Por Diogo Duarte

 

A meio da tarde de Sábado, dia 16 de Março, o Rúben Marques, um jovem de 18 anos residente no bairro da Bela Vista, em Setúbal (Portugal), morreu na sequência de uma perseguição policial. O acontecimento tornou-se notícia não pela vida que se perdeu, mas pela rapidez com que a população da Bela Vista cercou a esquadra [delegacia] local em protesto, originando tumultos um pouco por todo o bairro. A revolta só foi contida através dum aparatoso dispositivo policial mobilizado para o efeito e que aí permanece desde então.

A perseguição iniciou-se por o Rúben estar a conduzir uma pequena mota sem capacete, tendo desobedecido a uma ordem policial para parar. Tudo aconteceu numa zona contígua ao seu bairro de residência, numa área com menos densidade populacional e em que predominam terrenos baldios e mato, onde o Rúben teria estado, segundo se diz, a fazer motocross. As causas directas da sua morte divergem consoante as diferentes versões da história: os familiares, amigos e as testemunhas que se encontravam na proximidade do incidente dizem que o Rúben foi alvejado e morreu vítima dos disparos; a polícia, agora suportada pelo resultado da autópsia, afirma que o jovem se despistou durante a fuga e que a morte resultou das lesões decorrentes do acidente. Reconhece, porém, ter disparado vários tiros de shotgun, mantendo que estes foram feitos para o ar, como forma de “intimidação”, e que as munições usadas eram de borracha. Em qualquer das versões, há dados que coincidem e permanecem incontestados: o primeiro, e mais importante, é que o Rúben morreu; é certo, além disso, que essa morte se deu na sequência de uma perseguição, supostamente motivada por o Rúben estar a conduzir uma mota sem capacete e por ter desobedecido a uma ordem para parar; finalmente, sabe-se que foram disparados tiros pela polícia.

Estes dados, só por si, são suficientes para tecer alguns comentários e tirar ilações. Mas comecemos por imaginar, ainda assim, que a polícia não tinha disparado um só tiro. Se a única coisa a ter acontecido tivesse sido a perseguição policial a um miúdo [jovem] sem capacete, e precisamente porque seguia sem capacete, não restariam dúvidas de que isso, só por si, seria um acto suficientemente irresponsável e criminoso pelo desfecho altamente provável que a acção podia ter. Quando juntamos os tiros, consegue ser tudo isso e, ao mesmo tempo, um absurdo. É completamente irrelevante saber para onde foram disparados, se para o ar, para o chão ou para o caixote do lixo, tal como é, para a vida do Rúben, completamente irrelevante saber se acertaram nele, na mota ou se foi três metros ao lado. Ainda que à luz da lei portuguesa constitua uma ilegalidade disparar para o ar numa situação destas, não passa dum pormenor. Sejam quais forem as considerações a propósito da opção que o Rúben tomou, é inegável que a sua morte foi potenciada pela acção irresponsável e desproporcionada da polícia: a mesma polícia que dias antes o tinha ameaçado; uma polícia que sabia qual o prédio onde o Rúben morava mas que, mesmo assim, não se importou de colocar a sua vida em risco; uma polícia que decidiu persegui-lo sabendo que o Rúben não passava dum miúdo em cima duma mota de baixa cilindrada. Foi um homicídio. Considerar que em tudo isto há alguma coisa de acidental, como conta a versão policial, é, no mínimo, repugnante. Apenas falta dizer que foi suicídio. A única coisa acidental foi não ter havido oportunidade para colocar uma arma junto do corpo do Rúben, como geralmente acontece nestas situações, para assim se poder dizer que este estava armado e que os agentes agiram em legítima defesa.

Procurar medir a gravidade do incidente consoante a morte tenha resultado dos tiros ou não, como muitas pessoas procuram fazer e como tem acontecido na comunicação social, é algo que só é possível pelo estatuto social do Rúben e por este ter crescido onde cresceu. São igualmente esses factores que explicam que uma polícia aja com o sentido de impunidade com que agiu. Se alguém sem capacete estivesse a circular na zona onde eu cresci, um bairro de classe média, e desobedecesse a uma ordem para parar (algo com bastante probabilidade de acontecer), a polícia nunca dispararia um tiro e só por absoluta inconsciência encetaria uma perseguição. A polícia sabia onde o Rúben morava. Vinha da esquadra situada no mesmo bairro onde habitava, o bairro da Bela Vista.

Em Portugal, quase toda a gente ouviu falar do bairro da Bela Vista, um local sobre o qual pairam manchetes e notícias que o ligam ao crime, à delinquência, ao tráfico de droga, a assaltos e violência. Toda a gente ouviu falar no bairro da Bela Vista e tem qualquer coisa a dizer sobre ele, mas raramente o que se diz parte daquilo de que o bairro se tece. Prefere-se sempre o que sobre ele paira, como se tudo não passasse duma mera opção tomada por aqueles que nele habitam. Na Bela Vista, o desemprego, a exclusão social, a pobreza, a extrema degradação material dos edifícios e dos espaços exteriores, tudo fruto do abandono negligente das autoridades durante décadas, fervem, num ciclo vicioso, um caldeirão onde o futuro deixou há muito de ser uma palavra e o presente não é mais do que um conjunto limitado de opções. O horizonte dificilmente se estende para além dos limites físicos do bairro. A história da sua construção e composição demográfica, iniciada a partir de meados da década de 70, é a história de um depósito para onde foram sendo atirados, sem qualquer critério que não o da exclusão e marginalização, todos aqueles que destoavam das cores da urbe: operários recém-chegados à cidade, moradores de barracas e habitações degradadas espalhadas pela cidade, refugiados e retornados das ex-colónias portuguesas, entre outras minorias. Gente sem outro lugar onde cair. Hoje, mais de metade de população da Bela Vista vive abaixo do limiar da pobreza, os níveis de desemprego aproximam-se dos 50% e atingem os valores mais altos na população jovem (o grupo etário largamente dominante no bairro, com a média de idades a ultrapassar em pouco os 30 anos), com apenas 1% a ter concluído algum curso de nível universitário.

Aquilo que para nós é uma novidade chocante e revoltante (“a crise”, “a austeridade”, “o atropelo aos direitos mais básicos”) é parte da vida quotidiana desses bairros há décadas. A taxa de desemprego do país, que hoje nos escandaliza, parece o sinal de um qualquer paraíso perdido se comparada com a de locais como este. Nem as previsões futuras mais catastrofistas se aproximam dos números que aí existem actualmente. Aquela espécie de clima de guerra de que agora se fala e que se sente – motivado por todo o tipo de agressões, perseguições e intimidações feitas pelas autoridades e dirigidas a cada vez mais pessoas independentemente da sua condição social (a pretexto de manifestações políticas ou não) – está instalado nesses lugares há muito tempo e a uma escala incomparável: é uma guerra quotidiana, silenciosa, invisível, em que as piores armas nem são as que agridem fisicamente. Para lugares como a Bela Vista, falar de “Estado de Direito” só pode soar a provocação: “Estado”, aí, significa, antes de qualquer outra coisa, força bruta, burocracia e encenações compostas por uma imensidão de técnicos que ali aterram vindos de fora, totalmente alheados das dinâmicas intrínsecas ao bairro, perdidos em exercícios de tradução dessa realidade em tabelas e números para tornar a sua violência quotidiana mais apresentável para o exterior; enquanto “direito” pouco mais é do que uma miragem que se pedincha como um favor, algo que raramente revela ser mais do que um monstro persecutório e condenatório que assombra cada indivíduo e esmaga todas as expectativas e ilusões. A maior solução que o “Estado de Direito” tem – sempre teve – para oferecer a lugares como a Bela Vista é “mais policiamento”, pedindo-lhe, porém, que seja de “proximidade”, que actue “de forma menos fria” e com “tacto”, talvez para assim parecer menos polícia e tudo poder continuar na mesma, sem perturbações.

Não há, na Bela Vista, memória de um só polícia condenado por um assassinato que tenha cometido, quando houve casos mais do que suficientes para que isso acontecesse nos últimos anos (o mais mediático terá sido o assassínio de Tony, em 2002, durante o dia e em pleno bairro). Juntem-se a isso tantos outros casos semelhantes que aconteceram noutros “bairros sociais” pelo país fora, como o da recente absolvição do polícia que matou “Kuku”, um miúdo [jovem] de 14 anos, com um tiro disparado directamente para a cabeça a escassos centímetros de distância (veja aqui, aqui e aqui).

Quando olhamos para bairros como a Bela Vista, a primeira pergunta a fazer devia ser sobre como é que nestas circunstâncias, alimentadas pela desesperança, e especialmente perante uma morte pela qual nunca será feita justiça, igual a tantas outras, as pessoas que aí habitam não decidem simplesmente partir tudo? Como é que é possível que a “inconsequência” dos seus habitantes se fique por atirar umas pedras à polícia, queimar uns caixotes do lixo ou destruir um autocarro [ônibus]? Perante o que seria compreensível, tudo isso parece pouco. Nem por isso deixam de ser tratados como “bárbaros”, “selvagens”, “desordeiros” e “incorrigíveis” por aqueles que os desprezam e por aqueles que perpetuam a sua condição e dela parecem beneficiar.

O Rúben parece ser culpado do sítio onde cresceu. A maior acusação que lhe é feita chama-se “Bela Vista” ou “bairro problemático”, condição que se abate sobre ele como uma fatalidade. As diferentes vitórias que a comunicação social e parte da opinião pública brandem no rescaldo do sucedido são exemplos particularmente esclarecedores do desprezo a que populações de bairros como o da Bela Vista estão votadas. Considerar relevante uma autópsia que confirma que o corpo não foi atingido por nenhuma bala é, pela sua irrelevância para a avaliação da natureza do comportamento policial, o sinal mais evidente desse desprezo e da guetização total (social, económica e urbanística) a que foram condenadas.

É por tudo isto que falar em “normalidade restabelecida”, num local onde a normalidade sempre foi a tirania da incerteza e da exclusão, é, para além de ofensivamente anedótico, a expressão mais saliente da violenta e esmagadora condenação, por parte de um sistema, votado às pessoas que habitam a Bela Vista. Não é, todavia, despiciendo que tal proclamação vitoriosa da normalidade seja sustentada pela presença dum aparato policial permanente e numeroso que ocupa o território e vigia freneticamente, com recurso a ameaças e todo o tipo de violência, cada movimento daqueles que nele se movem e que o habitam. Afirmar para as câmaras que “a situação está controlada” ou que “as coisas ficaram por ali”, como o fazem as autoridades, não pode, pela dimensão da ilusão ou da mentira que revela, provocar outra coisa que não um sorriso.

9 COMENTÁRIOS

  1. Portugal está a regredir. O bairro da Bela Vista de Setúbal é o novo bidonville! igual em direito às favelas do brasil, África e África do sul. Um ghetto dentro do actual neo-liberalismo.
    Só resta a essa juventude o recurso (político) à luta armada, mas não contra a polícia ( e sim contra o governo, único culpado desta situação.

  2. Another man done gone:
    Another man done gone.
    Another man done gone:
    This ‘justice’ just a con.

    Another man done gone.

    I never knew his name:
    I never knew his name.
    I never knew his name:
    It kills me just the same.

    I never knew his name.

    http://www.youtube.com/watch?v=749523cHwyc

  3. “Considerar relevante uma autópsia que confirma que o corpo não foi atingido por nenhuma bala é, pela sua irrelevância para a avaliação da natureza do comportamento policial, o sinal mais evidente desse desprezo e da guetização total (social, económica e urbanística) a que foram condenadas.”

    Aliás pelo teor e tom do texto, os factos são todos desclassificáveis se não se conseguir formular prova do que se quer dizer, consignar um abstracto para se ter razão é mais do que prova do que se crê ser a verdade, no íntimo. Mas isso não é uma aproximação fiel à realidade. Que existem problemas sociais desde faz muito tempo e se vão agravar, claro. O resto é propaganda para ser acompanhada pelo violino mais pequenino do mundo. Os sinceros pêsames a todos que conheciam este rapaz. É sempre um desperdício imenso quando se corta o potencial de uma vida.

    Quanto ao assalto realizado por um gang logo a seguir a esta tragédia, onde várias pessoas foram violentadas e um veículo de transporte foi destruído. Foi uma estranha forma de capitalizar o “pesar” colectivo, mostrando que algo; para além do enquadramento económico social muito desfavorável, se passa naquela zona algo de muito negativo e que não convinha abordar neste texto longo e parcialmente acusador.

  4. Rui Nuno, para clarificar, talvez a citação que faz do texto pudesse começar assim: “Centrar a discussão no facto de o Rúben ter sido atingido ou não, é, pela sua irrelevância para a avaliação da natureza do comportamento policial…” por aí fora. Diz o mesmo, especialmente no contexto do texto, mas torna-se mais claro.

    Quanto ao resto, pegue naquilo que são os factos deste acontecimento, ou seja, aqueles dados incontestados das diferentes versões da história e formule o seu juízo. Depois diga-me, por favor, em que medida é que os factos são, para mim, desclassificáveis. As ilações relevantes que tiro do sucedido são com base nesses factos. Pode haver uma ou outra formulação discutível, podem ser questionadas interpretações que faço de outras coisas de que falo no texto, mas, de qualquer forma, este texto não pretende assumir nenhuma aura de imparcialidade que não tem, até porque não consigo ser imparcial perante uma morte evitável e que teve uma origem bastante evidente (independentemente de quão certo ou errado esteve o Rúben nas suas decisões, independentemente de quão boa pessoa ele era.

    A reacção das pessoas, a que chama “gang”, pelos vistos sem grande preocupação pelos factos, não é compreensível sem esse enquadramento económico e social. Muito menos uma revolta espontânea pode ser acusada de querer “capitalizar” seja o que for, até porque, como se vê, gera mais hostilidade do que simpatia. De resto, esse enquadramento social e económico serve para explicar, ou, sendo menos ambicioso, para compreender, e não necessariamente para tecer considerações morais ou estratégicas sobre essas acções. Não formulei nenhuma minha opinião clara ou definitiva sobre elas, nem isso interessaria para o caso.

  5. descansa em paz andre força para os familiares conhecidos e amigos e nao desestir os nossos direitos sao iguais.ESTADO E PSP desrespeitam as leis e esta merda onde a gente vive eles sao os maiores CRIMINOSOS

  6. Como disse o famoso Hernâni Carvalho e pelas suas palavras… “A polícia judiciária não este no local onde o jovem morreu, nem esteve presente na autópsia, logo qualquer um pode escrever o que quer no relatório, e mais não digo…”. Acho que a polícia tem de fazer o seu trabalho, mas não mandem mais areia para os olhos do povo!!! Justiça SFF!!!

  7. Antes de qualquer comentário gostaria de deixar os meus pesamos a familia e que Deus tenha sua alma em paz. E depois muito brevemente gostaria de dizer que há um certo limite de ignorância social por parte desta nova geração devido às influencias que esses mesmos bairros sociais lhes transmitem. Se foi porque era ”preto” agora foi porque era ”branco” e se há algo que todos sabemos é que bandidos morrem pelas mãos de outros bandidos, e para a policia é menos essas munições que gastam, portanto não podemos pensar que houve aqui uma intenção de acabar com uma vida de uma criança apenas porque infringia o código de estrada. Deixemos esse estereótipo para quem segue a moda do ”morte à bofia” para não ser excluído do seu grupo de amigos. Caso alguém esteja verdadeiramente interessado no procedimento do acto de justiça face a esta situação, a familia do falecido Ruben contratou um advogado pessoal (excluindo assim a hipótese de o Ministério da Administração Interna ter subornado algum advogado do estado para limpar sua imagem) para que no processo jurídico a autopsia ao corpo esclarecesse toda a situação. Todos nós sabemos o resultado dela certo? Perante isto vejamos então o outro lado da moeda: alguém que conduz uma mota sem capacete está sujeito, seja a 20km/H ou a 100, com certeza todos nós conhecemos situações idênticas. Não podemos excluir essa hipótese e não deixar de reconhecer que também é errado esse tipo de comportamento, inclusive alertar para o consentimento dos familiares relativamente aos mesmos continuarem a acontecer, pois nunca em toda a minha vida eu vi tal despreocupação pelos filhos como se vê nos dias de hoje. Sejamos humanos sem nos rebaixarmos ao nível de quem criticamos pois tudo o que fazemos é nos assemelharmos a eles. Reparei que muitos dos críticos deste tema gostariam de entrar num Ku Klux Klan… ok, sou sensível no que toca a esses porcos da PSP ou qualquer outro tipo de segurança publica dedicarem a sua vida a proteger um estado que rouba e mata o povo lentamente. Supostamente deveriam estar no lado do povo e ajudá-los a meter uma bala na cabeça de cada membro do parlamento e não a protegê-los sempre que o povo se manifesta contra as injustiças, desigualdades e abafo de direitos. Estou a favor da forma como se manifestaram também os amigos e familia do falecido Ruben, doutra forma não seria possível alertar a sociedade para o modo de actuar da policia, que mesmo que tenham sido disparados os tiros para o ar, teria influenciado (susto) a condução da moto. Existem policias e policias, assim como bandidos e bandidos… não são os amigos de uma idosa que se preocupam em procurar e julgar quem lhe roubou o fio de ouro ou a mala, etc etc. Façamos justiça, mas sejamos justos.

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