Por Bruce Neuburger

Estava a anoitecer e faltavam poucas horas para eu acabar o turno. A praça de táxis do Hotel St. Francis, em São Francisco, era uma incógnita. Ou se ficava na fila à espera de uma oportunidade ou se ia andar à vara para cá e para lá como uma bola de pingue-pongue. Decidi ficar na praça porque, como para aqueles tipos especialistas em máquinas de jogo, há sempre a hipótese do jackpot. Aqui, investe-se o tempo de espera, não o dinheiro, mas a espectativa é parecida. E o melhor que se pode esperar é uma corrida para o aeroporto. Há mais hipóteses aqui do que andando a correr as ruas ou apostando numa chamada via rádio – uma rádio marada de golpes -, se bem que aqui, no St. Francis, nos possa acontecer esperar quinze ou vinte minutos para conseguir uma corrida de cinco dólares para o Wharf [bairro típico dos pescadores].

É isto que, ao mesmo tempo, chateia e seduz os motoristas de táxi: é sempre questão de sorte ou azar. Num emprego com horário tem-se a segurança de saber que se vai para casa ao fim do dia. Não importa se o dia ou a semana está a correr bem ou a correr mal, a possibilidade de sacar a corrida de sonho está sempre à espreita atrás de qualquer chamada rádio e de qualquer bandeirada.

As empresas de táxis de São Francisco incutiram esse fascínio do jogo na descrição do trabalho dos taxistas quando, em 1978, apoiaram uma proposta de lei que conseguiu passar nos votos. Instituiam contratos de locação. Os motoristas das empresas de táxis passavam de repente a “contratados independentes”.

Independência! Um desses termos fascinantes que escondem realidades bem menos fascinantes: acabaram-se as regalias na empresa, a saúde, a reforma, todas elas. Independente significa que se fica entregue a si próprio, e boa sorte!

À medida que a fila de carros à frente do St. Francis ia avançando e o meu táxi se aproximava lentamente da cabeça da praça, eu ia ficando de olho nos clientes que saíam do hotel. Este tem bagagem, aeroporto; aquele, vestido informalmente, provavelmente vai para o Wharf; logo atrás uma dama bem vestida com um grande saco do Macy’s, talvez se desloque para a Marina ou para Russian Hill.

Quando um tipo na casa dos quarenta, de fatinho de negócios, porta-fatos e malinha, saiu da portaria, as minhas espectativas aumentaram. E quando eu avancei o carro e ouvi a mão do porteiro a bater-me na mala do meu Desoto azul e branco, fiquei na maior: uma corrida para o aeroporto! Mete-me sempre nojo a mãozinha do porteiro a estender-se subrepticiamente à espera do que lá possa meter o cliente, enquanto enfia a bagagem na mala, mas senti-me compensado pela certeza de uma corrida de trinta dólares. Comecei logo a pensar qual seria a melhor hipótese: arriscar uma espera no aeroporto, ou voltar de frosques para a cidade.

Com o passageiro sentado no banco de trás, meti pela Powell abaixo até à Ellis, depois desci até Stockton, atravessei a Market até à entrada para a autostrada na 4th Street. Mirei o meu benfeitor no espelho retrovisor. “Qual é a companhia aérea?” “A United [Airlines].” Era um daqueles rostos carnudos de quem está habituado a boa mesa. Cabelo castanho curto, mas suficientemente comprido para o pentear para o lado. Nem barba nem bigode. Homem de negócios ou advogado, calculei. Turista é que não era – demasiado deliberado e sim-ou-sopas para ser turista. Eram os meus primeiros anos de taxista, e por isso ainda me comprazia em conversas com os clientes na esperança de catar alguma troca de impressões ou alguma história que pudesse contar aos outros taxistas na estação da empresa enquanto se esperava pela mudança de turno e se tratava da folha, da taxa diária e das gorjetas do expedidor. O gosto e o entusiasmo com estas coisas, típicos dos primeiros anos na profissão, vão-se desvanecendo como a borracha dos pneus com as implacáveis limitações do tráfego, a tirania da repetição.

Talvez seja verdade que todo o passageiro que entra num táxi seja uma história em potência, mas isso, como todo o tipo de mineração, exige energia e esforço para separar o metal da escória da conversa de chacha. Nesse momento a minha energia despontou o suficiente, estimulada pela boa sorte de uma corrida até ao aeroporto.

Pensei que o meu passageiro estivesse de regresso a Chicago, ou talvez fosse Nova Iorque, depois de vários dias de reuniões. “Gosto da vossa cidade”, disse, como dizem muitos visitantes, “mas desta vez não pude ver muita coisa – demasiadas reuniões intermináveis”. Que reuniões eram essas? “Reuniões de advogados, pá, estratégias legais e tal.” Um advogado, como eu tinha previsto, mas o “pá” na boca dele era menos empertigado do que seria de esperar da aparência do homem. Estava eu a ver como havia de puxar pela conversa quando ele se adiantou: “Tive encontros com alguns dos vossos cultivadores locais. Quer dizer, talvez não exactamente locais – Salinas não é longe daqui, pois não?” “Não é longe”, disse eu. “Que tipo de cultivadores?” “Cultivadores de alfaces, de legumes”, respondeu, “que andam a ver se se livram das contratações colectivas sindicais”. “E você entra nisso?” Perguntei. “Aconselhamento jurídico, estratégias, esse tipo de coisas. Esses contratos são acordos vinculativos. Não se podem deixar cair sem mais nem menos. São questões que é preciso pensar”. Fez uma pausa e tateou o bolsinho de fora como que a assegurar-se de alguma coisa, talvez o bilhete de avião?

“E se as empresas fecham, depois voltam a operar com um nome diferente e já não estão agarradas aos compromissos legais da antiga empresa?”, perguntei. No retrovisor vi o olhar curioso do passageiro. “Pelos vistos você tem queda para o direito. Se calhar escolheu a profissão errada.” E riu-se. “Bem, ouvi dizer que em Salinas estão a acontecer coisas desse género”, disse eu. “E leu algo sobre isso?”, perguntou. “É… acho que sim. Não me lembro onde”.

Na realidade eu sabia muita coisa sobre Salinas, os sindicatos, e os cultivadores de alfaces. Passara a maior parte dos dez anos anteriores a trabalhar nos campos de alfaces, e conhecia lá muitos trabalhadores. E sabia que as coisas estavam a correr mal para eles. Mas não me apeteceu explicar isso ao homem. Queria ouvir o que ele tinha para dizer.

O advogado falou com franqueza. Falou de correr com os sindicatos como outro colega qualquer falaria de fazer um testamento ou uma minuta de contrato. Interessava-se pelas questões técnicas jurídicas, como um arquitecto a debater-se com os pormenores de desenho ou de engenharia de um edifício, e não com o facto de ele poder afectar a zona onde é construído. Ou como o tecnocrata que desenha uma bomba, alheio, entorpecido, ou apenas longe das consequências mortais da sua arquitectura. Mas também havia algo de cínico nas palavras dele, como se entrevisse algo de muito sujo no seu negócio.

A conversa tomou um rumo inesperado, e achei que a viagem, que eu pensara fazer o mais depressa possível, se tornara curta demais para satisfazer a minha curiosidade. Levantei um pouco o pé do acelerador à medida que, na narração do meu passageiro, iam aparecendo os nomes Hanson, Sun Harvest, Cal Coastal, Salinas Lettuce Farmers Co-op, etc. Onde ele via advogados chateados a rabiscar anotações nos seus blocos e representantes bem arreados dos cultivadores a falarem de estratégias legais, eu via autocarros a transportar trabalhadores para as quintas, com os lados pintados de fresco, e apanhadores de alface com as navalhas a espreitar dos bolsos traseiros, especados ao frio das ruas matinais na esperança de arranjar um emprego, tremendo como soldados derrotados em batalha à espera de clemência por parte dos vencedores.

Quando encostámos junto à porta da United [Airlines], abri a mala e pus-lhe a bagagem no passeio. Então eu disse o que me pareceu que tinha de dizer, quanto mais não seja porque precisava de aliviar a pressão que se foi acumulando durante a conversa. “Sabe, quando os cultivadores deixam de cumprir as convenções laborais, os trabalhadores perdem os seus direitos de saúde, perdem até os empregos. Isso traz-lhes sofrimentos, a eles e às famílias, aos filhos – toda a gente é afectada. E essas garantias foram conquistadas com lutas demoradas e duras”. O advogado verificou as bagagens. Passou-me duas notas de vinte. “Ninguém disse que a vida é justa”. E, pensei eu, é muito mais fácil falar quando não é a tua vidinha que está a ser estragada. Com um ligeiro encolher de ombros, o advogado olhou para mim. Pareceu-me que ia parar e dizer qualquer coisa, mas limitou-se a pegar na bagagem e tudo o que disse foi “Fique com o troco, amigo”. E foi direito ao embarque.

Nota sobre o autor

Bruce Neuburger é um ex-operário agrícola estadunidense, organizador de soldados [veteranos], redactor e chefe de redacção em jornais de movimentos de base, e motorista de táxi. Há muito tempo activista político radical, nos últimos vinte e cinco anos tem sido professor em escolas para adultos e liceus [ginásios] comunitários. Este texto é um excerto do seu recém-publicado livro Lettuce Wars: Ten Years of Work and Struggle in the Fields of California [As guerras da alface: Dez anos de trabalho e de luta nos campos da Califórnia] (Monthly Review Press, 2012).

Artigo original (em inglês) aqui. Tradução do Passa Palavra.

Glossário de gíria e outros termos

andar à vara: correr as ruas à procura de clientes
autocarro: ônibus
bem arreado: bem vestido
catar: obter, conseguir
conversa de chacha: falar de futilidades e ninharias
especado: esperando de pé
fatinho: terno (em sentido depreciativo)
ficar na maior: ficar contente
folha: mapa das corridas
: (serve para pontuar as frases, apenas em conversas informais, um pouco como o che dos gaúchos – derivado da sílaba tónica de “rapaz”)
pintado de fresco: pintado há pouco tempo, com a tinta ainda húmida (sim, brasileiros, em Portugal a palavra escreve-se com h)
porta-fatos: espécie de mala flexível para guardar o terno sem o amassar
sim-ou-sopas: decidido, afirmativo
tipo: cara, fulano
voltar de frosques: regressar de imediato

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