«Salvar um milhão de judeus! E para fazer o quê com eles? Onde os vamos pôr?» Por João Bernardo
Indiquei no artigo anterior que, durante a vigência do Pacto Germano-Soviético, os judeus polacos que conseguiram fugir da zona do seu país ocupada pelo Reich para a zona ocupada pelo Exército Vermelho foram deportados ou metidos em campos de concentração, triste destino, mas ao menos foram aceites e ninguém voltou a pô-los do outro lado da fronteira. Mais sinistra foi a atitude do Reino Unido e dos Estados Unidos.
Enquanto durasse o regime nacional-socialista, a única coisa a fazer seria deslocar centenas de milhares de judeus da Europa para um lugar seguro. Ora, desde a conferência que, por sugestão do presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, reuniu delegados de 32 países na cidade francesa de Évian, durante o Verão de 1938, com o objectivo de estudar as possibilidades de realojamento maciço dos judeus do Reich, e até ao final da guerra, foram-se acumulando nos gabinetes oficiais centenas de planos, totalmente fúteis porque tanto os Estados Unidos e a Grã-Bretanha como as nações da América Latina, com a parcial excepção da República Dominicana, haviam deixado muito claro em Évian que se recusavam a receber multidões de refugiados. Cada governo só se dispunha a encontrar condições de asilo em países estrangeiros, que por seu turno remetiam para outros a solução do problema, e assim nada se fez.
No plano das intenções, porém, os projectos subsequentes à conferência de Évian são dignos de registo, já que uma boa parte deles, quando não propunha o envio dos judeus para congelarem no Alasca, previa o seu estabelecimento nas Guianas ou em qualquer região da África, o que revela um sonho das democracias − aproveitar as consequências da expansão imperialista do nacional-socialismo para conferir novo vigor ao seu próprio colonialismo.
Tudo somado, não havia motivo para que os judeus do Reich tivessem grandes ilusões. Em Maio de 1939, quatro meses antes do início da segunda guerra mundial, saiu da cidade alemã de Hamburgo o navio St Louis transportando mais de 900 judeus, a quem as autoridades nazis haviam dado autorização para abandonar o país, e que tinham a esperança de encontrar acolhimento nos Estados Unidos. Com o argumento de que a opinião pública norte-americana seria contrária à aceitação de mais judeus, visto já estarem preenchidas as quotas de imigração decorrentes da National Origins Quota Law, aprovada pelo Congresso em 1924, persuadiu-se o comandante a dirigir o navio para Havana, onde os fugitivos contavam receber visto do consulado dos Estados Unidos. Nessa época o governo cubano seguia obedientemente as indicações norte-americanas, e portanto recusou-se a dar asilo aos judeus e intimou o navio a abandonar a ilha. O comandante tentou então dirigir-se para Miami, onde foi impedido de aportar. Também o governo canadiano recusou a autorização de desembarque aos fugitivos. Não lhes restou outra solução senão fazer a viagem de regresso, e a carga humana acabou por ser depositada em vários países europeus, onde iria ficar mais tarde exposta à perseguição nazi.
A situação repetiu-se em 1940, quando um navio português carregado com cerca de 80 judeus fugitivos do Reich se viu recambiado dos portos mexicanos mas conseguiu que a maior parte dos passageiros desembarcasse nos Estados Unidos. Isto só serviu para endurecer mais ainda as posições do Departamento de Estado, a ponto de nos meados de 1941 o alto funcionário que então superintendia estes assuntos, confesso admirador de Hitler e de Mussolini e obcecado com o perigo de uma conspiração judaico-comunista, se gabar de ter estancado definitivamente a entrada de refugiados. Com efeito, enquanto a guerra durou os consulados norte-americanos concederam um número de vistos inferior ao que a lei lhes permitia.
Talvez as primeiras notícias do genocídio que estava a vitimar os judeus se tivessem devido a Thomas Mann, um dos mais notáveis romancistas do século passado, numa série de palestras que proferiu através da BBC em Dezembro de 1941 e Janeiro de 1942. Mas já em Outubro de 1941 a imprensa aliada recebera descrições de morticínios efectuados na Ucrânia sob a ocupação nazi, e em Janeiro de 1942 o governo soviético tornou público um relatório detalhado acerca das acções praticadas pelos Comandos de Extermínio organizados pelos SS nos territórios conquistados de leste. A partir de então as informações sucederam-se, umas mais aterradoras do que as outras. Uma rede clandestina de recolha de testemunhos organizada pelo historiador judeu Emmanuel Ringelblum, cativo no ghetto de Varsóvia, conseguiu transmitir aos governantes polacos refugiados em Londres documentação acerca de um dos campos de extermínio, dando ocasião a que a BBC anunciasse em Junho de 1942 que os nazis haviam inaugurado a política de «solução final» e contribuindo para que o governo polaco no exílio pudesse apresentar em Agosto desse ano ao governo dos Estados Unidos um relatório sobre o uso de câmaras de gás e de fornos crematórios. Além disso, em Julho de 1942 os serviços secretos aliados na Suíça souberam por uma fonte germânica fidedigna que Hitler ordenara a eliminação dos judeus. Estas informações foram confirmadas pouco depois por documentos emanados do Congresso Judaico Mundial, e no final do ano por notícias transmitidas por funcionários da Agência Judaica da Palestina. Entretanto, em Novembro, chegara a Londres Jan Karski, um membro da resistência polaca que, com insuperável audácia, havia penetrado num dos campos de extermínio e pôde descrever pessoalmente ao ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Eden, e ao próprio presidente dos Estados Unidos, Roosevelt, os métodos empregues pelos nazis. As informações foram-se acumulando e permitiram uma avaliação bastante exacta da situação.
A primeira reacção do Departamento de Estado norte-americano foi atrasar e dificultar tanto quanto possível a difusão dessas informações, e mais tarde o subsecretário de Estado, ou alguém por ele, chegou a proibir que os canais diplomáticos veiculassem outras notícias do mesmo género. Só em Dezembro de 1942 os Aliados procederam a uma declaração conjunta acerca da «política alemã de extermínio da raça judaica», e de então em diante tanto o governo dos Estados Unidos como o do Reino Unido se esforçaram por subestimar o problema e por adiar qualquer tipo de solução, recusando-se a dar fundos e a fornecer meios de transporte para salvar os judeus. Em Abril de 1943 a conferência anglo-americana das Bermudas, convocada especialmente para discutir as questões suscitadas por este genocídio, absteve-se de propor qualquer iniciativa eficaz. Finalmente, em Janeiro do ano seguinte o governo dos Estados Unidos criou o War Refugee Board, Comissão para os Refugiados de Guerra, mas perante a dimensão da tarefa os resultados obtidos foram insignificantes. «Na realidade», afirma uma equipa de eruditos, «tanto os britânicos como os americanos, depois de terem organizado a conferência das Bermudas […], opuseram-se a quaisquer planos de salvamento maciço dos judeus da Europa ocupada».
A política de omissão e de negligência deliberada foi seguida pelos Aliados a todos os níveis e em todas as circunstâncias. «Tenho consultado uma massa de material, parte dele confidencial, que lida com a difícil situação dos judeus da Europa, que estão desaparecendo rapidamente, e com o destino de sugestões para os auxiliar, e é uma história assustadora», escreveu um jornalista em Junho de 1944 num semanário de Nova Iorque.
Em 1940, com o curioso argumento de que um afluxo de judeus estimularia o anti-semitismo latente na Grã-Bretanha e acabaria por ser prejudicial à própria comunidade judaica, o ministro do Interior britânico, aliás uma figura importante do Partido Trabalhista, rejeitou uma proposta do governo colaboracionista francês, estabelecido em Vichy, que se dispunha a permitir a emigração de crianças judaicas.
No final de 1941, quando o embaixador da Turquia em Bucareste sugeriu ao representante dos Estados Unidos que os judeus romenos fossem transferidos para a Palestina através da Turquia, o Departamento de Estado norte-americano recusou-se a transmitir sequer esta proposta aos britânicos, invocando, entre outros argumentos, as dificuldades de transporte, a possibilidade de as comunidades judaicas dos demais países ameaçados pelo nazismo pedirem igualmente ajuda e a eventualidade de virem a surgir «pressões para um asilo no hemisfério ocidental».
Nos primeiros meses de 1943 a Suécia, um país neutral, ofereceu-se para acolher 20.000 crianças judias provenientes da Europa ocupada pelos nazis, com a condição de a Grã-Bretanha e os Estados Unidos pagarem os custos da sua alimentação e se comprometerem a repatriá-las no final da guerra, mas o governo norte-americano demorou tanto tempo a dar uma resposta que a ocasião se perdeu.
Em Março desse ano surgiu uma nova oportunidade de salvar um número muito considerável de vidas, quando a Bulgária anunciou que autorizaria os seus 60.000 ou 70.000 judeus a emigrarem para a Palestina, mas também então os Aliados não deram seguimento ao projecto.
Pouco depois, um plano do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich, que encarava a possibilidade de trocar 5.000 crianças judias eslavas pelos alemães detidos em território britânico, foi recusado pelo governo de Londres com o argumento de que não havia equivalência entre as duas situações porque as crianças não possuíam a cidadania britânica.
Com igual má vontade deparou a proposta do ditador fascista romeno, o marechal Antonescu, que em Julho de 1943 pretendia vender aos Aliados, pela módica quantia de 170.000 dólares, a vida de 60.000 ou 70.000 judeus. O Departamento de Estado norte-americano demorou oito meses para autorizar as organizações judaicas a depositar em bancos suíços o dinheiro prometido, e como entretanto o Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e o Ministério da Economia de Guerra se opunham, invocando a «dificuldade de receber um número considerável de judeus», acabou por não se fazer nada.
Do mesmo modo, quando o almirante Horthy, regente do Estado fascista húngaro, anunciou que, com o acordo das autoridades do Reich, autorizaria a saída de todos os judeus que tivessem recebido vistos para outros países, num total entre 17.000 e 20.000 pessoas, os governos britânico e norte-americano tardaram tanto a responder que entretanto o exército germânico ocupou o país e uma vez mais as democracias deixaram passar a oportunidade de salvar vidas judaicas.
Finalmente, em Abril de 1944, quando o aparelho produtivo nazi deparava já com obstáculos insuperáveis, Heinrich Himmler, Reichsführer SS, comissário do Reich para o Reforço do Germanismo e ministro do Interior, ou seja, o maior personagem do regime a seguir a Hitler, recorreu a um dirigente sionista húngaro para apresentar às potências aliadas ocidentais uma proposta em que se comprometia a poupar a vida de um número máximo de um milhão de judeus e a autorizar a sua emigração com a condição de receber em troca 10.000 camiões, para serem usados somente contra os soviéticos na frente leste, e de lhe serem dadas acessoriamente quantidades consideráveis de café, chá, cacau, sabão e ainda outros artigos. Os Aliados recusaram o negócio e chegaram mesmo a prender o intermediário durante alguns meses. Decerto lhes importava menos a vida dos judeus, e menos ainda encontrar alojamento para um milhão de refugiados, do que acelerar a deterioração das capacidades de transporte do Reich. O político e homem de negócios britânico que então desempenhava as funções de Ministro Residente no Cairo exclamou, ao interrogar o emissário: «Salvar um milhão de judeus! E para fazer o quê com eles? Onde os vamos pôr?».
Se vários milhares de antifascistas estrangeiros haviam sido encerrados pelos governos democráticos em campos de concentração; e se as autoridades soviéticas deportaram ou prenderam e até colocaram em campos de trabalho muitos mais milhares de socialistas e de comunistas dissidentes ou até ortodoxos; e se os judeus que poderiam fugir não tinham quem os recebesse, o que facilitou muitíssimo o programa nazi de extermínio − restaria alguém depois da guerra para pensar numa revolução?
Referências
A citação de uma equipa de eruditos acerca da ineficácia da conferência das Bermudas encontra-se em I. C. B. Dear e M. R. D. Foot (orgs.) The Oxford Companion to the Second World War, Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, 1995, pág. 864. A declaração do jornalista I. F. Stone no semanário nova-iorquino The Nation pode ler-se em Katrina Vanden Heuvel e Hamilton dos Santos (orgs.) O Perigo da Hora. O Século XX nas Páginas do The Nation, São Paulo: Scritta, 1994, pág. 245. As frases citadas a propósito da atitude tomada pelo Departamento de Estado norte-americano relativamente à proposta apresentada pelo embaixador da Turquia em Bucareste e relativamente à reacção do Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico e do Ministério da Economia de Guerra perante a proposta feita pelo marechal Antonescu vêm em Raul Hilberg, The Destruction of the European Jews, Londres: W. H. Allen, 1961, pág. 720 n. 19 e pág. 721, respectivamente. O desabafo de Lord Moyne, Ministro Residente no Cairo, encontra-se citado em Henry L. Feingold, Bearing Witness. How America and Its Jews Responded to the Holocaust, Syracuse: Syracuse University Press. 1995, págs. 87-88. Os leitores interessados por uma análise mais ampla destes acontecimentos podem consultar o meu Labirintos do Fascismo. Na Encruzilhada da Ordem e da Revolta, Porto: Afrontamento, 2003, especialmente as págs. 675 e segs.
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