O capitalismo burocrático é a sede do poder informal, incorporado numa tecnoburocracia que roda entre a política e os negócios. Por João Bernardo
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na economia e na política globais. Nunca antes na história deste país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora das fronteiras – desenvolvendo as empresas transnacionais de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira foi tão independente – com base na exploração dos recursos econômicos da América Latina e na disputa de mercados e de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil foi tão engajado – ao ponto de grandes capitalistas apoiarem políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade – e é o que queremos investigar com esta série de artigos – nunca antes o Brasil foi tão imperialista.
Os quatro BRICs [1], aparentemente tão diferentes, têm em comum um elemento institucional, o capitalismo burocrático. Esta modalidade, que fora posta em causa no Brasil durante os governos de Collor de Mello e de Fernando Henrique Cardoso, regressou nos governos do PT, não só devido à acção governativa mas, talvez mais ainda, graças à utilização dos bancos estatais ou de predomínio estatal, nomeadamente o Banco Nacional de Desenvolvimento Económico e Social, BNDES. A Comissão Económica para a América Latina e o Caribe, CEPAL, que sempre defendeu uma via de desenvolvimento assente na conjugação entre a intervenção do Estado e os mecanismos do mercado, vê aqui a confirmação das suas teses e afirmou num estudo recente que, ao contrário dos restantes países latino-americanos, o Brasil «conta com uma política industrial mais consistente e de mais longa data (o que pressupõe a existência de consensos sociais mais duradouros em torno do objectivo da industrialização), reflectida na existência de uma banca de desenvolvimento poderosa e com forte capacidade de investimento e influência macroeconómica, e de uma política industrial e tecnológica mais definida. Esta situação difere da que vigora no resto da região, caracterizada por uma banca de desenvolvimento que em certos casos foi desmantelada ou está pouco desenvolvida e que, portanto, não tem grande peso na economia» [2].
Porém, Maria Tereza Fleury e Afonso Fleury consideraram que, contrariamente à China, que é um milagre macroeconómico mas não parece ser um milagre microeconómico, o Brasil se arrisca a ser um milagre microeconómico e não macroeconómico [3]. Transposto para linguagem comum, isto significa que no Brasil o motor do crescimento, e portanto da transnacionalização, seriam algumas empresas particularmente consideradas e não a economia na sua totalidade. Mas nestas condições será impossível reorganizar a infra-estrutura educacional, que exige uma acção global e centralizada. Não haverá um caminho de saída?
Existe hoje, em muitos países e não só no Brasil, uma relação institucional pouco visível através da qual alguns componentes da microeconomia conseguem arrastar a macroeconomia. O que aqui denomino capitalismo burocrático refere-se a uma área que não consiste na face pública das instituições políticas nem na face exclusivamente económica das grandes companhias. É a sede de um poder informal, incorporado numa tecnoburocracia que roda entre a política e os negócios, raramente ocupando o primeiro plano das atenções. Para o leitor entender o que quero dizer com isto, e já que o assunto aqui é a economia brasileira, vou dar um exemplo do regime militar.
O Conselho Monetário Nacional, CMN, que começou a funcionar em 1965, foi o mais importante dos conselhos interministeriais que tomavam então decisões sobre os planos económicos de longo prazo e sobre as questões monetárias e fiscais de curto prazo. Especialmente poderoso no final da década de 1960 e nos primeiros anos da década seguinte, o CMN foi cerceado durante o governo Geisel mas voltou a predominar no final da década de 1970 e no começo da década seguinte. Presidido por um ministro, geralmente o da Fazenda, «o quadro de seus membros consistia em altos funcionários do governo na área econômica, o presidente de instituições financeiras federais (incluindo o Banco Central e o Banco do Brasil) e representantes do setor privado», explicou Werner Baer. «As decisões do CMN referem-se a todos os aspectos do orçamento monetário» [4]. E vemos assim uma instituição inserida nos órgãos de soberania, a quem cabiam decisões centrais de política económica, incluir representantes do sector privado, escolhidos por cooptação. Mas como pode haver quem pense que a estrutura militar é propícia a este tipo de privatização do poder público e que não ocorreria algo idêntico em outras circunstâncias, olhemos para o Brasil de hoje, e precisamente na mesma área.
«Com base na Pesquisa de Expectativas de Mercado, através da qual um grupo de cerca de 90 bancos e empresas de consultoria informa ao Banco Central suas previsões sobre o comportamento das principais variáveis a influenciarem o desempenho da economia nacional, a diretoria do Banco, reunida sob a forma de Comitê de Política Monetária (Copom), toma suas decisões para o cumprimento da meta de inflação definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) para o período, a mais importante das quais é a fixação da taxa de juros Selic», ou seja, a taxa básica que serve de referência a toda a política monetária, explicou Luiz Faria. E, depois de acentuar que «a Fazenda e, portanto, todo o Governo, ficaram prisioneiros das decisões do Copom», este economista chamou a atenção para «a função de árbitros da condução da política econômica conquistada pelos economistas que trabalham no mercado financeiro, não apenas com suas opiniões sempre presentes na imprensa, mas, pior, consultados com exclusividade pelo Banco Central na Pesquisa Focus», «isso para não se falar dos exclusivíssimos cafés da manhã [pequenos almoços] com diretores do Banco Central», acrescentou ele em nota [5]. O acesso de representantes formais ou tácitos do sector privado às instituições oficiais e o predomínio que aí possam obter processa-se tão bem no quadro da burocracia militar presidida pelos generais como no da burocracia de origem sindical e partidária presidida pelo PT.
Seria conveniente reanalisar nesta perspectiva todos os órgãos de Estado, e não só no Brasil mas em todo o mundo. Como o meu objectivo neste artigo é bastante mais modesto, limito-me a prever que chegará o dia em que o Estado há-de funcionar explicitamente como uma parceria público-privada, o que na prática já é. No final de 2004 foi instituído pelo governo Lula um programa de Parcerias Público-Privadas em que empresas privadas fornecem ao governo serviços contratados de infra-estrutura e o governo, por seu lado, garante a aquisição destes serviços por um período determinado e a um preço fixado. Nada mais curioso do que ver Fernando Henrique Cardoso, num texto relativamente recente, defender que «uma política de desenvolvimento de largo prazo que crie uma espécie de macroparceria público-privado para utilizar os recursos a serem gerados, por exemplo, pela exploração dos megacampos de gás e petróleo, permitiria dar enorme impulso ao desenvolvimento da educação e aos investimentos em infra-estruturas» [6].
Vemos que da direita à esquerda das classes dominantes, passando pelo centro, este capitalismo burocrático, ou este Estado privatizado, não sei como lhe chamar, reúne os sufrágios. Ultimamente o governo tem-se associado aos meios empresariais para alterar as formas de gestão e funcionamento da administração pública. Neste sentido Dilma Rousseff criou em Abril de 2011 o Fórum de Gestão Governamental, liderado pelo empresário Jorge Gerdau Johannpeter — presidente do conselho de administração do Grupo Gerdau, uma das mais importantes companhias transnacionais de matriz brasileira — e destinado a melhorar a eficiência da administração pública federal e a diminuir o custo do seu funcionamento. Será que se consegue superar assim a dicotomia, notada por Maria Tereza Fleury e Afonso Fleury, entre as iniciativas no plano da microeconomia e as inércias macroeconómicas?
Um exemplo flagrante desta dicotomia é a postura passiva, ou pelo menos não tão activa como muitos desejariam, que o governo brasileiro tem adoptado perante a saída de investimentos directos [7]. Ora, o capitalismo burocrático actual distingue-se das formas anteriores de estatismo porque as companhias transnacionais deixaram sem razão de ser a oposição entre liberalismo internacionalista e estatismo nacionalista. O estatismo dos BRICs, apoiando as companhias transnacionais, não é menos internacionalista do que o neoliberalismo. O fulcro da questão deixou de ser o internacionalismo e passou a ser o presumido automatismo do mercado, principal, se não único, artigo de fé do liberalismo. Isto significa que a noção mítica de uma pluralidade de empresas autónomas, que sustenta o neoliberalismo, foi substituída pela noção realista de uma teia de empresas interdependentes, que resulta da transnacionalização da economia.
Mas o atraso e a relativa timidez da intervenção do governo brasileiro na promoção dos investimentos directos gerados no país faz com que os empresários não estejam a beneficiar plenamente das vantagens do capitalismo burocrático. Nem sequer o Brasil é o único país em desenvolvimento nesta situação e, como observou o World Investment Report 2006, «são poucos os países em desenvolvimento que têm uma política explícita referente à emissão de investimentos externos directos» [8]. Quando, ou se, o governo brasileiro adoptar uma atitude vigorosa e sistemática neste sentido, o crescimento poderá ser muito grande e veloz.
Para avaliar a questão é necessário um certo recuo histórico. No Brasil o nacionalismo é muito profundo na esquerda porque o comunismo e o fascismo, ou pelo menos as suas vertentes principais, nasceram de um mesmo movimento desenvolvimentista, o tenentismo. E desde então os elos entre o varguismo e a esquerda, mesmo a extrema-esquerda, não foram quebrados. Já que o tema destes artigos é a economia, basta pensar que todos, sem excepção, os partidos de extrema-esquerda vivem economicamente dos sindicatos, os quais vivem do imposto sindical decretado por Getúlio Vargas. A chegada do PT ao governo agravou o nacionalismo, não só por se tratar da esquerda sindicalista no poder, mas ainda porque a política de desenvolvimento económico é uma condicionante da coesão social, sem a qual não existe nacionalismo. Se a economia crescer sob o pressuposto de que, embora a sua parte maior se destine aos lucros, haverá uma elevação dos salários, consoante a velha metáfora da fatia do bolo que aumenta, estará criada uma situação material propícia ao reforço da coesão social. Ora, a coesão social no interior do país é um factor indispensável a uma expansão imperialista eficaz.
Interessa-me aqui observar este processo na perspectiva da internacionalização das empresas brasileiras, e os governos do PT estão especialmente bem preparados para a nova fase do capitalismo mundial, porque o terceiro-mundismo da esquerda abriu caminho à constituição do novo Centro, que se vem a delinear desde que a actual crise económica debilitou o Centro anterior.
Fernando Henrique Cardoso, num texto publicado em 2008, onde insistiu longamente no declínio económico dos Estados Unidos e na progressiva edificação de um mundo multipolar, apresentou a política externa dos governos Lula como uma continuação e amplificação da sua [9]. Esta perspectiva foi confirmada por Fernando Ribeiro e Ricardo Markwald: «[…] cabe indagar qual teria sido o papel da política externa pós-2002 para essa reorientação dos fluxos comerciais em direção aos mercados não tradicionais. A resposta é: provavelmente bastante reduzido. Note-se, nesse sentido, que os ganhos de participação dos mercados não tradicionais eram nítidos já em 2001-2002 (aumento de 4,8 p.p), quando se encerra o governo FHC. No governo Lula, quando o foco nos mercados não tradicionais tornou-se um objetivo explícito da política externa, esses ganhos aumentaram ainda mais (6,6 p.p), mas a impressão que prevalece é a de continuidade» [10]. Talvez seja certo que a política externa seguida pelos governos do PT não inverteu a nova realidade económica subjacente, mas adequou-se a ela e, nesta medida, permitiu que ela fosse avante. Não se trata de sustentar que a política tivesse dado outro curso à economia, mas que facilitou esse curso.
Se assim for, mais curioso ainda fica o facto de, durante as eleições presidenciais de 2010, o candidato José Serra ter defendido um maior alinhamento com os Estados Unidos, precisamente numa ocasião em que o interesse económico consistia em reforçar as relações com os países emergentes. A este respeito, e durante o mais aceso da refrega, escreveu o presidente do conselho de administração do Grupo Votorantim, uma das principais companhias transnacionais brasileiras: «Se o governo [o governo Lula] não tivesse aberto agressivamente novos mercados com economias emergentes os efeitos seriam devastadores, isto é sério, e só aconteceu porque a direção foi mudada, as bases econômicas do governo FHC foram aproveitadas até um certo ponto, mas se não mudasse a estratégia, o Brasil teria quebrado como ocorreu nas outras crises. A aposta no mercado exterior emergente e no mercado interno, via inclusão social, é reconhecida no mundo inteiro como uma grande sacada deste governo que salvou o país de um grande desastre» [11]. Podemos confrontar a situação do Brasil com a do México, que colou a sua internacionalização à relação com os Estados Unidos e assim comprometeu, pelo menos durante algum tempo, as potencialidades de crescimento económico.
Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, escreveu num artigo recente que a «convicção multilateral, que informou a política externa brasileira, especialmente a partir do período Lula, e continuará presente no governo Dilma Rousseff, vem acompanhada da tese segundo a qual o rearranjo da ordem global se dará a partir da formação de novos polos». É certo que Marco Aurélio Garcia recusou a esta orientação da política externa a classificação de terceiro-mundista, com o argumento de que «a qualificação não procede historicamente e está impregnada de conteúdo ideológico». Mas, ao mesmo tempo que considerou que «as circunstâncias históricas que deram nascimento àquele relevante movimento internacional deixaram de existir com o passar dos anos» e que «tentar repeti-lo seria um anacronismo histórico», ele preveniu que isto «não significa desconsiderar sua importância e as heranças que deixou». Marco Aurélio Garcia tem razão ao escrever que «as relações centro-periferia, tal como se configuraram cinquenta anos atrás, não mais existem, sem que isso tenha eliminado as assimetrias entre países pobres e países ricos», mas não creio que ele tivesse ponderado correctamente as relações entre o político e o económico quando afirmou: «Grande parte de nossos fluxos comerciais internacionais se dirigiram para a América Latina, a África, a Ásia e os países árabes, e sua composição foi em grande medida de produtos de valor agregado. As mudanças de nossa presença econômica e comercial no mundo seguiram estritamente as pegadas da política externa, e isso os empresários brasileiros compreenderam muito bem. Não vem deles a caracterização de nossa diplomacia como “ideológica”, menos ainda de “terceiro-mundista”» [12]. Parece-me, bem pelo contrário, que numa história feita de tibieza e atrasos, os empresários brasileiros se internacionalizaram mais rapidamente do que o governo de Brasília.
Rubens Barbosa, antigo embaixador do Brasil em Londres e depois em Washington e agora consultor de negócios, queixou-se de que «o Brasil não oferece nenhum incentivo tributário à internacionalização de suas companhias» e acrescentou que desde há década e meia os chefes de empresa têm feito pressões sobre os sucessivos governos para a assinatura de acordos destinados a evitar a bitributação, mas sem resultados [13]. Pior ainda, o governo brasileiro caminharia em sentido contrário ao dos seus congéneres, porque, segundo o World Investment Report 2005, os países em desenvolvimento estavam a ser especialmente activos na conclusão de tratados bilaterais de investimento e de tratados para evitar a bitributação [14]. «Nos últimos 10 anos o Brasil assinou apenas 12 acordos de bitributação», indicou o Boletim Sobeet nº 59, de 17 de Novembro de 2008. «Em termos de acordos de investimento, por sua vez, foram apenas 2 assinados. Com isso, o país coloca-se na posição 157 entre 177 países da amostra da Unctad em termos de realização de acordos de investimento. Trata-se de posição inferior à de Malawi, Burundi e da Suazilândia». Este Boletim é editado pela Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Económica, um think tank ligado aos interesses das companhias transnacionais, e o Boletim Sobeet nº 71, de 18 de Agosto de 2010, depois de informar que «foram assinados 1004 tratados bilaterais de investimento nos últimos 10 anos no Mundo», observou que «o Brasil não assinou nenhum tratado de investimento nos últimos 10 anos». «Dos países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), o Brasil é o que apresenta o menor número de tratados de bitributação e investimento», concluíram Ana Cláudia Além e Rodrigo Madeira [15].
Por outro lado, a propósito das fricções ocorridas na Bolívia e no Equador com companhias transnacionais de matriz brasileira, Rubens Barbosa chamou a atenção para uma situação assimétrica, estando em vigor treze acordos destinados a oferecer garantias e proteger os investimentos externos directos recebidos pelo Brasil, mas sem que o mesmo cuidado seja tomado em benefício dos investimentos directos emanados do Brasil. «A internacionalização das empresas brasileiras, sobretudo na América Latina, na África e na Ásia, demanda que se examine esse assunto sob outra perspectiva», escreveu Rubens Barbosa. «O Brasil passou a assumir um papel de investidor, e não apenas receptor de investimento. Agora, as empresas brasileiras é que devem receber do governo apoio jurídico para evitar arbitrariedades de governos populistas que buscam inimigos externos para se fortalecer internamente». E aquele consultor de negócios informou que «o Conselho Estratégico da Fiesp examinou a delicada questão, tendo a presidência da instituição transmitido ao governo, em Brasília, a urgente necessidade da abertura de entendimentos sobre esse tipo de acordo» [16]. Não me parece, portanto, que Marco Aurélio Garcia tivesse razão ao pretender que «as mudanças de nossa presença econômica e comercial no mundo seguiram estritamente as pegadas da política externa», nem creio que a Fundação Dom Cabral tivesse apresentado um retrato realista quando escreveu que «o Itamaraty [Ministério dos Negócios Estrangeiros] facilita a internacionalização das empresas brasileiras por meio de suas relações diplomáticas com outros países, através da qual negocia a diminuição de barreiras alfandegárias e acordos para estabelecimento de subsidiárias brasileiras no exterior» [17].
Apenas no caso da África o governo tomou a dianteira das empresas. «Empresários e empresas nacionais, mesmo acumulando ganhos comerciais no momento, ainda duvidam das possibilidades do agir em terreno africano de forma mais duradoura, a impulsionar a logística que a África requer e que o Brasil pode bem aproveitar», assinalou o especialista de relações internacionais Sombra Saraiva, acrescentando em nota que «não se percebe uma estratégia empresarial de longo prazo a cuidar para que a presença do comercial migre para os investimentos em logística e sustentabilidade dessa área relevante para a diversificação de parcerias comerciais e políticas do Brasil». Em contraste com esta «baixa apreciação da África por parte da mídia e de agentes sociais e econômicos brasileiros», Sombra Saraiva referiu-se «à ação e à apreciação do Executivo, mais elevada». «Essa é uma área correta do governo Lula, que evoluiu nessa matéria em relação às dificuldades do governo Cardoso» [18]. Com efeito, Lula da Silva, tanto como presidente da República como depois de ter deixado estas funções, revelou um especial interesse pela penetração brasileira em África, e o Brazil Investment Guide, de 18 de Maio de 2011, creditou-o com a expansão das relações diplomáticas, a criação de numerosos consulados e, em geral, a promoção de contactos propícios às exportações e aos investimentos do Brasil. Recentemente, em Maio de 2011, Paulo Cordeiro, encarregado da África e do Médio Oriente no Ministério das Relações Exteriores, declarou que o governo Dilma tem a intenção não só de continuar mas de aprofundar as relações com os países africanos. Aliás, deve salientar-se que a integração com a África é um dos destaques estratégicos da Política de Desenvolvimento Produtivo, PDP. Nas palavras da Confederação Nacional da Indústria, CNI, trata-se de «1) aprofundar as relações históricas do Brasil com o continente africano; 2) o aumento da corrente de comércio; 3) reforçar a presença de grandes empresas brasileiras em vários países africanos […]» [19]. Porém, a linguagem do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, DIEESE, foi diferente e mencionou a «integração com a África no sentido de aproveitar a presença de grandes empresas brasileiras naquele continente para aumentar a corrente de comércio e a integração produtiva» [20]. Onde, nos termos da CNI, o governo decidiu «reforçar a presença de grandes empresas brasileiras», nos termos do DIEESE o governo decidiu «aproveitar a presença de grandes empresas brasileiras». Quem conduziu o processo, as empresas ou o governo? A questão aparece como um círculo em aberto.
Notas
[1] Em 2001 Jim O’Neill, economista-chefe da firma financeira Goldman Sachs, reuniu num grupo o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, fazendo um acrónimo fácil de fixar porque se pronuncia como a palavra inglesa que significa tijolo.
[2] Comisión Económica para América Latina y el Caribe, La Hora de la Igualdad. Brechas por Cerrar, Caminos por Abrir, CEPAL, 2010, pág. 118.
[3] Maria Tereza L. Fleury e Afonso Fleury, «Brasil e China — caminhos cruzados em seus processos de internacionalização», em Afonso Fleury e Maria Tereza Leme Fleury (orgs.), Internacionalização e os Países Emergentes, São Paulo: Atlas, 2007, pág. 145.
[4] Werner Baer, A Economia Brasileira, São Paulo: Nobel, 2009, pág. 157. Ver igualmente a pág. 159.
[5] Luiz Augusto Estrella Faria, «Política econômica e crescimento no Brasil de Lula», Indicadores Econômicos FEE, vol. 37 nº 4, 2010, págs. 173 e 180.
[6] Fernando Henrique Cardoso, «Um mundo surpreendente», em Octavio de Barros e Fabio Giambiagi (orgs.), Brasil Globalizado. O Brasil em um Mundo Surpreendente, Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, pág. 52.
[7] Classificam-se como investimentos externos directos aqueles que asseguram ao investidor o controlo ou, pelo menos, um interesse duradouro e uma influência decisiva na empresa estrangeira onde o capital é aplicado. Considera-se habitualmente que o investimento é directo quando permite adquirir uma participação superior a 10% do capital de empresas estrangeiras. Uma participação inferior é considerada como um investimento de portfolio ou investimento em carteira.
[8] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2006. FDI from Developing and Transition Economies: Implications for Development, Nova Iorque e Genebra: United Nations, 2006, pág. 203.
[9] Fernando Henrique Cardoso, op. cit., pág. 58.
[10] Fernando J. Ribeiro e Ricardo Markwald, «A balança comercial sob o regime de câmbio flutuante», em Octavio de Barros e Fabio Giambiagi (orgs.), op. cit., pág. 373.
[11] Antonio Ermírio de Moraes, «O cavalo manco e o puro sangue», site Aldeia Nagô [2010].
[12] Marco Aurélio Garcia, «Respostas da política externa brasileira às incertezas do mundo atual», Interesse Nacional, nº 13, Abril-Junho de 2011.
[13] Rubens Barbosa, «Proteção de investimentos no exterior», O Estado de S. Paulo, 24 de Fevereiro de 2009.
[14] United Nations Conference on Trade and Development, World Investment Report 2005. Transnational Corporations and the Internationalization of R&D, Nova Iorque e Genebra: United Nations, 2005.
[15] Ana Cláudia Além e Rodrigo Madeira, «Internacionalização e competitividade: a importância da criação de empresas multinacionais brasileiras», em Ana Cláudia Além e Fabio Giambiagi (orgs.), O BNDES em um Brasil em Transição, Rio de Janeiro: BNDES, 2010, pág. 51.
[16] Rubens Barbosa, op. cit.
[17] Fundação Dom Cabral, Ranking Transnacionais Brasileiras 2010. Repensando as Estratégias Globais, pág. 28.
[18] José Flávio Sombra Saraiva, «A África na ordem internacional do século XXI: mudanças epidérmicas ou ensaios de autonomia decisória?», Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 51 nº 1, 2008, págs. 90 e 91.
[19] Confederação Nacional da Indústria, Avaliação da Política de Desenvolvimento Produtivo – PDP, Brasília: CNI, Maio de 2008, pág. 6.
[20] Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, Política de Desenvolvimento Produtivo. Nova Política Industrial do Governo, Nota Técnica nº 67, São Paulo: DIEESE, Maio de 2008, pág. 7.
Esta série inclui os seguintes artigos
1) hesitações
2) desindustrialização ou avanço tecnológico?
3) infra-estruturas
4) ensino e Pesquisa e Desenvolvimento
5) capitalismo burocrático
6) transnacionalização tardia
7) geografia do novo imperialismo
8) teia do novo imperialismo
De um lado o importante papel do Estado para o desenvolvimento econômico. Uma participação tão grande que se poderia dizer que Vargas criou um novo país. De outro a participação ativa e fusão do empresariado no Estado, mediante órgãos, conselhos e outros mais. O texto é bastante contundente. Entretanto, ao menos aqui no Brasil, o uso de “capitalismo burocrático” soa estranho. Isso porque a mentalidade geral está acostumada a associar algo burocrático a algo ineficiente, cheio de rituais, regras, morosidade e outros. Já a definição do Estado como uma parceria público-privada deixa tudo bem claro.
No campo da educação não é diferente. Os donos das redes privadas de educação possuem representatividade e/ou participação nos conselhos municipais, estaduais e nacional de educação. Ao mesmo tempo, antigos secretários de educação e tecnocratas vão trabalhar nas redes privadas como consultores ou são administradores das redes privadas que viram secretários de educação, ou são as redes privadas a produzir apostilas usadas pelos municípios e, de todo modo, o baile entre os grupos de pesquisa das universidades estatais e as editoras e empresas educacionais é grande.
Lendo o comentário anterior, realmente se o autor tivesse usado “Estado privatizado” como título soaria mais adequado para nós brasileiros.
Quem quiser acompanhar hoje uma cidade sendo destruída pelo capital poderia estudar o que se passa em Jundiaí. Os antigos bairros operários, os velhos prédios históricos, os velhos monumentos tudo está sendo deitado abaixo para dar lugar a prédios cujos apartamentos ficam em torno de 1 milhão ou mais. Devido a proximidade de Jundiaí com São Paulo, as construtoras transformaram a cidade de forma prática, embora informal, em um condomínio residencial para a classe A e B paulistana que tem migrado para lá. Jundiaí é a cidade com maior quantidade de lançamentos imobiliários no Estado hoje. Com a chegada dos ricos e da classe média alta, o jundiaiense foi empurrado para as cidades vizinhas, para os cantos ou para as favelas. E mesmo com tanta gente pobre necessitando de moradia, eis que o governador anuncia a construção de uma linha de trem exclusiva entre Jundiaí e São Paulo, sem paradas, fazendo a ligação em 25 minutos. Esta linha se destina a atender justamente a esta parcela de classe média que embora more em Jundiaí, trabalha em São Paulo, estuda em São Paulo, possui vida cultural em São Paulo. Enfim, é um flagrante investimento estatal de alto valor para atender exclusivamente o setor imobiliário de Jundiaí. E fico a imaginar as reuniões entre construtoras e governo que deram origem a tal empreitada. Enquanto isso, 4 pessoas morreram soterradas na favela do São Camilo no início do ano.
Caro João Bernado
Gostaria de entender melhor por que razção diz, no começo do texto, que o “capitalismo burocrático” ou “Estado privatizado” teria sido “posta em causa no Brasil durante os governos de […] Fernando Henrique Cardoso” mas “regressou nos governos do PT”?
Embora o BNDES se tenha feito mais atuante no governo Lula, foi no governo FHC, o acadêmico que criticava os “anéis burocráticos”, e apesar das privatizações de empresas estatais então promovidas, que foram criadas as inúmeras “agências” nos mais diversos setores da economia (Anatel, Aneel, Anac, ANS etc.), abrindo amplo espaço para a atuação dos gestores das empresas privadas e privatizadas. Como nunca antes, passaram a compartilhar com os gestores estatais a regulamentação (e fiscalização…) desses mesmos setores em que atuam as empresas que integram. O espaço aberto a essa parceria, aliás legalmente aberto, passou a ser exercido numa escala que não existia no CMN e nas demais “autarquias” que tradicionalmente se encarregaram do dia-a-dia da intervenção do Estado brasileiro na economia.
Abraços,
Paulo
Caro Paulo,
Se, para simplificar, admitirmos a existência de dois canais institucionais, um que leva do governo para as empresas e outro das empresas para o governo, penso que o primeiro foi reforçado no Brasil desde o fascismo de Getúlio Vargas até ao autoritarismo do regime militar. Com Fernando Henrique Cardoso reforçou-se o segundo canal e é nesta perspectiva que entendo as Agências que você citou. Os governos do PT reequilibraram a situação, continuando a atribuir importância ao segundo canal mas dando de novo relevo ao primeiro canal e sobretudo modernizando-o. Em resultado de tudo isto, a principal base do Estado não se encontra hoje nas instituições governamentais, mas naquela faixa de instituições em que público e privado se confundem e em que existe um permanente vaivém de métodos e pessoas. Em boa medida as noções de público e privado deixaram de ser satisfatórias.
Aproveitando para responder aos dois outros comentários, é neste sentido objectivo, e não pejorativo, que eu emprego o termo burocracia.
Mas existe uma grande lacuna na análise que faço do capitalismo burocrático no Brasil, que é a questão dos sindicatos. Inicialmente tinha pensado incluí-la, mas depois desisti, devido à extensão tomada pela série. Talvez não tivesse sido uma decisão acertada. Um dos factores de renovação mais importantes trazidos pelos governos Lula foi a introdução dos sindicatos na área governamental, algo que não sucedia no Brasil desde o regime fascista de Getúlio Vargas. Só que agora os sindicatos já não se limitam a regular o mercado de trabalho e se converteram em investidores capitalistas e em detentores de enormes fundos financeiros. Remeto aqui para o livro que escrevi juntamente com Luciano Pereira, Capitalismo Sindical (São Paulo: Xamã, 2008). Tanto através do seu aparelho de enquadramento da classe trabalhadora como através do capital financeiro que detêm, os sindicatos são uma componente muito importante do actual capitalismo burocrático brasileiro.
Nesta perspectiva é possível que o governo Dilma dê um passo em frente e procure integrar também os movimentos sociais na área governamental. Devemos estar atentos à actuação de Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, e articulador das relações com as ONGs e com os movimentos sociais. Quem não prestar atenção a estes contactos e relacionamentos, por enquanto muitíssimo discretos, pode deparar com grandes surpresas num futuro próximo.
A propósito do esclarecedor exemplo posto pelo João Bernardo na sequência da boa pergunta do Paulo gostaria de citar um caso caso particular de aplicação desta regra geral.
Quem não conhece as penitenciárias internamente, o seu cotidiano, julga que elas são administradas pelo Estado, enquanto corpo de gestores externos que comandam toda a estrutura. No entanto, ao menos em São Paulo, que conheço, as unidades penitenciárias já desde um bom tempo passaram a incluir sistematicamente reuniões mensais entre os chefes dos presos, ás vezes quinzenais ou conforme a necessidade, e os demais diretores da unidade. Muitas vezes, ocorre de participarem destas reuniões o juiz ou juíza responsável pela unidade e até delegados, além de chefes de empresas que usam mão-de-obra carcerária. É uma prática informal, não sendo documentada, relatada em atas, nem mesmo virando notícia de jornais. Assim, a administração da unidade penal, desde os trabalhos burocráticos, passando por conflitos laborais, questão de higiene, segurança, alimentação, códigos morais dos presos, tratamento das visitas, tudo, acaba sendo, na prática, decidido neste conselho informal de gestão penitenciária.
Ocorre mesmo de grandes chefes do crime participarem de reuniões com altas autoridades, como é mais conhecido a respeito dos ataques de 2006. Estas reuniões acabam gerando toda uma normatização informal e extra legal de gestão das unidades. A mais conhecida é a divisão das unidades por facções, algo imposto pelos “gestores” criminais. E se destes conselhos informais acaba resultado uma aceitação pacífica de regras estatais por parte dos presos, também o Estado e os agentes penitenciários são obrigados a cumprir regras impostas pelos presos. Exemplo: não atravessar o pavilhão na hora da entrega da alimentação, não usar dados xingamentos como “filho da puta”, “dedo-duro”, não espancar presos sem motivo legal ou moral aceito, separar homossexuais em celas específicas, colocar uma fita vermelha que identifique as marmitas que os presos homossexuais usam, liberar privilégios para os chefes (visitas fora do dia, atendimento privilegiado em tantas coisas).
Comparando esta prática de gestão participativa informal que ocorre dentro dos presídios e o que se passa no âmbito educacional, onde não há reuniões sistemáticas entre docentes, tecnocracas e alunos, vê-se como a escola está atrasada com relação às penitenciárias. A gestão dos presídios, enquanto tecnologia social, é mais sofisticada.
Quanto ao comentário do João Bernardo sobre a possibilidade de que o governo Dilma dê um passo a mais na integração dos movimentos sociais ao governo, na figura de Gilberto Carvalho, é curioso que seja este ministro a anunciar as conquistas da jornada de luta da Via Campesina (e a discursar o quanto o governo Dilma, através da luta e da pressão dos movimentos sociais, está ao lado destes), em vídeo (editado) de mais de 7 minutos, publicado não numa página governamental, como da Secretaria-Geral da Presidência, mas na própria página do MST: http://www.mst.org.br/video/Conquistas-da-Jornada-de-Lutas-da-Via-Campesina
Tenho chegado atrasado aos debates…
Sobre a questão da burocracia sindical, gostaria de relatar uma situação bastante elucidativa sobre a atuação dos sindicatos. Estamos em meio a uma greve bem confusa aqui no IFSC, onde o SINASEFE está “à frente”. Enquanto eu lia um boletim no mural da greve, me deparei com uma informação absurda, de que apenas os sindicalizados votariam nas assembléias de greve. Fiquei muito irritado e tirei satisfações com uma dirigente da entidade. Ao invés de responder o porquê daquilo, ficou me perguntando por queeu não me sindicalizava, que era meu “dever”. Tive que explicar algo que jamais pensei que fosse fazer, que greve era uma ação própria da cetegoria, que o sindicato jamais poderia substituir esta, ou marginalizar os não sindicalizados. A mesma ainda deu a entender que, se houvesse algum tipo de perseguição a um grevista não sindicalizado, o sindicato nada poderia fazer, portanto se eu queria fazer greve que me sindicalizasse. Mas, eis que surge a grande questão: enfim ela confessa que tudo isso ocorre porque no fundo eles querem aproveitar para “fortalecer o sindicato”. Ou seja, o trabalhador deve se sindicalizar para ser “protegido” pelo sindicato. Ao invés de fortalecer a luta, apoiando a iniciativa de não sindicalizados, fragmentam a mesma, em nome do “fortalecimento” da máquina, a única forma de luta do trabalhador, segundo a dirigente. Bem, sobre o direito de voto nas assembléias, a mesma afirmou que apesar de sair aquilo no boletim, o Sinasefe de fato não cobra carteirinha na hora… Que bom… alguns servidores inclusive salientam o caráter “democrático” dessa medida. Essa perspectiva autoritária é reproduzida pela categoria, pois ouvi coisas do tipo, “quem é sindicalizado é obrigado a fazer greve”, ou “quem não é sindicalizado não tem direito à fazer greve”. Em “Transnacionalização do capital”, do João Bernardo, tem alguas passagens elucidativas sobre o exemplo descrito. Acho que não preciso responder por que não sou sindicalizado…
Saudações!
Como caso concreto de capitalismo burocrático é interessante ler as matérias: “Lobistas de fábricas monitoraram medidas” e “Mantega causa ‘desconforto’ em ministros”, que saíram hoje na página A5 do Valor Econômico (disponíveis aqui: http://www.valor.com.br/brasil/1010278/lobistas-de-fabricas-monitoraram-medidas e aqui: http://www.valor.com.br/brasil/1010298/mantega-causa-desconforto-em-ministros).