Se nas reivindicações é preciso superar as divisões entre os sexos, o mesmo deve se colocar em relação às formas de organização. Se não cabe dividir mulheres de homens no transporte, o mesmo deve valer para os processos de luta. Por Passa Palavra

vagaoazulvagaorosaNa última terça-feira, 14 de agosto, foi vetado pelo Governador Geraldo Alckmin o projeto de lei que pretendia criar vagões exclusivos para mulheres nos trens do Metrô e da CPTM em São Paulo. Criada com o objetivo de reduzir os casos de assédio sexual no transporte coletivo, a proposta havia sido aprovada pela Assembleia Legislativa um mês antes, gerando reações bastante diversas nos movimentos sociais – tanto contrárias, quanto a favor. Na polêmica sobre o assim chamado “vagão rosa”, ficou visível que não existe uma concepção única do feminismo, e com isso o Passa Palavra retoma a discussão sobre dois feminismos: um que inclui e outro que exclui.

É importante observar que o projeto de lei paulista não entrou em cena ao acaso, e sim em um contexto de resposta às mobilizações sociais. À revolta popular de junho de 2013, que colocou a demanda do transporte coletivo no centro do debate político, e às campanhas impulsionadas pelo movimento feminista contra o assédio sexual nos transportes frente à difusão de uma série de casos de abusos. Em São Paulo, o tema ganhou maior visibilidade a partir de março, quando uma propaganda do Metrô transmitida no rádio dizia que “trem lotado é bom para xavecar a mulherada”, e em seguida se proliferaram denúncias de “grupos de encoxadores em trens”. Ambos os casos foram amplamente repudiados.

Vagões para mulheres, vagões para homens

Assim, a aprovação do projeto de lei pelos deputados paulistas em julho foi assumida por parte das organizações feministas como uma vitória. Tal foi a posição do Movimento Mulheres em Luta, ligado à CSP-Conlutas, que defendeu o vagão como “uma conquista das mulheres trabalhadoras”. Mas uma conquista ainda “insuficiente”: visto que “as mulheres são 58% dos usuários do Metrô”, um vagão só não resolveria nada. O movimento então passou a propôr a criação de vagões exclusivos proporcionais ao número de usuárias.bemvinda

Em outras palavras, é a divisão dos trens ao meio – mais precisamente, 58% exclusivo para mulheres, 42% exclusivo para homens – que está sendo reivindicada. Uma proposta que, de certo modo, não é nova, pois em pouco se difere dos ônibus divididos entre brancos para negros e bancos para brancos durante os anos do racismo legalizado nos EUA ou das Salas de Alunas durante o fascismo no Portugal de Salazar. O que assusta é que uma proposta assim surja agora do campo da esquerda, a mesma que há quatro décadas lutou para superar essas divisões.

Será esse o destino da esquerda, derrubar os apartheids impostos pelos outros, para ela própria edificar apartheids semelhantes?

E propor uma divisão desse tipo logo no transporte, espaço de luta coletiva que no último período mostrou um potencial tão impressionante em unir a classe trabalhadora, a despeito das inúmeras fragmentações atuais! Preocupa imaginar as graves cisões que uma proposta assim poderia causar. A divisão entre os sexos e o machismo não se aprofundaria? E que consequências teria um trem dividido na dinâmica das rotineiras revoltas de usuários contra as más condições do transporte?

Luta coletiva de mulheres e homens: desafios dos movimentos

Felizmente, não só a reivindicação de um trem dividido na metade não encontrou eco, como o próprio projeto de lei do vagão exclusivo terminou sendo barrado. O recente veto sancionado pelo governador responde a um outro setor dos movimentos, maior, que se posicionou ativamente contra o vagão.

espacoexclusivoDebates abertos e atos contra o “vagão rosa” foram organizados nas últimas semanas. Ao separar os espaços destinados às mulheres no trem, a medida não só não resolveria o problema dos assédios rotineiros, como criaria um cenário de ainda maior risco de agressões, além de situações de discriminação contra transsexuais.

Na crítica feita por parte das organizações feministas à separação do espaço público entre mulheres e homens, porém, há um visível descompasso entre o conteúdo das reivindicações e as formas de organização. Se a criação de um espaço exclusivo para mulheres nos transportes não representaria maior proteção ou emancipação, e sim segregação, devemos criar a mesma divisão no interior dos movimentos sociais? Não seriam ainda mais graves as cisões no interior da classe quando elas são produzidas pelos próprios lutadores e lutadoras em seus espaços de luta?

Ao assumir que o vagão exclusivo não pode ser uma solução para o problema do assédio sexual no trem, os movimentos se colocam um desafio: como lidar com as agressões vividas pelas mulheres diariamente no transporte? Um exemplo de uma via possível (ainda que insuficiente) está na reivindicação de mais trens e ônibus – uma luta coletiva, travada ombro a ombro por mulheres e homens, contra a lógica mercantil que torna lucrativa a superlotação do transporte.

Se nas reivindicações é preciso superar as divisões entre os sexos, o mesmo deve se colocar em relação às formas de organização. Se não cabe dividir mulheres de homens no transporte, o mesmo deve valer para os processos de luta. Está colocado como desafio aos movimentos sociais desenvolver formas coletivas, indo além dos espaços exclusivos, para enfrentar a violência contra as mulheres também em seu interior.

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3 COMENTÁRIOS

  1. Camaradas, difícil essa questão porque sempre cai no limite das lutas paliativas que acabam por reforçar as mais diversas formas de segregação social: classe, raça, gênero, etc. Fazê-las ou não faze-las, eis a questão. Lendo o texto, sou convencida por todos os argumentos apresentados. Fazem todo o sentido, porem, entram em contradição frontal com um sentimento que tive ao pegar o trem no horário do rush no rio de janeiro. Da central pra penha circular, 18 hs, trens lotados, muitos homens suados sem camisa meio pra fora das portas. Olhei para aquela situação na plataforma e pensei imediatamente, f… Grande probabilidade de que vou sofrer assédio e tenho que pensar desde já como vou reagir. Até que visualizei o vagão feminino e, não posso mentir, senti um alívio profundo e entrei ali rapidinho onde minha viagem seguiu sem grandes percalços além, é claro, do fato de que fiquei em pé durante a meia hora de viagem porque o vagão estava cheio como todo o resto do trem. Imagina essa agonia para as mulheres que pegam esses trens todos os dias. Mas, é verdade, os limites que vocês apontaram são reais e eu concordo. E aí? Qual argumento ganha pra vocês? A unica coisa que admito aqui são por fim minhas enormes dúvidas.

  2. Há cerca de um ano o Passa Palavra publicou um texto da Simone sobre a discussão de gênero dentro do Movimento Passe Livre: http://passapalavra.info/2013/09/84768

    Àquela altura eu compartilhei num comentário um texto que saiu num jornal de 1983, publicado pela Associação de Mulheres do Grajaú. Se o faço de novo aqui é porque creio que o texto mantém sua atualidade e pode até mesmo responder às angústias da Ana Elisa.

    “MULHER DENTRO DE ÔNIBUS É O SEGUINTE…
    Transporte coletivo para o povo É naquela base. Nos momentos de pico mais parece uma lata de sardinha. São os donos das empresas lucrando as custas do trabalhador. Como se isto não bastasse, as mulheres são mais prejudicadas. Além de serem super discriminadas, ainda sofrem agressões psicológicas e morais por parte de alguns engraçadinhos que se aproveitam dos ônibus lotados, para se beneficiarem com repugnantes esfregas-esfregas.
    Este tipo de coisa não pode continuar acontecendo. As mulheres têm de tomar providências. É preciso reclamar para que tenhamos ônibus em quantidade suficiente, para que se possa andar dentro dele como gente.
    É preciso que as mulheres tomem uma posição enérgica contra este tipo de agressão machista.
    ATENÇÃO MULHERES, VALE TUDO: alfinetada, agulhada, cotovelada no estômago, chute na canela, etc”

  3. Em São Paulo, o atual prefeito por decreto aumentou a população por metro quadra nos ônibus, aperta que cabe. Está retirando os cobradores, e espera que os passageiros façam o serviço do mesmo. Os motorista ficam pedindo aos passageiros apertarem, “dê um passo para o fundo do ônibus ” para que todos possam viajar.
    É necessário que os patrões e o Estado pague aos trabalhadres para usar este transporte, passe a catraca que receba R$ 3.00

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