Por Passa Palavra

 

Em 31 de Julho André Barata, um dos dirigentes do partido Livre, publicou no jornal i o artigo «Por uma esquerda recomposta» , a que respondemos em 5 de Agosto com o artigo «Livres do nacionalismo?» . Nove dias depois André Barata contra-argumentou no artigo «A Esquerda e o Estado (Resposta ao Passa Palavra)» . Como não é frequente na esquerda — aliás, na direita também não — uma discussão política feita em termos correctos e objectivos, vamos juntar mais uma peça a este saudável debate.

Não pretendemos somente, para empregar os termos de André Barata, «identificar uma base comum de convicções», mas ainda clarificar as divergências, para que os leitores possam formar com ponderação as suas próprias posições. Ora, na sua resposta André Barata centrou-se em duas divergências, «sobre o papel emancipador do Estado e sobre a ação política baseada em partidos».

1.

Começamos pela «ação política baseada em partidos». André Barata defende que deve haver uma junção entre a actuação dos movimentos sociais fora do aparelho de Estado e a actuação dos partidos de esquerda no interior do aparelho de Estado. Com efeito, foi este o programa do PT no Brasil, e a nossa crítica à «ação política baseada em partidos» deve antes de mais ser avaliada pela nossa análise da cooptação dos movimentos sociais pelos governo PT, do presidente Lula como da presidente Dilma. Analisámos essa cooptação tanto do lado do governo, hoje sobretudo graças à intervenção do ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, mas também, antes dele, de Luiz Dulci, sem esquecer José Dirceu. E abordámos a outra ponta do problema na crítica que temos prosseguido à burocratização dos movimentos sociais e, no caso mais importante, à sua paulatina transformação empresarial. Ora, como em Portugal os movimentos sociais só existem no plano das discussões políticas e são desprovidos de realidade prática efectiva, é o caso brasileiro que nos parece sobretudo importante para estudar a questão. Por isso preferimos agora concentrar-nos na outra divergência assinalada por André Barata.

Antes disso, porém, queremos sublinhar o nosso acordo com André Barata quando ele escreve que «o impulso totalitário não é um exclusivo do Estado, antes tem substitutos igualmente impiedosos nas comunidades, nos locais de trabalho, nos partidos ou mesmo nas famílias». O Passa Palavra não tem apresentado a organização política não partidária como uma panaceia, mas, muito mais modestamente, como a menos má das formas de organização. Nem nos escusámos a criticar a utilização autoritarista de formas e princípios originariamente libertadores. Essa luta contra «o impulso totalitário» deve ser uma luta de todos os dias e em todas as circunstâncias.

2.

Passando à outra divergência, que diz respeito ao «papel emancipador do Estado», temos insistido em que o Estado não é algo de plástico, passível de ser moldado consoante uns ou outros interesses sociais, mas uma estrutura com características próprias, que dita as regras do jogo àqueles que insistem em jogá-lo. E parece-nos muito estranha uma passagem desta «Resposta ao Passa Palavra» onde André Barata considera «bastante evidente que, desde 1974, o Estado português – quase sempre com a oposição dos seus governos – projetou e levou longe a concretização de um programa de emancipação da sociedade portuguesa». Não compreendemos esta noção de uma oposição entre Estado e governo.

Aliás, se for para «levar a sério a experiência histórica do Estado social», convém não esquecer que a sua introdução se deveu a Bismarck, que o concebeu como um poderoso meio de luta contra a social-democracia. Também Keynes deixou muito clara, nos seus escritos, a função social e política da série de reformas que depois da segunda guerra vieram a sustentar o welfare state, o Estado de bem-estar social. Aliás, a história do welfare state é inseparável da história da guerra fria.

Numa multiplicidade de artigos e abordando a questão sob uma variedade de pontos de vista, o Passa Palavra tem procurado analisar as consequências sociais e políticas, além de económicas, daquela modalidade de exploração que em termos marxistas se denomina mais-valia relativa. Sobretudo, temos procurado mostrar a capacidade da mais-valia relativa para absorver as reivindicações económicas e sociais ou, mais fundamentalmente ainda, temos procurado mostrar como a mais-valia relativa é movida por muitas dessas reivindicações. Assim, o welfare state foi precisamente o enquadramento genérico da mais-valia relativa numa dada época histórica. A passagem do taylorismo ao toyotismo parece ter ditado o fim do welfare state na sua forma clássica.

Se, onde André Barata fala de Estado social, entendermos mais-valia relativa, os termos da questão ficam profundamente alterados.

3.

Na nossa perspectiva, a luta contra a exploração implica sempre uma luta contra o Estado, mas isto não significa que, consoante as circunstância e a capacidade organizativa da classe trabalhadora, não haja formas estatais em que a luta se possa desenvolver pior ou melhor. Precisamente por isso, parece-nos que teria sido útil que nesta sua resposta André Barata desenvolvesse uma passagem daquele artigo no i que suscitou este debate, quando ele criticou «uma esquerda refugiada no patriotismo em extremidade peninsular ou, ainda, na nostalgia do regresso ao passado do escudo». Gostaríamos que André Barata desenvolvesse aquelas ideias, porque é ali que podemos «identificar uma base comum de convicções».

Na nossa opinião, a «aversão a fronteiras» não se relaciona apenas nem sobretudo com a «natureza apátrida da dívida». Muito mais fundamentalmente, ela decorre da transnacionalização do capital, tanto do capital financeiro como do capital investido na produção de bens materiais e serviços. Para nós — e têmo-lo sublinhado de muitas maneiras, a propósito das lutas em Portugal e das lutas no Brasil — a transnacionalização do capital e a assumpção de poderes de facto soberanos pelas grandes companhias transnacionais faz com que os antigos Estados nacionais percam a razão de ser. Como fica, nesta perspectiva, a crítica de André Barata à esquerda patriótica e aos nostálgicos do Escudo?

Quando André Barata critica aquela esquerda que «faz ressurgir a figura política do Estado, mas para reagir e contrapor ao carácter fortemente apátrida da primeira uma reativação da figura do Estado-nação», é aqui que identificamos «uma base comum de convicções». Estamos de acordo com André Barata quando ele afirma que «esta é uma via de enclausuramento identitário que se alimenta sobretudo do ressentimento face à agressividade austeritária». Em vários artigos, temos insistido que um abandono da zona euro corresponderia a um agravamento das condições de exploração dos trabalhadores residentes em Portugal, que só poderia ser operado através de modalidades de capitalismo de Estado, justificadas ideologicamente pelos mitos nacionais. Parece-nos que André Barata converge com este ponto de vista ao escrever que «mesmo que o patriotismo de esquerda consiga opor-se ao estatismo apátrida da dívida, fá-lo-á sobretudo pela reposição da centralidade do Estado-Nação na vida das sociedades, no fim e ao cabo, um outro estatismo com as suas formas de opressão».

Mas que conclusões práticas imediatas extrai daqui André Barata para a recomposição de forças da esquerda portuguesa?

4.

No último parágrafo da sua resposta André Barata esboça o que o «Estado social», tal como ele o entende, deveria ser: «O Estado social tem de resultar do impulso organizador de liberdades comuns das comunidades. É nessa capacidade criativa de as sociedades, as grandes e as pequenas comunidades se organizarem cooperativamente desativando o dispositivo mercadorizador que deve radicar um novo impulso da ideia de Estado social universal e solidário. Quiçá, a palavra “Estado” na expressão “Estado social” esteja demasiado próxima dos seus usos soberanistas e estatistas que, por outra porta, reintroduzem lógicas de dominação. Mas se filtrarmos bem os usos e as menções que fazemos das palavras talvez consigamos ter uma perceção clara de quão importante é não abdicar desta ideia que tem sido o que de mais nobre animou o programa do Estado social».

Se na linguagem tudo está na forma como definirmos os termos e na precisão ou latitude que lhes conferirmos, na política tudo está na forma de organização das entidades, qualquer que seja o seu nome. E é aqui que dia a dia se vão definindo os campos e as convergências, ou clivagens, fundamentais. Não se trata só, parece-nos, de «filtrarmos bem os usos e as menções que fazemos das palavras», mas antes de mais de filtrarmos bem os usos e as aplicações que fazemos das formas de organização.

3 COMENTÁRIOS

  1. Em Pindorama, o “Estado social” é um corporativismo bifronte: populista, para o térreo; patrimonialista, para a cobertura.

  2. Peço desculpa pelo imenso tempo que demoro a responder. A interrupção deveu-se ao gozo de férias em condições tais que não pude escrever. Ora, mas não gostaria deixar de responder a algumas das questões suscitadas, apesar do tempo que passou. Até porque as outras questões, mais pressionadas pelo tempo e relacionadas com a recomposição da esquerda, ficarão nesta fase por responder. São perguntas difíceis para as quais importa sobretudo encontrar uma resposta na praxis. Foi justamente por isso que escrevi o artigo no jornal I que deu origem a este debate.

    Segue então o link: http://www.andrebarata.com/entry/por-um-estado-social-mais-libertario

  3. BARATEANDO
    “Nec plus quam minimum.” Não mais que o mínimo. É a consigna do minimalismo ultrarreformista.
    Nessa gororoba, sobra Bernstein e falta Luxemburgo.

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