A telenovela estraga os actores e o público. Com maus actores e mau público não há teatro. Sem teatro, a comunidade vê-se privada de um poderoso instrumento de confronto, reflexão e transformação. Por Manuela de Freitas
Cada sociedade tem o teatro que merece.
Federico Garcia Lorca
O actor é o membro da comunidade que, partilhando as suas inquietações e paixões, tem como profissão contar histórias que interessam a todos, comovendo-os, divertindo-os, inquietando-os e confrontando-os. Para as contar bem, aprende técnicas, como qualquer profissional. Exercita o corpo e a voz, para que se oiça e se perceba o que diz; para que se apreenda todo o sentido do que diz; para incorporar os textos e não os papaguear (etimologicamente, decorar significa “aprender com o coração”); para poder gritar e não ficar rouco, atirar-se pelo ar e não se magoar, correr e não cair do palco abaixo, agredir e ser agredido sem ferir nem se ferir.
Para que o público receba com a inteligência, os sentidos e a emoção o que o actor lhe propõe, este vai buscar às outras artes, às ciências, às filosofias, aos rituais religiosos e a todas as formas de cultura, as técnicas que o ajudam a conhecer-se melhor e a melhor utilizar o seu pensamento, os seus sentidos e emoções, fazendo deles matéria de criação. Vivendo e convivendo com o que é, o que recusa, o que teme, o que deseja, é atento como uma antena e nada lhe é estranho ou alheio. Confronta-se com as suas capacidades e incapacidades, vícios e virtudes e torna-se uma espécie de base de dados a que vai buscar tudo o que serve para dar vida a cada nova personagem. Do seu encontro com ela o actor cria uma terceira entidade, única e irrepetível. Procurando o que a personagem tem de essencial, quais os mais significativos e universais vectores de humanidade que nela se manifestam, é sempre também ele e não outro, com o seu corpo, emoções, inteligência, memórias, experiências e opções. Não se esconde nem imita ninguém. Vive até às últimas consequências a parte de si que dá forma à personagem e os conflitos em que ela se inscreve. Não aceitando como a “sua verdadeira personalidade” a imagem estereotipada que a sociedade criou para ele, ou que ele criou, consciente ou inconscientemente, para funcionar na sociedade, passa por toda a espécie de experiências físicas, mentais e emocionais para, em cada dia, poder estar à frente do público, inteiro e em carne viva. Tão humano e ao mesmo tempo tão fora do quotidiano, do “real” estereotipado, que se torna arquetípico representante da humanidade que com ele se identifica e se põe em causa.
Se tudo isto implica uma permanente vigilância e disponibilidade, um estar sempre a começar do princípio, a percorrer caminhos desconhecidos de autoconhecimento, de relacionamento e de expressão, implica também uma ética. Matéria-prima de criação artística, instrumentista virtuoso cujo instrumento é ele próprio, o actor sabe que tem de se enriquecer como ser humano, tem de fazer escolhas e de se exprimir cada vez melhor. Para ter coisas importantes a dizer aos outros e dizê-las bem para que eles as aceitem e as utilizem. Para contar tão verdadeira e profundamente uma história que a torne universal. Para “acontecer” – estar presente inteiramente num espaço e num tempo – e saber levar o público a “acontecer”, não assistindo, passivo, a uma exibição, mas sendo co-criador de um acto de vida único e irrepetível. Vendo, ouvindo, sentindo e pensando o que lhe diz respeito e, assim, aprendendo, tomando partido, transformando-se.
O teatro, como qualquer forma de Arte, não é uma cópia da vida. É uma transposição poética da realidade, condensando-a e permitindo que se veja para além da pequena história que se conta. Mergulhando a fundo na representação do real, desmascara as aparências que o falseiam e faz com que cada um que assiste possa pensar: “Isto tem a ver comigo. Perante isto, a minha posição é esta”. A força do teatro reside no facto de tornar presentes as misérias e as grandezas dos seres humanos e os consequentes conflitos que originam, levando o público a tomar partido.
Pelo contrário, a telenovela, pretendendo ser uma cópia fiel da vida, na sua forma redutora de a representar utiliza códigos de identificação política, cultural e moral que fazem dela uma eficaz máquina de propaganda de uma determinada visão do mundo. Com o ar inocente de mero entretenimento, instila-a num público que passivamente a digere e inconscientemente a assimila.
Mas não é só essa a sua função perniciosa. E voltamos aos actores.
As telenovelas utilizam modelos e apresentadores que se querem exibir e promover; velhos comediantes medíocres que, em vez de estarem asilados ou a passar fome, assim se divertem e vivem um pouco melhor; pessoas que querem aparecer na televisão para serem conhecidas na rua; jovens que querem sair nas revistas, ganhar dinheiro, sentir-se alguém. E também utilizam crianças, que são mão-de-obra barata. Quando abrem concursos de casting, vão lá pais com crianças de um ano, de seis, de dez, e escrevem nas fichas “livre a qualquer hora do dia ou da noite”. Porque o filho pode render algum dinheiro ou até ser artista, ter alguma hipótese de futuro e sair da cepa-torta. Muitos destes miúdos deixam a escola ou não conseguem estudar porque as filmagens começam de manhã e acabam à noite. Há muitos a recorrer a psiquiatras e já houve casos de suicídio porque não se conseguiram reintegrar na escola ou porque concorreram e não foram aceites.
E claro que também utilizam actores profissionais. Hoje, a profissão de actor já não existe fora da televisão. Quer como carreira, quer como meio de subsistência. Na televisão, um actor ganha, em média, 6.000 euros mensais (a mim ofereceram-me 10.000 há oito anos), com a garantia de trabalho pelo menos durante 6 a 8 meses. No teatro, quando é pago, o actor recebe em média entre 1.000 e 1.500 euros mensais, durante um máximo de 3 meses. Vai fazer a primeira novela pensando: “Vou só lá fazer isto porque preciso agora de algum dinheiro”. Ganha muito bem durante 6 a 8 meses, tem de largar o emprego que tinha porque tem filmagens todo o dia, paga a entrada e as primeiras prestações de uma casa, compra carro, muda os filhos de escola e, quando acaba a novela, fica sem nada, com a casa e o carro para pagar, a escola dos filhos mais cara. Agora está nas mãos da televisão. Faz a segunda novela, a terceira, aceita tudo o que lhe oferecem, por qualquer preço e em quaisquer condições, das novelas às dobragens, dos sketches à publicidade.
E assim, ao longo dos anos, vamos assistindo à destruição dos actores, alguns de grande qualidade e talento. Porque, se o actor é o instrumento de si próprio, tem de ter os cuidados que um violinista tem com o seu violino. Com um instrumento em más condições, desafinado, nem o melhor executante consegue tocar boa música. A repetição daqueles clichés, o primarismo daquelas personagens e a industrialização da produção destroem-nos a pouco e pouco. Representam muitas vezes a olhar para os diálogos escritos pelas paredes porque não tiveram tempo para os decorar. Porque aquelas histórias são muito fracas, tudo muito pobre e muito parecido, vão-se transformando nos estereótipos que criam para funcionar naquelas situações. Defendem-se do vazio gesticulando, sentando-se e levantando-se, cruzando e descruzando os braços, passando as mãos pelos móveis ou pelos cabelos – para parecerem “muito expressivos”. E já não sabem fazer-se ouvir numa sala de teatro sem microfones, porque se habituaram ao linguajar naturalista e sussurrante da novela em que o que se diz não tem qualquer sentido nem importância, a não ser causar a impressão de que é igual à vida quotidiana. Ao contrário do teatro – em que as palavras têm todas um peso e um significado, são matéria com carne, emoção e pensamento –, na novela o texto é apenas pretexto e as palavras tanto podem ser aquelas como outras. E os actores vão perdendo a noção do sentido das palavras por causa da “naturalidade” e da vulgaridade com que se habituam a falar sem dizer nada. Apanhados nas armadilhas do cliché, procuram ser “verdadeiros” e desaprendem (e os mais jovens nem chegam a aprender, porque os cursos de formação de actores já só visam essa única saída profissional: a televisão) o que qualquer artista sabe: a força da obra de arte é a capacidade de dizer, condensando num gesto, num traço, num som, numa palavra, o que nem todas as cópias da realidade conseguem dizer. Nem juntando todas as fotografias saídas nos jornais e todas as reportagens televisivas conseguiríamos apreender tanto sobre a guerra civil de Espanha como vendo a Guernica de Picasso que, para além disso, nos confronta ainda com as consequências de todas as guerras acontecidas e por acontecer.
E assiste-se também à destruição do público. Habituado a ouvir contar histórias que não lhe exigem reflexão nem o confrontam com nada de importante, de uma forma que não lhe reclama concentração, nem tempo, nem atenção, o público não aguenta um teatro que não seja apenas entretenimento superficial e fácil, onde vai para fazer a digestão ou para apreciar ao vivo as vedetas da novela.
Com maus actores e mau público, não pode haver teatro. Nas salas aveludadas, vão-se exibindo espectáculos desfrutados apenas por uma elite intelectual que “deixa a novela para a plebe” e que, sem inquietação, se compraz com formalismos esteticistas decadentes ou com experimentalismos pós-modernos que também não são teatro. Porque o teatro, como qualquer arte, se não se compadece com a vulgaridade, também não se compadece com o efeito por mais bem elaborado que seja, ou com o enfeite por mais bom gosto que exiba. Não é um passatempo nem um luxo para servir a convidados.
Estará então a televisão a acabar com o teatro? Nos seus muitos séculos de história, o teatro tem sido alvo dos mais variados atentados: tirando-o da praça pública e restringindo-o aos salões aristocráticos, ou às salas burguesas “à italiana” que separam o público dos actores e transformam o acto teatral numa exibição pseudo-mágica que leva à passividade do público; confinando-o em contextos que seleccionam a assistência segundo as classes sociais; utilizando-o como instrumento de propaganda populista e imediatista, tanto à direita como à esquerda.
E a estes como a outros atentados o teatro tem sempre sobrevivido. É cíclico. Persistem pequenos focos de resistência marginais que não se deixam subjugar e que ciclicamente emergem, restituindo ao teatro o seu lugar na comunidade. Há sempre quem não aceite a privação, entre outras coisas, deste poderoso instrumento milenar de enriquecimento e de libertação.
Poucos fazem reflexões assim sobre ser actor/teatro/televisão/sociedade. A resposta resistente é decisiva, mas… Dizer: “É cíclico” é uma verdade que não basta. “Gritar e não ficar rouco” é uma das belas pistas deste texto. E tantas outras apontadas tão clara e lucidamente aqui. Talvez o actor o teatro a sociedade possam mesmo ser transformados a contraciclo, com lutas, experiências e dúvidas. Aqui está um pensamento que exige isso de nós.
Obrigado, Manela!
[de Antonino Solmer, actor e encenador português, ex-Director do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa]
Obrigada Manuela, que mel para nós que vivemos e acreditamos no poder único da nossa linguagem teatral.
As suas palavras são alimento, ruptura, despertador e denúncia para uma arte que não pode morrer porque é movimento , arma, força, luz e há luz clara tudo brilha, e a sua luz salta. Obrigada, Rita
Manuela só hoje me passou pelos olhos este teu texto sobre o teatro e a televisão. Gostava de ter escrito cada palavra do que escreveste tão bem. Um beijo grande para ti. Muito obrigado.
Obrigado senhora Manuela de Freitas por estas palavras. Viva o Teatro!
Quero agradecer as palavras da Manuela de Freitas. Sou uma jovem actriz e contadora de histórias do Porto, que trabalha no Centro de Criatividade da Póvoa de Lanhoso. Parece-me imensamente importante esta reflexão, porque acredito no poder do teatro enquanto espaço de verdadeiro encontro, de verdadeiro debate, de verdadeira descoberta, entre gentes que procuram incessantemente despir-se para poderem ver-se realmente. Esta coisa de tentarmos tirar as roupas com que as normas sociais e os vícios nos querem vestir para nos descobrirmos, nos conhecermos e podermos finalmente questionar o nosso papel no mundo é talvez uma ponte para a liberdade. Creio que é por isso que treino a minha voz e o meu corpo, que estudo e tento aprender e reflectir todos os dias, que procuro uma tecnologia que me torne um instrumento capaz de produzir teatro. É para viver realmente que trabalho. Não nasci para entreter o meu tempo. Obrigada, Manuela de Freitas.
muito obriga manuela por esta palavra.viva os teatros parabens