Por Manolo
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É comum associar a questão urbana a problemas típicos das grandes metrópoles. Alto défice habitacional, número de imóveis vazios bastante superior a este défice, forte retenção especulativa de imóveis, políticas habitacionais de eficácia duvidosa; congestionamentos longos e rotineiros, baixo investimento em transporte coletivo público, proliferação do transporte coletivo dito “alternativo”, baixa atenção à acessibilidade universal nas vias públicas, controle oligopolístico do setor de transporte público reverberando na política municipal; crises relativas aos resíduos sólidos e domínio do setor por empresas e conglomerados empresariais que prestam péssimo serviço de coleta de lixo; tolerância ao avanço do território urbano sobre reservas ambientais quando promovido por especuladores imobiliários e perseguição a este mesmo avanço quando promovido por grupos populares; desemprego, precariedade e informalidade no trabalho… A lista é gigantesca, e aumenta sempre que se analisa as grandes metrópoles por outras óticas.
Esta, entretanto, é apenas uma das faces de uma questão ainda mais complexa. Os problemas urbanos nas grandes metrópoles são o principal fator condicionante de uma mudança no padrão de crescimento urbano vigente pelo menos nos últimos trinta anos: as grandes metrópoles crescem em ritmo cada vez menor, enquanto as cidades médias crescem vertiginosamente. Este novo padrão faz com que surjam novos problemas urbanos, alguns já vivenciados pelas grandes metrópoles no passado, outros radicalmente diferentes. E enquanto pesquisadores e burocratas lhes dão pouca atenção e tentam enquadrar a realidade das cidades pequenas e médias em soluções moldadas para cidades grandes, a população daquelas primeiras, em especial os trabalhadores, vai se virando como pode para lidar com os conflitos sociais próprios de sua condição territorial.
A luta por moradia é bom exemplo das diferenças entre as lutas sociais nas cidades pequenas e médias e as grandes metrópoles; ela se dá também nas cidades pequenas e médias, embora em condições muito mais difíceis e, em tempos de predomínio da estruturação capitalista da comunicação de massa (ou seja, noticia-se privilegiadamente o que é rentável ou capaz de atrair grande audiência, e silencia-se sobre os demais assuntos), na mais completa invisibilidade.
Na fronteira entre o rural e o urbano, com demandas que movimentos das grandes cidades chamariam, pejorativamente, de “primárias”, os movimentos de luta por moradia nas pequenas e médias cidades brasileiras enfrentam em condições desfavoráveis os latifundiários urbanos locais (grandes comerciantes, a Igreja católica, latifundiários rurais, famílias tradicionais e, em alguns casos, transnacionais, especialmente do setor extrativista ou do monocultivo). Sem “entidades de assessoria” a lhes tutelar, sem “recursos” de “projetos” de “apoio” ou militantes de direitos humanos a transformar sua luta em conteúdo de denúncias internacionais e petições on-line; sem “formação política” outra além da própria prática e de suas complexas relações com políticos locais de todos os espectros; em suma, num cenário bastante diferente das lutas urbanas travadas nos grandes centros, a luta por moradia nas cidades médias e pequenas está para a luta travada nas metrópoles como as guerrilhas e escaramuças estão para a estratégia militar clássica à la Clausewitz, Jomini, von Saxe etc.
É lá onde o tradicional facciosismo da esquerda tende a ser suplantado pela solidariedade prática – não raro desviada rumo a um pragmatismo que aproxima estes movimentos do que se costuma chamar de “direita”, “populistas” etc. – que os debates teóricos mais acirrados sobre a natureza da luta por moradia apresentam-se em seus contornos mais extremos. Seria a luta por moradia um instrumento da reprodução ampliada do capital, ou a criação de “territórios de autonomia”? Seria, por outra perspectiva, uma luta emancipatória ou apenas a luta pela ascensão social através da propriedade imobiliária conquistada à força? Seria, alternativamente, o momento da formação de novos pequenos proprietários, ou um espaço para o exercício da coletivização da terra? Seria, de um terceiro ponto de vista, uma oportunidade para o fortalecimento do Estado e do setor da construção civil (e seus respectivos proprietários, executivos de alto escalão, gestores públicos etc.), ou o lugar ideal para a constituição de novas relações sociais a partir das lutas?
É para estas lutas quase invisíveis que tentarei chamar a atenção neste ensaio. Num primeiro momento, tentarei definir o que chamo de “cidades pequenas e médias”, mostrar as enormes desigualdades constituintes da rede urbana brasileira e também as condições e entraves institucionais para a implementação de políticas de moradia nestes municípios; depois, tentando responder a questões surgidas nesta análise, apresentarei alguns “causos” da luta por moradia em Camamu (BA) e Camaçari (BA).
Interessante a perspectiva do texto. Difícil é contabilizar as inúmeras ocupações de imóveis feitas por famílias ou pessoas individuais que não se apresentam como “movimentos sociais”… Isto nas metrópoles e nas cidades pequenas…
Giancarlo, o perrengue é maior do que parece. Mais adiante mostrarei algumas condições gerais que estas lutas enfrentam, e algumas situações práticas. Por outro lado, não me agrada o papel de “vidente”, mas tenho para mim que o “futuro” da luta por moradia está nestes lugares.
Para se ter uma ideia das complicações envolvidas, nesta série sequer considerei as ocupações individuais. Pelo simples fato de quem em alguns destes municípios todo o território municipal urbano foi formado deste jeito, e por razões às vezes muito prosaicas.
Sei de municípios cujas terras pertencem, legalmente, a santos católicos; é um problema quase irresolvível no campo jurídico, porque santos não têm personalidade jurídica e as paróquias em geral não querem chamar para si a responsabilidade para não pagar impostos pela terra. Resultado? O povo vai ocupando, vai vivendo, pode ser até que pague aforamento, mas com o tempo mesmo isso vai sendo abandonado, e o embrulho fundiário está feito. (Se não me falha a memória, Formosa do Rio Bonito (BA) é exatamente um destes casos de “terras de santo”.)
Sei de outros municípios onde é impossível determinar onde começam e onde terminam certas terras documentadas porque nas escrituras a coisa está escrita mais ou menos assim: “minhas terras limitam-se pela frente com a estrada Tal, pela direita com as terras de Fulano, pela esquerda com as terras de Beltrano e pelo fundo com quem de direito“. Quando se lê esse com quem de direito numa escritura pública de terras do início do século XX, pode ter certeza que o dono deste documento foi tomando terras na marra até encontrar com Fulano e Beltrano que lhe resistiram, e como no fundo não havia limites deixaram a coisa registrada exatamente assim no cartório. Imagine que a área urbana o município — não lembro agora se vi esta escritura em Santa Maria da Vitória (BA), mas se não estou enganado foi no extremo oeste baiano há muitos anos — cresceu exatamente em cima deste “com quem de direito“; que há suspeitas fortes de que estas terras são na verdade terras públicas griladas durante uma das mudanças das leis de terras brasileiras; e que os livros de tombo mais antigos do cartório de imóveis sumiram há tanto tempo que ninguém mais sabe como isto foi acontecer. Resultado? Mais uma vez o povo vai ocupando, resistindo à pistolagem e fazendo a cidade crescer.
O que era antes disputa pela terra rural está virando, também, disputa pela terra urbana, e tudo muito rápido. Mas vou ficar por aqui, senão me empolgo e termino adiantando muito assunto. Aguarde as outras partes e vamos debatendo.
Outra coisa: pode ter certeza que nos comentários vai chover gente das cidades citadas. É que aparecem tão poucas vezes nos mecanismos de busca que a curiosidade vai terminar trazendo-as para cá.