e agora

É aqui, precisamente neste ponto, que o Passa Palavra poderá ter realistamente algum grau de intervenção, somando a nossa voz à de poucos outros que se erguem contra o nacionalismo e defendem que o abandono da zona euro seria ainda mais catastrófico do que a actual política de miséria.

É esta perspectiva e são estas questões que pretendemos ajudar a introduzir no debate, de modo que o nacionalismo tacanho não seja o discurso único da esquerda e que o capitalismo de Estado e o fascismo não componham o horizonte verosímil de uma saída do euro. Esta contribuição sim, está dentro das nossas possibilidades e pertence ao único plano em que nos cumpre agir. É o primeiro passo, mas temos de começar pelo princípio.

Num comentário inserido no Vias de Facto, Mário Heleno evocou uma história que na verdade havia sido narrada por Brecht a respeito de Karl Valentin, um então célebre palhaço alemão a quem chamavam o clown metafísico. O palhaço tentava encontrar algo debaixo da única luz existente num canto do palco. Alguém ia ajudá-lo e, não achando nada, perguntava-lhe se ele realmente perdera ali o objecto que procurava. E o palhaço respondia que não, que o perdera na outra ponta do palco, mas que era ali que estava a luz.

Para já, aqui e agora, o Passa Palavra pretende simplesmente contribuir para lançar um pouco de luz no outro lado do palco. Se o conseguirmos, mais se seguirá.

7 COMENTÁRIOS

  1. Não tenho conhecimento de nenhuma crítica que compare explicitamente organizações anarquistas a partidos activos no sistema representativo burguês. A existir, duvido que consiga construir um caso convincente. Se bem me recordo, nem mesmo as esquerdas alemã e holandesa, e suas herdeiras, sempre tão críticas das organizações anarquistas, recorreram a tal comparação. Ainda assim estou interessado em saber sobre que argumentos se baseia tão intrigante opinião, e iniciar, talvez, haja tempo e vontade para tal, um debate mais amplo sobre a forma e o conteúdo da luta revolucionária, aqui e agora

  2. Me parece que o texto faz a comparação entre as organizações anarquistas e os demais partidos de esquerda, que não necessariamente disputam as eleições burguesas. O que está em questão aí é a forma de fazer política: há organizações anarquistas que se aproximam da concepção leninista de que a consciência revolucionária vem de fora dos movimentos, a partir de uma atuação de uma vanguarda que possui a teoria correta.
    Mais perto agora? Vamos abrir o debate, que a questão parece boa, apesar de não ser central no artigo…

  3. Sendo bem franco com os dois comentadores anteriores, essas questões que levantam fogem por completo do foco do texto. Debatê-las aqui seria desviar do que realmente importa. As questões que o texto levanta parecem muito mais sérias, pois trata-se da vida de milhões e não apenas de vanguardas hoje pouco comentadas. Queria mesmos ver comentários em outra direção.

    Sobre o texto, uma curiosidade. No Brasil – e me desculpem os portugueses que deveriam estar mais interessados no texto do que nós brasileiros – a esquerda inventou um novo partido inimigo, já que os partidos historicamente de direita são extremamente frágeis junto ao poder que o PT acumulou. Este partido é chamado de PIG [Partido da Imprensa Golpista]. Ora, por que é dado a um “Partido da Imprensa” esse poder de derrubar as estruturas, e para as mídias da esquerda há a acusação de não-propositiva e afastada das lutas? Ou será que toda forma de crítica é golpista, seja de esquerda ou de direita? Obviamente eu não concordo com esta tese do PIG, assim como jamais daria ao conjunto dos meios de comunicação de esquerda poder igual. Mas se conferem importância a um lado, por que tiram a importância do outro?

  4. mais perto agora: a ser essa a substância da crítica, parece-me totalmente injustificada. Nenhum grupo anarquista activo na Europa (estou a pensar tanto nos associados à AIT como à IFA)reflecte na sua prática e teoria a concepção vanguardista que lhe imputam. Talvez no Brasil seja diferente. Vou deixar a discussão por aqui. Mas seria interessante um esclarecimento por algum dos membros do colectivo, talvez num texto à parte.

    DanCaribé: Se discutir esta ou aquela organização, é pouco relevante, já um debate sobre a forma e o conteúdo da luta, surge precisamente, no seguimento do que foi abordado no texto do passa a palavra. Dizê-lo assim, soa a conversa abstracta de activista ou académico, mas a discussão não precisa de sê-lo.

    Quanto ao texto, a importância dada aos precários e à separação do resto do proletariado parece-me excessiva,

    Dizer que a unidade dos trabalhadores, sejam eles brancos ou pretos, homens ou mulheres, precários ou efectivos, é essencial, é dizer o óbvio. O ênfase sobre os trabalhadores precários é baseado em quê? Quais as características que os tornam tão fundamentalmente distintos, que da sua unidade com os restantes depende o aprofundamento da luta? E porquê agora?

    A condição de precário, não é nada de novo, nem aqui nem no resto do mundo, nem o aumento (dando de barato que houve de facto um aumento significativo) dos que trabalham em tais condições, parece indicar uma restruturação da relação entre classes, que torne de súbito, os precários no tudo ou nada da revolução.

    Nada disto implica, pôr em causa o carácter disciplinario do trabalho precário, especialmente quando imposto sobre jovens recém chegados ao mercado de trabalho.

  5. As afirmações acerca do trabalho precário feitas pelo comentador que assina «Muito Longe» revelam uma espantosa ignorância dos actuais sistemas de organização das empresas. Ele está realmente muito longe. Nas últimas décadas, com a difusão do toyotismo, o trabalho precário assumiu um dos lugares principais na estratégia empresarial. Ao mesmo tempo, a precarização da força de trabalho explica em grande medida, por todo o mundo, o esvaziamento dos sindicatos, que se têm limitado a enquadrar a força de trabalho estável. Assim, em Portugal como em todos os países desenvolvidos, superar a divisão entre os trabalhadores precários e os estáveis constitui o principal e o mais urgente desafio na luta de classes. Esse, e o combate ao nacionalismo generalizado na esquerda, parecem-me ser as tarefas prioritárias em Portugal.

  6. Muito longe está o João Bernardo de construir um argumento.
    Lançar dois ou três chavões sacados da escola da regulação ou da pós-pós esquerda italiana não é suficiente.

    Nem a difusão do Toytismo como modelo hegemónico de organização da produção é assunto encerrado, como o J. B. quer fazer crer, nem o processo de esvaziamento dos sindicatos tradicionais e a desintegração do movimento operário do século passado, se explicam apenas pela precarização da força de trabalho, até porque esta noção de precarização generalizada é no mínimo problemática.

    Note-se que não ponho em questão a existência de um processo defensivo e ofensivo de restruturação capitalista, do qual a precarização do trabalho, entre outras faz sem dúvida parte (mas não na escala que o J.B nos quer fazer crer).

  7. O texto afirma que “Não nos cabe traçar planos de governo”. No entanto, ao deixar claro a posição de defesa da não-saída do Euro, não estaria o coletivo fazendo a defesa de uma posição dentro a Economia Política, essencialmente uma política de Estado?
    Não discordo deste posicionamente, especialmente por ser, como aqui adoram repetir, um “anarquista” que não sabe fazer contas (leia-se, não tenho um grande arcabouço teórico de economia). No entanto, me interessa muito o discurso do Coletivo. Pois eu penso que não basta saber, é necessário saber expressar, ao se se manter numa posição, ao meu ver purista, de não traçar planos de governo, o PassaPalavra perde a oportunidade de ter mais efetividade em seu discurso, penso eu em duas razões, que podem ser mais: 1) o discurso quando vem de um emissor sem compromissos tem menos efetividade. Não que os integrantes não sejam, individualmente, compromeditos cada um com sua luta, mas aí o Coletivo PassaPalavra se confunde, numa zona obscura, entre um site de debate e divulgação coletiva, onde vale mais a pluralidade e a colaboração, mais do que suas colunas “editoriais”, e um coletivo intelectual de produção de crítica, mas de composição abstrata, uma vez que escondido atrás de um certo anonimato que tem suas vantagens, mas dentre as quais certamente não está a efetividade do discurso comprometido (sem rosto não há compromisso, a entrevista com os trabalhadores do McDonalds talvez seja uma fonte de inspiração).
    2) Por mais que a melhor forma da classe trabalhadora impor sua pauta seja através de uma organização forte e consciente, e não através de um governo, ainda assim para chegar à um tal cenário falta muito a percorrer. Para melhor avançarmos nesta direção, não seria mais efetivo debater sim planos de governo, justamente para dialogar com a imensa maioria das massas, que ainda acredita numa solução de governo? Não se alcançaria mais ouvidos, não se consiguiria mais interlocutores uma crítica que se deixa jogar no campo adversário? Ainda acho que ao posicionar-se frente à saída do Euro é justamente o que o PassaPalavra faz, pois, como dito, está a comentar Economia Política, essencialmente estatal/governamental. No entanto, não acho que, ao menos discursivamente, retirar-se do debate governamental seja efetivo para um maior alcance, tampouco acho que seja a marca do peleguismo ou do fracasso das teses da extrema esquerda.
    Sem um Estado, ainda assim os trabalhadores vão ter de governar, governar seu destino político, seu modo de produção, etc. Penso que os modelos tem de ser apresentados como potenciais novas formas de organizar a sociedade, e isso passa necessariamente por debater governos.
    No mais, como brasileiro, me parece ótima a análise que o Coletivo faz dos riscos fascistas. Eu que vivo na Argentina e justo hoje vejo uma massiva massa nas ruas marcada por bandeiras nacionais creio que estamos entrando em épocas bastante perigosas em certas partes do mundo.

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