Por Manolo
O Fórum Social Mundial foi criado entre os anos 2000 e 2001, período de maior difusão e força do assim chamado “movimento anti-globalização”. Grosso modo, este “movimento anti-globalização” resultou da convergência entre movimentos anticapitalistas do Norte geopolítico – autonomen alemães, centros sociales okupados espanhóis, centri sociali autogestiti italianos, Reclaim the Streets britânico, ambientalistas radicais do Earth First! etc. – com movimentos sociais de base do Sul geopolítico – o movimento zapatista mexicano e os diversos movimentos de povos originários da América Latina, movimentos de camponeses, movimentos de trabalhadores de maquiladoras etc.
Em 1996, graças à convocatória feita pelos zapatistas, estes movimentos haviam iniciado debates para a construção de uma “rede coletiva de nossas lutas e resistências específicas (…) uma rede internacional de resistência contra o neoliberalismo (…) e pela humanidade”. Esta rede tomaria corpo em 1998, num encontro em Gênova que resultou na fundação da Ação Global dos Povos (AGP), estruturada sobre cinco Pontos de Partida:
1. Uma rejeição muito clara ao capitalismo, ao imperialismo, ao feudalismo e a todo acordo comercial, instituições e governos que promovem uma globalização destrutiva.
2. Rejeitamos todas as formas e sistemas de dominação e de discriminação incluindo, mas não apenas, o patriarcado, o racismo e o fundamentalismo religioso de todos os credos. Nós abraçamos a plena dignidade de todos os seres humanos.
3. Uma atitude de confronto, pois não acreditamos que o diálogo possa ter algum efeito em organizações tão profundamente antidemocráticas e tendenciosas, nas quais o capital transnacional é o único sujeito político real.
4. Um chamado à ação direta, à desobediência civil e ao apoio às lutas dos movimentos sociais, propondo formas de resistência que maximizem o respeito à vida e os direitos dos povos oprimidos, assim como, a construção de alternativas locais ao capitalismo global.
5. Uma filosofia organizacional baseada na descentralização e na autonomia.[1]
A extrema diversidade geográfica de seus componentes é um dos elementos marcantes da AGP; entre seus fundadores e participantes – não seria possível listar todos por questões de espaço[2] – a maior parte são movimentos de base; muitos deles são movimentos de camponeses ou de povos originários; o principal traço comum entre eles, entretanto, é o emprego da ação direta como método principal de luta. Não obstante o caráter da AGP estar em permanente mudança, os militantes e organizações que a constroem recusam peremptoriamente sua transformação numa “nova Internacional” com projetos de poder; disso resulta que a AGP não tenha filiações, que ninguém esteja autorizado a falar em nome dela, que ela não possa ter personalidade jurídica em país algum, que ela não tenha fundos próprios nem cotizações e que um comitê rotativo anual de convocante tenha como tarefa apenas azeitar as comunicações entre os movimentos entre uma conferência e outra, além de organizar a próxima conferência[3].
Já em 1998 a Segunda Conferência Interministerial da OMC foi surpreendida pelo primeiro Dia de Ação Global[4] convocado pela AGP: manifestações ocorreram não apenas em Genebra, sede do encontro, mas em outras sessenta localidades do globo, envolvendo dezenas de milhares de pessoas. Mas os principais êxitos do “movimento anti-globalização” através da AGP começaram em 1999: após uma Conferência Internacional em Bangalore (Índia), a AGP convocou um Dia de Ação Global contra a Rodada do Milênio da OMC, que aconteceria a partir do dia 30 de novembro (“N30”, no jargão militante) em Seattle. Muito embora outras organizações houvessem também convocado protestos (notadamente a AFL-CIO e a coalizão católica Jubileu 2000), foram os protestos organizados através da AGP e da Rede de Ação Direta (Direct Action Network – DAN) estadunidense que chamaram a atenção da opinião pública internacional para a importância daquela reunião e para os impactos de um capitalismo renovado sobre o mundo.
De então até 2001 foram vários os Dias de Ação Global, cada qual mais amplo que o precedente. Uma onda de mobilização anticapitalista internacional atravessava o mundo de ponta a ponta. Em Gênova, entretanto, os duzentos mil ativistas que participaram dos protestos contra a 27ª reunião de cúpula do G8 entre 18 e 22 de julho de 2001 – a maior manifestação “anti-globalização” desde Seattle – sofreram na pele o recrudescimento da repressão: a sede temporária do Centro de Mídia Independente foi invadida[5], um muro de cimento foi levantado para impedir a passagem dos manifestantes para a “zona proibida” da cidade[6], as forças policiais usaram e abusaram de táticas de infiltração e provocação[7]; por fim, houve o assassinato de Carlo Giuliani[8].
Meses depois, os participantes da 3ª Conferência Internacional da AGP (Cochabamba, Bolívia, 16 a 23 de setembro de 2001) publicam a Declaração de Cochabamba, na qual se solidarizam com o povo estadunidense após os ataques de 11 de setembro (“Temos esperança de que a experiência do horror vivido por nossos irmãos norte-americanos ajude-lhes a compreender a crueldade e o absurdo do abuso do poder militar e a cultivar sua solidariedade frente a todo tipo de atropelos contra a população civil”), condenam “crimes tais como os bombardeios anunciados pelo governo dos EUA e seus aliados contra a população civil” e prometem opor-se “através de ações globais à guerra absurda anunciada pelos Estados Unidos”. A perseguição a ativistas e organizações inteiras pela repressão internacionalizada após os ataques, entretanto, dificultou enormemente a realização de novos Dias de Ação Global; desde então a AGP, apesar de haver realizado uma consulta internacional em outubro de 2005 (Haridwar, Índia) e uma polêmica conferência européia descentralizada entre agosto e setembro de 2006 (França), não tem conseguido mobilizar ações com o mesmo impacto do período anterior a 2001.
O principal resultado da criação da AGP foi, sem dúvida, a criação e difusão dos Dias de Ação Global. Estas manifestações foram o “batismo militante” de uma geração de ativistas que têm hoje entre vinte e cinco a quarenta anos, e colocaram na pauta política mundial, através da ação direta, questões como o ataque de empresas transnacionais a povos inteiros na África, Ásia e América Latina; o aprofundamento da sangria capitalista a partir da implementação das políticas baseadas no Consenso de Washington[9]; a nula democraticidade das instituições capitalistas (principalmente organizações financeiras multilaterais, Estado e empresas transnacionais) quando confrontadas com os resultados de suas ações.
Muito embora a imprensa internacional haja atrelado à AGP e aos participantes dos Dias de Ação Global a imagem de “terroristas” interessados apenas na destruição de lojas da McDonald’s, até a conferência de Cochabamba a não-violência era parte integrante de seus Pontos de Partida, e seus boletins[10] passam longe de incentivar a violência gratuita.
Leia as demais partes : [1] – [3] – [4] – [5] – [6]– [7]
Notas
[1]: http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/pt/introducao.htm
[2]: Alguns deles: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (Brasil), a Associação dos Fazendeiros do Estado de Karnataka (Índia), o Movimento pela Nacionalização da Terra e pela Reforma Agrícola (Sri Lanka), a Federação Krishok (Bangladesh), o Movimento da Aliança Nacional dos Povos (Índia), a Guises Montana Experimental (Nicarágua), as Organizações Negras da América Central (Honduras), o Movimento das Juventudes Kuna (Panamá), o Processo das Comunidades Negras (Colômbia), o Fórum da Unidade dos Trabalhadores do Vestuário (Bangladesh), as Seis Federações do Trópico (Bolívia), o Comitê de Greve da Universidade Nacional Autônoma do México, o movimento Tino Rangatirotanga (Nova Zelândia), o movimento Reclaim the Streets (Reino Unido), o Sindicato dos Trabalhadores dos Correios do Canadá, a Confederação Sindical de Trabalhadores (Nicarágua) e as Mulheres de Luto (antiga Iugoslávia). Uma lista completa dos participantes da 3ª Conferência Internacional da AGP em Cochabamba (16 a 23 de setembro de 2001) pode ser encontrada em http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/cocha/applications.htm.
[3]: http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/cocha/principios.htm
[4]: Os Dias de Ação Global são manifestações descentralizadas organizadas em diversos lugares do mundo em datas coincidentes com encontros de cúpula de organizações como o G8, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI).
[5]: Centro de Mídia Independente, “Centro de Mídia Independente de Gênova é invadido”. Centro de Mídia Independente, 21.07.2001, http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2001/07/101168.shtml
[6]: Federico Mutti, “As feridas de Gênova”. Centro de Mídia Independente, 24.09.2001, http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2001/09/7253.shtml
[7]: CMI Itália, “Policial infiltrado entre os jornalistas”. Centro de Mídia Independente, 15.08.2001, http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2001/08/5118.shtml
[8]: Centro de Mídia Independente, “Manifestante assassinado em Gẽnova”. Centro de Mídia Independente, 20.07.2001, http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2001/07/101138.shtml
[9]: Conjunto de dez prescrições de política econômica proposto pelo economista John Williamson como padrão a ser promovido pelo FMI e pelo Banco Mundial junto aos países cuja economia havia sido arrasada pela crise da dívida externa dos anos 1980.
[10]: http://www.nadir.org/nadir/initiativ/agp/free/pga_abc.html
Estava já na hora de alguém escrever um texto sobre o tema. Embora não se possa jogar o Fórum Social no lixo, há uma evidente relação com a tática de reprimir os movimentos de ação global, por um lado, e oferecer alternativa institucional, por outro. De forma que se procure institucionalizar/cooptar os anseios e formas organizativas que estiveram na base dos dias de ação global.
Foram eficazes: reprimiram violentamente e se apossaram do imaginário oferecendo o Fórum como alternativa aos dias de ação global.
O que diz muito sobre o tipo de militância que se aceita como desejável.