Por Manolo
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Camaçari é município da Região Metropolitana de Salvador com 242.970 hab. (Censo IBGE 2010) distribuídos em 785km2, circundado pelos municípios de Lauro de Freitas, Simões Filho, Dias d’Ávila e Mata de São João. Estando na 38ª colocação no ranking da participação municipal no PIB brasileiro e na 73ª colocação no ranking de PIB per capita municipais brasileiros, pelos critérios que adotamos Camaçari é uma típica cidade média.
A história de Camaçari confunde-se em parte com a história daquele que se diz – não sem controvérsias – ter sido o único feudo das Américas e o maior latifúndio do mundo: a Casa da Torre.
Nascido em São Pedro de Rates em 1528, Garcia de Sousa d’Ávila chegou ao Brasil em 1549 na mesma frota de Tomé de Sousa, e participou ativamente da fundação e construção de Salvador. Protegido do governador-geral, que se dizia à boca-miúda ser seu verdadeiro pai, foi logo nomeado “almoxarife e feitor da Alfândega de Salvador” e recebeu uma sesmaria de 14 léguas de terras depois da sesmaria do Rio Vermelho, já concedida ao conde de Castanheira; a sesmaria concedida a Garcia d’Ávila se estendia, no auge, do norte de Salvador até as fronteiras do Piauí. Já estabelecido na sesmaria da Tatuapara em 1550 e cuidando de duzentas cabeças de gado, viu-se, em maio de 1555, em conflito com os tupinambá, que se rebelaram contra tudo que fosse europeu e prometiam varrê-los das terras em volta da cidade murada de Salvador. Com a ajuda de Duarte da Costa, então governador-geral, venceu os tupinambás e incendiou suas aldeias.
Embora não se possa afirmá-lo com certeza, a experiência aterrorizante do cerco tupinambá certamente foi o principal fator que levou Garcia d’Ávila a iniciar, em 1563, a construção de uma casa colonial em estilo manuelino, terminada em 1609 com a morte de seu proprietário. Esta casa, sucessivamente ampliada e modificada para atender finalidades civis e militares, é a Casa da Torre dos Garcia d’Ávila; suas ruínas existem até hoje na Praia do Forte, e foi a base de onde os d’Ávila e seus descendentes comandaram um morgado[1] que se estendeu, no auge, do norte de Salvador até o estado do Piauí. A linhagem dos d’Ávila e seus colaterais inclui os maiores latifundiários do Nordeste, como Antônio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, primeiro e único visconde com grandeza da Torre de Garcia d’Ávila (1785-1852), último administrador do morgado da Casa da Torre; Andrelino Pereira da Silva, barão de Pajeú (1830-1901); Cícero Dantas Martins, barão de Jeremoabo (1838-1903); e outros.
Nas terras dos d’Ávila, em 1558 jesuítas subiram mato adentro até darem com o rio Joanes, e lá fundaram a Aldeia do Divino Espírito Santo em torno de uma capela de taipa, para catequizar – melhor dizendo, dominar – os tupinambás que povoavam o território já fazia mais de oito mil anos. A capela foi transformada na igreja do Espírito Santo, e já em 1562 cerca de mil “almas” se ajuntavam ao redor; os jesuítas e os índios participaram da guerra contra os holandeses (1624-1640) junto com as tropas da Casa da Torre.
Com a expulsão dos jesuítas em 1755, a aldeia foi elevada por alvará régio em 1758 a Vila Nova do Espírito Santo de Abrantes, com inauguração de casa de câmara e cadeia. Já no século XVIII as terras de Camaçari passam à administração da Marquesa de Niza e de seu procurador Tomás da Silva Paranhos, que posteriormente adquiriu a propriedade das terras da marquesa e tornou-se ele próprio um dos grandes latifundiários da colônia. A vila foi extinta em 1846 e incorporada ao município de Mata de São João, para ser desmembrada em 1848.
A construção da malha férrea ligando Salvador ao Recôncavo baiano (através do distrito de Água Comprida, hoje município de Simões Filho), ao Médio São Francisco e ao Litoral Norte (através de Alagoinhas) fez o centro econômico da vila deslocar-se de Vila de Abrantes rumo a Parafuso. Em 1920 um pedaço da Vila de Abrantes foi desmembrada para criar o distrito de Camaçari, que passou a ser a sede municipal e, com a nomeação dos municípios de acordo com o nome de suas sedes em 1938, o município passou a ter o nome atual, e com o desmembramento do município de Dias D’Ávila em 1985 restou-lhe o território atual.
A economia de Camaçari, anteriormente baseada na agricultura de subsistência, foi radicalmente alterada com a fundação em 1978 do Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC), primeiro complexo petroquímico planejado a ser instalado no Brasil e maior complexo industrial integrado do Hemisfério Sul, contando hoje com cerca de 60 plantas industriais instaladas variando das petroquímicas originais a empresas de processamento de celulose, metalurgia do cobre, indústria têxtil, automotiva, e de bebidas. Com faturamento de aproximadamente R$ 14 bilhões por ano, o COPEC tem participação de 9% no PIB baiano, responde por 98% da arrecadação do Imposto de Circulação de Mercadorias (ICMS) de Camaçari, emprega cerca de 13.000 pessoas diretamente e outras 20.000 indiretamente. Apesar disto, o turismo ainda é forte no município graças aos 42km de litoral e praias (Busca Vida, Jauá, Arembepe, Barra do Jacuípe, Barra de Pojuca, Interlagos, Itacimirim, etc.), às reservas naturais de mata atlântica e às nascentes que abastecem as quatro principais bacias hidrográficas responsáveis pelo abastecimento de água de toda a Região Metropolitana de Salvador.
Embora a luta por moradia seja bastante tradicional no município (como no caso das lutas da população da Gleba C), Camaçari retorna ao mapa dos conflitos fundiários urbanos graças a uma nova onda de ocupações em que o Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB) tomou parte. A primeira delas, a ocupação Rancho Alegre, tem cerca de 130 famílias e foi iniciada num terreno bastante isolado, embora próximo à praia de Arembepe, integrante de uma antiga fazenda que já foi de uma empresa conhecida como “Dois Braços” (em processo de liquidação) cujo terreno está gravado com diversas penhoras e hipotecas; graças a estes entraves, a situação fundiária atual da área é incerta. A ocupação tem todas as características de um território de fronteira entre o rural e o urbano, pois foi iniciada em 1996 ainda sob a bandeira do Movimento de Luta pela Terra (MLT) e após sucessivos reveses, que incluem o assassinato de uma das principais lideranças comunitárias em 2000, passou a integrar o MSTB. Enquanto esta ocupação se estabilizava, o MSTB realizou mais três outras e foi chamado a apoiar ainda uma quinta, totalizando assim as ocupações que o integram no município. Duas delas se destacam: Angra Rio Mar e Marambaia.
A ocupação Angra Rio Mar foi feita em julho de 2012 por cerca de 40 famílias num lugar onde funcionava o clube Angra Rio Mar, bastante conhecido em Camaçari e onde vários dos ocupantes haviam trabalhado anos atrás. O clube foi fechado há mais de dez anos, e um especulador imobiliário local deu início a um loteamento onde os mutuários pagavam as prestações com a mão-de-obra para construção de suas casas. Além de este especulador não estar com a documentação formalmente correta para realizar este loteamento, os mutuários abandonaram seus imóveis há mais de cinco anos, pois o local é de difícil acesso, situado em meio à mata atlântica, sem iluminação ou sinalização adequada e sem segurança. Famílias que ocupam o local relatam que as casas abandonadas vinham sendo usado como ponto de apoio para sequestros, assaltos e tráfico de drogas, e que há dívidas vultosas com bancos, passivos trabalhistas e imposto predial e territorial urbano (IPTU) envolvendo o terreno.
As famílias da ocupação souberam da existência de uma ação de reintegração de posse (0301295-47.2012.805.0039) movida pela Lazerterra Comércio e Empreendimentos Imobiliários Ltda., empresa da qual o sr. Raimundo, o especulador, é gestor. Descobriram também que a escrivã do cartório de imóveis de Camaçari é também uma das sócias da empresa, e que mora em local próximo à ocupação. Apesar de todas as circunstâncias provando o abandono do imóvel, a juíza da 2ª Vara Cível de Camaçari, Virgínia Silveira Wanderley dos Santos Vieira, concedeu liminar de reintegração de posse em favor da Lazerterra numa audiência de justificação de posse realizada em 31 de janeiro de 2013 onde, entre outras coisas, ficou provado que as casas estavam inabitáveis há muito tempo devido ao corte de luz causado por uma enorme dívida junto à Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia (COELBA). Apesar de o mandado de reintegração de posse já haver sido expedido em 28 de fevereiro, nenhum oficial de justiça até o momento visitou a comunidade para seu cumprimento; enquanto isto, o MSTB busca alternativas para as famílias ali residentes.
No mesmo período, o MSTB foi chamado a apoiar cerca de 400 famílias que ocuparam um terreno baldio às margens do rio Pojuca, limite entre os municípios de Camaçari e Mata de São João. Esta comunidade, batizada pelos próprios habitantes como Marambaia, fica nos limites da área de proteção permanente das margens do rio Pojuca, e esta foi a razão pela qual a 5ª Promotoria do Meio Ambiente de Camaçari, órgão do Ministério Público estadual, chamou a comunidade para uma audiência, na qual ficou pactuado o recuo para fora dos limites da área de proteção.
Em outra audiência no dia 21 de fevereiro, em que o advogado da Equipe Urbana do CEAS esteve presente, a postura do promotor encarregado, dr. Luciano Pitta, foi a de criminalizar o movimento. Acusou diretamente Belo, um dos coordenadores municipais do MSTB, de “orquestrar invasões em todo o município”, de “arregimentar famílias de outros municípios para invadir terras em Camaçari” e de “cometer vários crimes ambientais”. Sendo confrontado por um advogado que acompanhava os coordenadores do MSTB, que exigiu provas destas acusações e que apontou o tom intimidatório com que vinha sendo conduzida uma audiência que tinha por objetivo mediar um conflito fundiário, repetidas vezes disse “não admito que você venha aqui me ensinar meu trabalho”, e chegou a recusar-se a responder perguntas diretas que lhe foram feitas. Era clara a intenção de retirar as famílias da ocupação a qualquer custo, mesmo sem oferecer qualquer solução para as famílias da comunidade, pois em sua opinião “elas têm que sair de lá do mesmo jeito que vieram, e para o mesmo lugar de onde vieram”. Como estas opiniões eram compartilhadas pela secretária de desenvolvimento urbano de Camaçari, Ana Lúcia Costa, também presente na reunião, ficou claro que o objetivo não confessado por ambos era esvaziar a área e dar seguimento a um loteamento projetado para famílias de alta renda.
Apesar dos percalços, pactuou-se na reunião que as famílias da ocupação Marambaia precisariam recuar seus barracos até os limites das áreas de proteção permanente previstos no Código Florestal: 100m de distância das margens do rio Pojuca e 50m de distância de uma nascente local. A princípio isto não seria problema, pois os barracos já estavam a cerca de 120m do rio e a cerca de 70m da nascente; tudo parecia resolvido, mesmo provisoriamente.
Foi com choque e terror que as famílias da ocupação Marambaia foram acordadas poucos dias depois pela presença de técnicos da SEDUR de Camaçari escoltados pela Polícia Militar, derrubando barraco por barraco com marretas, estivessem eles dentro ou fora da área de preservação permanente da qual do MSTB havia se comprometido a recuar. Quebraram e confiscaram objetos pessoais e materiais de construção sem dizer para onde os levariam, e só pararam com a chegada de uma equipe da TV Aratu; mesmo assim, prometeram voltar e “derrubar todo o resto, porque temos ordens”. A ação dos fiscais da prefeitura resultou numa manifestação das famílias na BA 099 (Estrada do Coco) com paralisação de pista, que teve repercussão nacional.
Graças à pressão das famílias da ocupação Marambaia, que fizeram uma manifestação em frente à prefeitura de Camaçari no dia 6 de março, foi agendada para o dia 12 de março uma reunião conjunta entre o MSTB, a prefeitura de Camaçari e a Secretaria de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia (SEDUR), na qual o advogado da Equipe Urbana do CEAS esteve presente.
A postura da prefeitura quanto à ocupação Marambaia e todas as demais ocupações urbanas recentes no município é a mesma, anunciada na fala do secretário de governo de Camaçari, Sérgio Paiva, de que captamos os elementos centrais: “O município de Camaçari tem sido muito eficiente na produção de moradia através de recursos do programa Minha Casa Minha Vida, e isto tem atraído muita gente de outros municípios vizinhos, e também de Salvador, para cá. Camaçari não pode arcar sozinha com a política habitacional de todo o estado da Bahia. A política habitacional que estamos fazendo é para o município. Por isto, vamos estimular a todas estas famílias que retornem a seus municípios de origem, vamos tentar até se for preciso arrumar a passagem para voltarem para lá”. (A versão oficial da prefeitura para esta reunião encontra-se neste link aqui, e neste snapshot aqui.) Não é uma fala de criminalização como a do promotor Luciano Pitta, mas é uma fala de intolerância institucional com migrantes, sujeitos incontornáveis na inevitável expansão e integração da malha urbana na Região Metropolitana de Salvador.
Nesta reunião o único acordo possível foi o de pactuar o “congelamento” de qualquer ação por parte da prefeitura de Camaçari e de qualquer aumento dos moradores da ocupação Marambaia além daqueles 406 originalmente existentes, para que se faça um cadastramento preciso das famílias com apoio do governo da Bahia. Outra reunião foi marcada para o dia 2 de abril na tentativa de avançar no diálogo tendo como base o diagnóstico realizado, e a partir dele buscar soluções para a garantia do direito à moradia das famílias da ocupação Marambaia. Nenhum compromisso foi firmado no sentido de apurar os abusos de autoridade cometidos durante a tentativa de expulsão da comunidade, apesar de haver bastante fotos e vídeos de celular registrando os fatos.
Notas
[1] O morgado, ou morgadio, foi uma instituição do direito português cuja última disciplina legal é a das Ordenações Filipinas: de acordo com o texto das ordenações, “declaramos ser Morgado, se na instituição, que dos bens os defuntos fizeram, for contido que os Administradores e possuidores dos ditos bens cumpram certas Missas ou encarregos, e o que mais renderem hajam para si, ou que os instituidores lhes deixaram os ditos bens com certos encarregos de Missas, ou de outras obras pias” (Ordenações Filipinas, através da qual o proprietário de determinados bens, rendas, utensílios etc. vinculava-os num só patrimônio que deveria permanecer assim unido perpetuamente, ou até que seu administrador conseguisse autorização da coroa portuguesa para (1) vender ou trocar parte destes bens vinculados, ou (2) extinguir o morgadio, quebrando assim o vínculo entre os bens e transformando-os em bens alodiais (livres de qualquer vínculo), permitindo sua venda, uso, aluguel etc. de acordo com a legislação apropriada. Em Portugal os morgadios foram extintos em 1863, e no Brasil em 6 de outubro de 1835, pela Lei nº 57.
A sexta parte desta série realmente não existe ou é apenas defeito no link para a página correta?
Danilo,
Desculpe o atraso na nossa resposta. A sexta parte desta série foi anunciada mas não foi publicada.