Por Passa Palavra

A inversão de um movimento de massas

Nos seus traços essenciais, o que ocorreu no Brasil foi uma luta nascida na extrema-esquerda anticapitalista, a que essa extrema-esquerda conseguiu imprimir as proporções de um movimento de massas cada vez mais amplo, e que afinal se viu sequestrada a partir de dentro por um movimento de sinal político contrário, com reivindicações conservadoras ou claramente fascistas.

Talvez este tipo de inversão de um movimento de massas não seja totalmente inédito na história mundial e tenha ocorrido em alguns outros países da América Latina, mas nunca nas proporções que atingiu agora no Brasil. O que geralmente sucedia era as movimentações de esquerda serem atacadas a partir do exterior por grupos fascistas organizados, claramente demarcados daqueles a quem atacavam. Os desfiles seguiam um dado percurso, caminhavam por uma avenida, ocupavam uma praça, e a truculência da extrema-direita desencadeava-se a partir das ruas transversais, em cargas de manifestantes hostis. Mas no Brasil, neste mês de Junho de 2013, passou-se o contrário e a movimentação contra-revolucionária surgiu no próprio interior da movimentação anticapitalista. As palavras de ordem concretas e anticapitalistas foram diluídas numa massa de palavras de ordem abstractas, difusas e de conotação conservadora. A crítica libertária aos partidos políticos foi transformada numa vituperação fascista da democracia representativa. Os militantes de partidos esquerdistas foram ameaçados, insultados, agredidos, os libertários foram-no também e as manifestações acabaram sequestradas pelo moralismo nacionalista.

As confusões a este respeito predominam — e infelizmente não só em Portugal — porque os grandes órgãos de comunicação foram um dos instrumentos essenciais naquela inversão política e, por isso, quem depender deles para se informar não entende nada do que se passou. Pior ainda, em Portugal várias forças políticas, incluindo algumas que se situam na esquerda, vêem com simpatia essa inversão política e até a têm propiciado. Somos assim obrigados a chamar a atenção para factos que já deveriam estar bem claros.

Os factos

Antes de mais, a luta contra o aumento da tarifa dos autocarros, conduzida em São Paulo pelo Movimento Passe Livre (MPL) e por movimentos congéneres em várias outras cidades brasileiras, não é uma luta reformista inserida no capitalismo. O MPL reivindicou, é certo, que a tarifa não aumentasse de 3 reais para 3,20, e ganhou esta reivindicação. Mas, desde a criação, o MPL tem colocado as suas exigências imediatas no contexto geral da mobilidade urbana e da exclusão urbana, questionando assim os próprios princípios do urbanismo capitalista. Uma dada tecnologia constitui sempre uma materialização de dadas relações sociais, e as cidades de hoje materializam no cimento e no asfalto as teias muito complexas de clivagens e de relações de classe. É isto que o MPL põe em causa, e a exigência de 20 centavos — que multiplicada ao longo do mês não é tão modesta para muitas bolsas — é inseparável da crítica à tecnologia urbana do capitalismo.

Por isso a grande palavra de ordem do MPL, incessantemente repetida, é por uma vida sem catracas. Em todos os artigos que o necessitam nós colocamos o link para um glossário de termos não usados numa destas duas versões da língua portuguesa, mas convém esclarecer desde já que a catraca é um torniquete que veda a entrada nos transportes públicos a quem não pagar o bilhete. Ao reivindicar uma vida sem catracas, o MPL sobrepõe as reivindicações imediatas relativas ao preço dos bilhetes a uma exigência de ordem genérica relativa à mercantilização da vida e à exclusão social.

A outra grande reivindicação prática do MPL, a Tarifa Zero, ou seja, a gratuitidade do transporte público, levanta o mesmo problema. «O transporte só pode ser público de verdade se for acessível a todas e todos, ou seja, entendido como um direito universal», escreveu o MPL na sua Carta Aberta de 24 de Junho dirigida à presidente Dilma Rousseff . «Questionar os aumentos é questionar a própria lógica da política tarifária, que submete o transporte ao lucro dos empresários, e não às necessidades da população. Pagar pela circulação na cidade significa tratar a mobilidade não como direito, mas como mercadoria. Isso coloca todos os outros direitos em xeque: ir até a escola, até o hospital, até o parque passa a ter um preço que nem todos podem pagar. O transporte fica limitado ao ir e vir do trabalho, fechando as portas da cidade para seus moradores. É para abri-las que defendemos a tarifa zero».

Assim, quando o MPL, neste mês de Junho de 2013, iniciou nas ruas a agitação contra o aumento de 20 centavos nos autocarros de São Paulo, tal como outros movimentos similares conduziram uma agitação contra os aumentos noutras cidades brasileiras, o que uma vez mais estava em causa era, como sempre, uma vida sem catracas. Foi com esta palavra de ordem e com este tema que as ruas progressivamente se encheram, que a polícia carregou e que algumas centenas de manifestantes foram presos. Foi com esta palavra de ordem e com este tema que a agitação se converteu numa colossal mobilização de massa. Na reportagem que fizemos da segunda grande manifestação em São Paulo, ocorrida a 6 de Junho, o Passa Palavra escreveu: «Comparada à batalha de quinta-feira, a manifestação de ontem foi marcada pelo seu vigor: conseguiu agrupar um enorme contingente de pessoas em pouquíssimas horas, tomar mais uma via de altíssima importância (a Marginal Pinheiros, o que seria inimaginável até há alguns dias), demonstrar a sua força e pôr em pauta o tema do transporte público na cidade». E no relato de uma acção organizada por moradores e estudantes do Grajaú, na zona sul de São Paulo, mostrámos que a luta contra o aumento de 20 centavos foi indissociável da luta contra a mercantilização dos transportes urbanos. O mesmo continuou a passar-se nas mobilizações seguintes, dos dias 11 e 13 de Junho.

No entanto, no interior destas mobilizações começaram a surgir temas e palavras de ordem de sinal contrário. O Passa Palavra alertou para esta inversão política na reportagem que dedicámos à manifestação de 17 de Junho e que profeticamente intitulámos «Hora de começar a pensar sobre maior manifestação dos últimos tempos». «Hoje é possível dizer que a cidade esteve na mão do povo, a polícia entregou a chave», escrevemos nesse artigo, e perguntámos: «Deixando de lado a questão da polícia e centrando-se no povo, isso seria bom ou ruim? Bom», respondemos nós, «porque o Movimento Passe Livre (MPL) conseguiu cravar no coração da cidade o debate sobre o transporte público e o projeto da tarifa zero de forma indiscutível». Todavia, anunciámos então o que de maneira cada vez mais clara se iria passar nos dias seguintes: «Mas também ruim — e, acrescentamos, perigoso — porque o povo de que falamos aqui não é aquele eufemismo ou simplificação que usamos quando queremos genericamente nos referir à classe trabalhadora ou a uma composição favorável a ela. Povo aqui diz respeito àquela massa social sem forma definida. Se há algo que marca a manifestação de segunda-feira, sem dúvida esta marca é a polifonia».

Nos bastidores da inversão do movimento

Falando de «polifonia», nesse artigo dedicado à manifestação de 17 de Junho em São Paulo, chamámos a atenção para a transformação decisiva que começara a operar-se. Os temas específicos do MPL, a mobilidade urbana e a exclusão urbana, que interessam à classe trabalhadora e nomeadamente aos trabalhadores mais pobres, começaram a ser diluídos pelo aparecimento de outros temas de sinal contrário, tanto política como socialmente. E o nosso artigo continuava: «À parte algumas pautas que poderiam e devem ser articuladas à pauta específica da mobilização — destacam-se aqui a indignação com a Copa do Mundo, a situação da saúde, da habitação e, sobretudo, o rechaço pesado contra a Polícia Militar — tiveram lugar também manifestações nacionalistas, moralistas, espíritos cívicos que enauseariam qualquer militante anticapitalista. E é claro que isso não ocorreu espontaneamente».

Não ocorreu espontaneamente, com efeito. As intenções da polícia ficaram claras quando, poucas horas antes da manifestação do dia 17 de Junho, o comandante-geral da Polícia Militar de São Paulo, Benedito Roberto Meira, sugeriu aos representantes do MPL que incluíssem entre as reivindicações previstas para a manifestação o pedido de prisão dos condenados do processo do Mensalão. A partir de então, pelas redes sociais, especialmente através do facebook, generalizaram-se os apelos para que os sectores sociais mais conservadores, tanto da área governamental como muito mais à direita, se juntassem às manifestações, as invadissem e para aí transportassem palavras de ordem abstractas e genéricas.

Engana-se quem julgar que o carácter abstracto de uma palavra de ordem lhe tira a força, porque pode ocorrer o contrário. Se essas abstracções corresponderem a preconceitos e lugares-comuns difundidos na sociedade, o que sempre sucede quando são transpostas para o plano moral, então elas têm uma capacidade mobilizadora semelhante à das religiões.

Mas não foram só palavras de ordem abstractas e moralistas que se ouviram às forças conservadoras, porque outras eram bem concretas, directamente vinculadas aos interesses sociais da extrema-direita e aos interesses económicos do capital. Os telemóveis, o facebook e a generalidade das redes sociais, usualmente enaltecidas como uma panaceia da esquerda, que permitiria concentrar multidões sem o extenuante labor organizativo, foram aqui um instrumento eficaz ao serviço da direita, que deixou o verdadeiro trabalho de organização a cargo dos seus assalariados na polícia, na televisão e na grande imprensa.

Este processo foi tanto mais irónico quanto o MPL é um movimento social de carácter libertário, horizontal, sem hierarquias internas, com rotatividade de tarefas e decisões tomadas em comum. Um leitor do Passa Palavra sintetizou o paradoxo num comentário: «Auto-organização, horizontalidade… acho que isso tá rolando na direita e toda a esquerda (partidária, autonomista, etc.) está ficando atônita…». Não se podia ser mais exacto nem mais conciso, e esta observação cruel é daquelas que nos obriga ou a reflectir ou a fechar os olhos. O que se está a passar é uma novidade sem precedentes, e a esquerda que se abriga detrás de cartilhas não é capaz de perceber o que sucede porque as cartilhas resultam, na melhor das hipóteses, de experiências passadas e são omissas quanto às novidades. Se quisermos agir, não nos resta outra alternativa senão reflectir.

O Passa Palavra continuou a sua reportagem sobre a manifestação de 17 de Junho em São Paulo escrevendo que a difusão dos temas moralistas e nacionalistas «resultou de intervenções políticas sistematicamente operadas dos setores mais conservadores da sociedade como também do chamado campo progressista democrático-popular. A grande imprensa — outra que, apesar do xingamento que sofria pela maior parte dos manifestantes, pode sair fortalecida por este processo — não poupou esforços para retratar e induzir o acontecimento a uma verdadeira panaceia cara-pintada». E terminámos anunciando que «o que marchou nesta segunda-feira por toda a cidade foi um espectro político cujo conteúdo, para além da luta contra o aumento, está em ferrenho processo de disputa. Isso coloca um seríssimo desafio para as forças de esquerda, em São Paulo e no Brasil: não deixar que a energia social que esta luta ajudou a liberar, e que agora começa a transbordar da engenharia política de pacificação e cooptação armada pela era petista, redunde num mar de pautas etéreas, ou pior, descambe para um projeto de moralização da política de matiz populista, nacionalista, ou pior… como já aconteceu em outros momentos da história».

A inversão política do movimento de massas a partir do seu interior, recorrendo para isso às redes sociais e com a ajuda da polícia e dos órgãos de comunicação, não ocorreu só em São Paulo. De acordo com a extensa colectânea de reportagens sobre o que denominámos Revolta dos Coxinhas, acrescida por comentários enviados por leitores, a inversão do movimento reproduziu-se nos mesmos moldes nas manifestações de 20 de Junho em Florianópolis, em Goiânia, em Guarulhos, em Porto Alegre, no Recife e no Rio de Janeiro. Das cidades de onde temos notícia, só Salvador parece ter sido uma excepção, talvez devido à sua composição social.

Pois, mas Portugal?

Aquelas reportagens sobre a Revolta dos Coxinhas, se puderam deixar surpreendidos ou incrédulos os leitores portugueses, em nada surpreenderam os leitores brasileiros que presenciaram essa fascização da contestação política, quando não a sofreram no corpo. Seria importante que os leitores portugueses prestassem atenção a esses relatos. Não só porque «nenhum homem é uma ilha isolada […] por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti». Mesmo na perspectiva egoísta que é tão comum, é muito possível que uma inversão política do mesmo tipo ocorra em Portugal, na sequência de protestos populares contra as medidas de austeridade.

Desde o ano passado que o Passa Palavra vem a alertar para a possibilidade de se desenvolver um fascismo em Portugal, se o país sair da zona euro e se confinar num nacionalismo económico que implica forçosamente um capitalismo de Estado. Consideramos que esse abandono do euro será a alternativa menos provável; mas, apesar de tudo, ele é possível e neste sentido desenham-se várias manobras políticas que temos procurado analisar, porque não nos interessa discutir conjecturas, mas desenvolvimentos potenciais. Assim, à luz das experiências em múltiplas cidades brasileiras, antevemos o risco de um movimento de rua iniciado como um protesto anticapitalista servir para a confluência de forças socialmente conservadoras ou fascistas, que diluam os objectivos iniciais numa proliferação de reivindicações abstractas — ou concretamente capitalistas — e que no final a esquerda acabe por ser tanto quanto a troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional) o alvo dessa hostilidade.

Este risco é maior ainda em Portugal do que no Brasil, porque não existe aqui um movimento social com as características do MPL, com a sua experiência de organização e de luta nas ruas. Movimentos como os Indignados, o Que Se Lixe A Troika e outros do mesmo género começam por ser um quadro já de si difuso e, portanto, propenso a transformar as exigências específicas dos trabalhadores em temas moralistas e nacionalistas. As manifestações passadas mostraram a facilidade com que a necessária crítica ao capitalismo se converte num ataque exclusivo a alguns sectores do capitalismo, nomeadamente o sector financeiro, e até no enaltecimento dos pequenos empresários e dos patrões de oficina, esses peritos da mais-valia absoluta; a facilidade com que a crítica ao capitalismo se converte na crítica ao governo; a facilidade com que o ataque ao governo se converte num ataque a toda a política e aos políticos; finalmente, com que o ataque à política dá lugar ao enaltecimento da unanimidade nacional. Os bizantinos cortadores de cabelos em quatro — para empregar a bela expressão francesa — podem dedicar-se a explicar a diferença entre nacionalismo e patriotismo, que para nós e para o comum das pessoas significam a mesma coisa. E assim manifestações que podiam ser convocadas contra o capitalismo, ou pelo menos contra as consequências do capitalismo, terminam em grande parte como afirmações de nostalgia patriótica, colorida de verde-rubro.

E depois, que mal tem isso?

Até agora o país continuou fiel à «brandura de costumes» e, ao contrário do que sucedeu no Brasil, os patriotas aqui não enxovalharam os esquerdistas, não lhes rasgaram as bandeiras, não lhes cuspiram, não os espancaram, não os deixaram em coma. Mas até quando?

Não se trata do velho fascismo, mas de um fascismo novo

Não se trata do velho fascismo, porque na história o velho nunca ressurge. Se a história se pode definir de algum modo é pela permanente criação do novo. Mas esta nova modalidade de fascismo não é menos ampla, e por isso não é menos perigosa, do que a anterior. Dois factores históricos de longo prazo têm contribuído para este processo.

A hegemonia conquistada no plano ideológico pelo pós-modernismo e pelo multiculturalismo diluiu a noção de classes sociais, de interesses sociais específicos e do carácter de classe das reivindicações. E isto sucede precisamente numa época em que a proletarização das antigas profissões liberais e a proletarização dos serviços ampliou muitíssimo a classe trabalhadora e liquidou a especificidade económica das classes médias. Ao mesmo tempo, a expansão do modo de produção capitalista a todo o mundo homogeneizou a base económica da sociedade e criou, pela primeira vez na história, as condições de existência de uma classe trabalhadora verdadeiramente mundial. Assim, ficou liquidada a especificidade económica das culturas arcaicas.

Ora, é precisamente nesta época em que o capitalismo cada vez mais se expande na produção de bens imateriais que o pós-modernismo vem pretender que o processo de exploração capitalista se teria extinguido e que a classe trabalhadora seria uma relíquia defunta. E é nesta época em que estão criadas as condições para a homogeneização mundial de uma cultura proletária, que o multiculturalismo tenta insuflar nova vida nas tradições arcaicas.

Ambas estas correntes cumprem a função do que em termos marxistas se denomina falsa consciência, que neste caso é uma anticonsciência. Numa sociedade escravocrata como a brasileira, aqueles estratos a que os jornalistas insistem em chamar classes médias, e que são na realidade os novos proletários qualificados da mais-valia relativa, vêem com desgosto que o crescimento económico da última década tornou os miseráveis um pouco menos miseráveis e os pobres um pouco menos pobres. Assim, no preciso momento em que foi abolida a especificidade económica das antigas classes médias, diminuiu a distância que, no plano dos rendimentos, as separa do proletariado menos qualificado. Esta conjugação de factores é a razão de fundo da revolta que anima os coxinhas. A falsa consciência aqui consiste em recusarem a noção de uma classe trabalhadora à qual gostariam de não pertencer, transformando-a num ressentimento moralista contra os de cima, acusados de corruptos, e contra os de baixo, acusados de bandidos, e pretendendo fechá-los a todos nas mesmas prisões. Ordem e moral.

Em Portugal chegou-se à mesma situação por caminhos inversos, porque aqui haviam sido as chamadas classes médias a beneficiar de um aumento do nível de vida graças à facilitação do crédito bancário, e agora, com a austeridade, perdem o status e vêem-se precipitadas em dificuldades que as aproximam do proletariado tradicional. De uma maneira ou de outra, tanto no Brasil como em Portugal diminuiu a distância que separa o velho proletariado dos novos trabalhadores qualificados da mais-valia relativa.

No entanto, a semelhança pára aqui, já que na última década o Brasil se afirmou como um neo-imperialismo, com uma economia transnacionalizada e em expansão. Uma evolução para o fascismo é impossível nessas circunstâncias. A Revolta dos Coxinhas consolidou, não sabemos por quanto tempo, um movimento fascizante no interior da sociedade brasileira, mas, a manterem-se as actuais condições económicas, aquele movimento não conseguirá dar lugar a um regime fascista. É mesmo possível que a governação do PT saia reforçada, como indicam as manobras de bastidores nos últimos dias, em que algumas eminências pardas se encontraram com algumas pessoas pretensamente próximas dos manifestantes de esquerda. Pelo contrário, em Portugal, numa funesta situação de declínio económico, o terreno é mais propício a um movimento que procure lançar o país no isolamento e instaurar um capitalismo de Estado. Poderá ser este o movimento propulsor de um novo fascismo. Por isso as circunstâncias em Portugal são muito mais favoráveis do que no Brasil a uma contra-revolução precipitada pelas antigas classes médias em crise.

Os leitores brasileiros que não entendam certos termos usados em Portugal
e os leitores portugueses que não percebam outros termos usados no Brasil
encontrarão aqui um glossário de gíria e de expressões idiomáticas.

19 COMENTÁRIOS

  1. Acho que os companheiros exageram na caracterização da guinada à direita dos protestos. Em primeiro lugar, muitos do “coxinhas” não são de direita, sendo, antes, pessoas que estão tendo suas primeiras experiências políticas agora e portam muitas bandeiras progressistas. O fato é que, ao lado de bandeiras vagas como o combate à corrupção, as reivindicações que mais sobressaem são por saúde, educação e serviços públicos melhores. Ora, isso são clamores da direita?

    Outros fatos:

    Na terça-feira houve, no Rio de Janeiro, uma plenária convocada pelo Fórum de Luta Contra o Aumento das Passagens. Mais de 3000 pessoas abarrotaram o Lgo de São Francisco, em frente ao prédio do IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ), para participar de uma plenária extremamente politizada e à esquerda.

    No mesmo dia, moradores da Rocinha e do Vidigal desceram da favela em direção à casa do governador, num tipo de manifestação inédita nas últimas décadas. Moradores do Complexo da Maré também manifestaram. Em São Paulo, mais de 5000 manifestantes convocados pelo Periferia Ativa marcharam por 10km, durante 5 horas, na Zona Sul de São Paulo, bloqueando importantes vias de circulação. As favelas e a periferia nas ruas mostram que os protestos transcenderam e muito a classe média, e o conteúdo das suas manifestações é claramente combativo.

    Ontem (quinta-feira), mais de 10.000 manifestantes fecharam, mais uma vez, a Avenida Rio Branco, no centro do Rio, e se dirigiram à sede da Fetranspor (federação dos transportes do estado do Rio de Janeiro, ou melhor, o cartel das empresas). Eram claramente manifestantes de esquerda, de comunistas a anarquistas, todos muito bem organizados para rechaçar eventuais ataques de grupos de extrema-direita e agentes infiltrados. Foi um ato repleto de bandeiras de luta, de palavras de ordem politizadas e radicais, com pouquíssimos “coxinhas” de cara pintada de verde e amarelo. O mais interessante é que na segunda-feira a direita havia convocado um ato que resultou um tremendo fracasso, reunindo menos de 1000 desavisados que não sabiam o que estavam fazendo ali.

    Ora, se por um momento o conteúdo das manifestações parecia estar sendo sequestrado pela direita, a sustentação dos protestos (e não são poucos e nem pequenos) está claramente dada pela esquerda. Por isso creio que os companheiros do Passa Palavra deveriam ponderar um pouco mais a análise e aguardar as “cenas dos próximos capítulos”.

  2. Eduardo Tomazine,
    O artigo do Passa Palavra refere-se clara e explicitamente à Revolta dos Coxinhas no dia 20 de Junho. Foi dos acontecimentos do 20 de Junho e da evolução que a eles conduziu que o Passa Palavra extraiu lições para o caso português. Tenho debaixo dos olhos um comentário enviado do Rio de Janeiro e assinado «Vermelho e Preto», colocado no artigo «20 de junho: a Revolta dos Coxinhas» (http://passapalavra.info/2013/06/79726 ). Talvez o Eduardo Tomazine tivesse lido esse comentário. Aconselho-o a relê-lo agora, porque relata de maneira vívida os acontecimentos a que o Passa Palavra se refere no presente artigo. Ora, o facto de depois do dia 20 de Junho ter havido movimentações de outro tipo — mas, note-se, com muito menos pessoas presentes — não exclui o que se passou no dia 20 nem exclui o processo que lhe esteve subjacente. Aliás, no final deste artigo fica assinalada a diferença entre as situações em ambos os países, sobretudo quando se afirma: «É mesmo possível que a governação do PT saia reforçada, como indicam as manobras de bastidores nos últimos dias, em que algumas eminências pardas se encontraram com algumas pessoas pretensamente próximas dos manifestantes de esquerda».
    As suas instruções finais, de que o Passa Palavra deveria esperar e aguardar antes de fazer as análises, deixaram-me um sorriso nos lábios, porque definem uma postura perante as lutas, que não é a adoptada pelo Passa Palavra.

  3. Precioso artigo. Muito claro e lúcido.

    Aponta bem esse fato inédito na história da luta de classes, a conversão por dentro de mobilizações de esquerda em mobilizações de direita, com o trabalho de base feito pela grande imprensa. E consignas libertárias de apartidarismo, horizontalidade, rechaço a entidades e instituições, baseadas e em acordo com uma subjetividade presente na juventude, se tornarem, nesse outro contexto e relacionadas a outros desejos e valores, num conjunto de proposições que abrem caminho para atuações fascistas e guinadas à direita na sociedade.

    Esse é um dado novo na luta de classes, e que terá que ser levado em conta de agora em diante.

  4. Caro joão,

    Abaixo do título do artigo, vocês sublinham que “Tudo aquilo que nas últimas semanas se tem passado no Brasil contém lições muito sérias para Portugal”. O tom da análise é de grande pessimismo. Um camarada meu chamou-me a atenção para um fenômeno curioso: enquanto a mídia deixa de lado 500 mil pessoas nas ruas com bandeiras na sua maioria progressistas para focalizar os “vândalos”, parte da esquerda deixa de lado esses 500 mil para focalizar os fascistas.

    Li com atenção o comentário de autoria do “Vermelho e Preto”, e vi que ele destaca, entre outras coisas, a atuação de agentes infiltrados que não necessariamente são da extrema-direita (mas, antes, de grupos de interesse preocupados com o rumo das coisas, com a intenção de dividir as manifestações e disseminar o terror). Destaco essas passagens do seu comentário: Do milhão de pessoas que saíram às ruas, a esmagadora maioria usava verde e amarelo. “Eram os ‘Coxinhas’, como dizem. Levantavam cartazes contra a corrupção. Muitos desfilavam, tirando fotos para postar no Facebook. Mas a juventude que “concretamente” temos é essa, e não outra. A maioria deles sente a merda em que estamos afundados. Grande parte das reivindicações era por saúde e educação. Muitos jovens gays mostraram suas caras sem máscaras. As ruas se abriram outra vez, e isso é uma grande conquista!”

    E essa outra: “Os coxinhas são confusos, mas já conquistamos com eles, em duas semanas, coisas que não conseguimos em vinte anos de protestos puros, mas isolados e sempre com os mesmos.”

    Finalmente, não disse que o PP deveria aguardar para fazer suas análises, mas que deveria ter mais cautela nas suas conclusões. Afinal, os dados ainda estão sendo lançados e não sabemos onde tudo isso irá parar.

  5. “Talvez devido a sua composição social”

    Ora, se temos um caso no qual as lutas não seguiram rumo ao fascismo não seria o caso de aprofundar o estudo deste caso e o comparar com os demais para entender melhor a situação?

    Esse “talvez devido a sua composição social” pode explicar muita coisa. Em alguns locais a luta contra o aumento “talvez devido a sua composição social” firmaram como lutas populares e em outros “talvez devido a sua composição social” atraíram o fascismo.

  6. Eu concordo em tudo com o artigo do PP e com o comentário do João Bernardo, e portanto discordo da leitura do Eduardo Tomazine.

    Eduardo, não vejo tom pessimista no artigo do PP. É possível que o saldo geral, ao final disso tudo, seja positivo para a esquerda (e começo a achar que será), e em nenhum momento o artigo diz que não. Mas a história é aberta, e nela existe mais de uma possibilidade de caminho e desfecho no seu desenrolar.
    O que o artigo do PP ressalta é o perigo da história desembocar em um regime fascista em Portugal, à luz da experiência recente no Brasil. Isso é fato. Vimos no Brasil que existe base social e organizativa (mídia, polícia) para isso. Em Portugal o artigo salienta que além disso existem também as bases econômicas.

  7. Igor,
    Quanto à composição social da manifestação de 20 de Junho em Salvador, na série de reportagens que publicámos no artigo «20 de junho: a Revolta dos Coxinhas» (http://passapalavra.info/2013/06/79726 ) o relato dos acontecimentos em Salvador diz o seguinte: «A polícia saiu atacando todos. Até os coxinhas sofreram. O protesto entrou pela área com o metro quadrado mais caro de Salvador – o Corredor da Vitória. Nunca, jamais, em hipótese alguma, havia chegado nas portas da mais alta burguesia de Salvador a fumaça acre do lacrimogêneo. Isto terá consequências? Algo a analisar. Para já, o certo é que a repressão mudou a cabeça de muito menino criado com vó. A entrada do Vale dos Barris ficou completamente depredada, mas não veio um só grito de “sem violência”, porque todo mundo via que tudo era para se fazer barricadas e fogueiras. Da mesma forma, quando os shuttle buses foram depredados em frente a uma delegacia, poucos foram contrários. A sensação geral era de que “foram eles que começaram”, então tudo estava valendo». E pouco adiante continuámos: «Nesta manifestação de quinta-feira havia muitos coxinhas, mas a periferia veio em peso também. […] a periferia assumiu o confronto com a polícia. […] Ora, os coxinhas não conseguiram pautar nada […]». Mas é necessário comparar com a análise do que se passou nos outros lugares, e para isso são indispensáveis muito mais relatos.

  8. Tomazine, sua tentativa de amenizar o caráter fascista dos eventos analisados neste ótimo artigo, me parece insuficiente. Seu principal argumento é o fato de haverem jovens confusos, que iam às ruas pela primeira vez, entre os grupos identificados pelo passapalavra como de direita. Bem, é exatamente por isso que se trata de um fenômeno protofascista, pois se configurou como um movimento de massas. Caso contrário seria um movimento de quadros, de militantes profissionais exclusivamente. No seu argumento você não explicou porque muito destes jovens se uniram à “ala coxinha” do movimento, não ao movimento popular à esquerda. Não seria a ideologia uma expressão de uma condição material, social? Se considerarmos que uma parte destes jovens se identificou com as palavras de ordem moralistas/nacionalistas e outra parte com a questão da tarifa, que elemento novo há nesta questão que não tenha sido analisado aqui? Temos entre estes jovens, claramente, formas de consciência coerentes com o cenário da luta, nada além disto. Alguns endossaram a luta inicial pela redução da tarifa, outros abraçaram a via fascista e a reforçaram.
    Espero ter conseguido me fazer entender…

  9. Depois de ler o comentário de Irado, creio que algumas percentagens ajudarão a perspectivar o problema dos elementos confusos. Hitler chegou ao poder na Alemanha nos últimos dias de Janeiro de 1933. Ora, em 1932 as transferências de filiados entre o Partido Comunista Alemão e as milícias nazis, as SA, chegaram a 80% do conjunto dos membros destas duas organizações. E em Novembro de 1941 Hitler recordou num círculo de comensais que na época da pancadaria nas ruas 90% do partido nazi era composto por elementos de esquerda. Paralelamente, no Partido Comunista Alemão, entre 1930 e 1932, os abandonos e as novas adesões chegaram a uma taxa superior a 50% dos membros.

  10. É curioso como a ausência de alguns fatos às vezes deixa tantas dúvidas. No Ato de ontem, aqui no Rio de janeiro, a direita organizada não teve sucesso em fazer seu trabalho de fascistização da luta, tal como fizeram em outros dias, e especialmente no dia 20. O ato tinha uma composição social de no mínimo cinco frações: esquerda organizada, esquerda desorganizada de classe média, esquerda desorganizada de periferia, coxinhas, e direita infiltrada. Além disso haviam 1400 policiais que nos cercavam o tempo todo, num ato que deve ter tido de 30 a 50 mil pessoas. Depois do raxa na Cinelândia, que descrevi em http://passapalavra.info/2013/06/80235, ficamos em número menor, em ruas estreitas, e absolutamente vulneráveis à ação da direita infiltrada aliada à polícia e, para surpresa de muitos, não houve repressão. Então fiquei com algumas pulgas atrás da orelha, sobre o porque de tudo ter se passado pacificamente, que divido com vocês pra ver se vocês me ajudam a entender o que passou: 1) a direita fracassou na geração do caos/repressão ou não estava planejando isso ontem? 2) será que os debates crescentes em todo o país e a crescente politização da sociedade, tiveram papel e a partir de agora os coxinhas não serão cooptados pela ideologia fascista tão facilmente? (e. portanto, a base social do fascismo brasileiro era mais frágil que pensávamos) 3) Será que tudo foi bem no Ato porque a esquerda era esmagadora maioria e a composição social do Ato de ontem impedia as práticas da direita? 4) Será que a própria direita mudou de tática, e se mudou, foi episódico por conta do Ato do Rio ser majoritariamente da esquerda organizada ou tem que ver com a habilidosa reação do governo que temos assistido? Ou seria pela fraqueza da direita organizada frente à organização da esquerda que temos praticado nos últimos dias? 5) Será que a ausência dos Partidos e organizações no prosseguimento do ato até a Fetranspor teve papel importante nesse “correr bem” do Ato? Ou seja, será que sem as bandeiras a direita perde o interesse em gerar o caos e fascistizar a luta?

  11. Bem, confuso agora fiquei eu…

    João, com estes números você quer evidenciar o que exatamente? As oscilações de um certo contingente social entre um campo político e outro? Uma certa incoerência entre prática e ideologia? Ou simplesmente que o fascismo pode ser sustentado na prática por indivíduos de esquerda?

    É certo que em meu comentário eu não considerei as possíveis oscilações de um campo a outro, apenas me referi àquela primeira escolha dos citados jovens que nunca tinham ido às ruas, ainda que estes possam mudar de campo político no curso das manifestações.

    Saudações.

  12. Irado,
    No meu último comentário quis acrescentar alguns números à sua argumentação, com a qual estou de acordo. Explicando-me melhor, durante os períodos de ascensão do fascismo, antes de os movimentos fascistas estarem consolidados em regimes, não havia uma clivagem nítida entre os fascistas e a esquerda e, portanto, é improcedente argumentar que a existência de uma massa de gente confusa gritando palavras de ordem genéricas e moralistas e envolvendo-se em bandeiras nacionais nada significa de preciso. É que o risco está nessa falta de precisão. Os lugares comuns e as ideias feitas circulam por toda a sociedade e quando se convertem em temas de luta o fascismo ou a direita conservadora — são duas forças políticas distintas — podem tomá-los como agente de mobilização. Os muitos milhares de pessoas que íam dos comunistas para os nazis e dos nazis para os comunistas procuravam confusamente os mesmos temas em ambos os campos. No seu célebre romance Berlin Alexanderplatz, Döblin deu-nos o retrato dessa confusão. E foram os fascistas quem dela se aproveitou. Referindo-se ao Partido Comunista Alemão, Pierre Broué escreveu que «bastava um aparelho de 8.000 funcionários permanentes para manter de pé um partido cujos membros continuamente mudavam e eram substituídos». Os comunistas alemães viam essa circulação de membros como um factor benéfico, porque pensavam que podiam assim atrair fascistas para o seu campo e fazer com eles a revolução. Do mesmo modo, uma década antes, na Itália, Gramsci e Togliatti haviam imaginado que podiam atrair para o comunismo a massa fascista plebeia, a gente de Fiume, os seguidores de D’Annunzio. A história, para quem a faz, está por fazer, por isso não devemos lançar culpas sobre quem navegou sem mapa nem bússola, e naufragou. Mas hoje, quando graças ao martírio deles o mapa está feito e a bússola disponível, sabemos que a movimentação de massas inexperientes mobilizadas por temas difusos é um risco que exige uma grande lucidez e frieza de apreciação.

    Acrescento uma coisa:
    O mapa está feito relativamente àquele assunto. Mas como, na história, o velho aparece sempre sob uma forma nova, deparámos em 20 de Junho com algo de que não tínhamos experiência, a inversão política de um movimento a partir de dentro. Nas palavras de Leo Vinicius, «Esse é um dado novo na luta de classes, e que terá que ser levado em conta de agora em diante».

  13. Algumas considerações que merecem ser melhor desenvolvidas (quem sabe em um artigo sobre o que se passa na esquerda do Rio de Janeiro na atual conjuntura?):

    – É um fato que, para tomarem as proporções que tomaram, os protestos se diluíram, e não nos deve causar muita estranheza isso. A esquerda urbana brasileira não tem base suficiente para colocar nas ruas centenas de milhares de manifestantes, e muito menos um trabalho de propaganda política sistemático e em grande escala para se contrapor à propaganda ideológica cotidiana das relações capitalistas, e, desse modo, pautar uma manifestação com milhões de pessoas nas ruas. Os partidos de esquerda há muito deixaram de lado o trabalho de base e os movimentos sociais estão fragmentados, quando não burocratizados e transformados, por suas relações, em partidos ou ongs.

    – O “sequestro” das manifestações pela direita não foi tão inequívoco como relatam aqui os companheiros do Passa Palavra. Se pautas abstratas e o sentimento nacionalista ganharam grandes proporções entre os manifestantes, é inegável que demandas por mais investimentos em educação, saúde e transportes públicos continuaram sendo as principais. Ademais, a caracterização dos caras-pintadas de verde e amarelo como nacionalistas de direita precisa ser melhor depurada. Muitos deles tomam a bandeira como representação da coisa pública e têm uma opinião política progressista, embora pouco desenvolvida e sem se engajarem em organizações (e com pouca disposição para fazê-lo, o que os torna também pouco propensos a se organizarem pela direita). No mais, as medidas reformistas encaminhadas pelo governo federal para responder aos clamores da rua apontam muito mais para uma reforma progressista das instituições políticas no âmbito nacional do que para uma simples manipulação de caráter moralista.

    – A semana seguinte a das manifestações do dia 20 (denominada pelo PP como a “Revolta dos Coxinhas”) foi claramente uma semana de ações políticas nas ruas pautadas pela esquerda. Mesmo sem as proporções milionárias do dia 20, elas podem ser consideradas como as maiores manifestações de esquerda nas cidades brasileiras nas últimas décadas e contrastam drasticamente com o fracasso das manifestações convocadas pela direita nessa mesma semana. Na minha opinião, isso denota a limitação da capacidade de mobilização dos setores da direita ainda a demonstrações efêmeras e com pouco fôlego, tendo portanto pouca capacidade de ganharem organicidade.

    – É mais provável que o cenário político que emergirá dos presentes acontecimentos seja mais favorável à intensificação das formas organizativas já existentes da esquerda (principalmente dos movimentos sociais) e à proliferação de novas formas, como assembleias populares em favelas e periferias, espaços até então hegemonizados por associações chapa-branca ou mafiosas e ongs.

    – O país continuará sendo uma importante vitrine mundial e as contradições do modelo “liberal desenvolvimentista” adotado pelo PT seguirão sendo acirradas nos próximos anos, de modo que o cenário continuará propenso a grandes manifestações. Os setores da esquerda que souberem intensificar o trabalho de base (principalmente aquele articulado a uma dimensão territorial) e sua estratégia de comunicação terão maiores possibilidades de influir sobre os rumos políticos dos acontecimentos. Aliás, o maior envolvimento dos setores mais pauperizados da classe trabalhadora nas manifestações vindouras tenderá a acirrar ainda mais os ataques das forças de reação, e nesse sentido creio que os exageros analíticos do tipo que o Passa Palavra tem realizado serão de grande valia para antecipar um cenário em que a direita e a extrema-direita efetivamente ameassem sequestrar o protesto e organizar a massa amorfa de grande parte dos manifestantes.

  14. “Ora, em 1932 as transferências de filiados entre o Partido Comunista Alemão e as milícias nazis, as SA, chegaram a 80% do conjunto dos membros destas duas organizações.”

    Os nazis nas eleições alemãs de 1928 tem 2,6% de votos e os Comunistas têm 10,6%; quando Hitler chega definitivamente ao poder nas eleições de 1933, ele chega com 43% tendo os Comunistas obtido 12,32%.

    Quem diz que os nazis receberam um grande impulso eleitoral de comunistas que mudaram de campo é uma de duas coisas: ou é um mentiroso ou retira factos históricos do mesmo local de onde o banqueiro irlandês John Bowe retirou certos números que apresentou ao seu governo.

  15. Obrigado pelo esclarecimento, João. Só com os dados tive dificuldades de entender aquela questão. Nada como um pouco de história… Uma lição a tirar é que se os indivíduos aderem a um campo político sem saber o que fazem num primeiro momento, ou se oscilam entre certos campos políticos, isto não significa que tais campos sejam uma ficção. E não há um militante experiente que não tenha se assustado com os fatos do dia 20/06. Eu já havia conhecido fascistas, isto infelizmente é comum, mas o fascismo só conheci pessoalmente naquele dia, ainda que em status nascendi. Agora que o “gigante acordou” temos que ficar atentos, pois ele anda por aí a solta…, tem mesmo razão o Leo Vinicius…

    Saudações.

  16. O leitor que assina «João» confunde filiações partidárias com base eleitoral. Quando as pessoas fazem confusões tão grandes é conveniente serem um pouco mais modestas ou, pelo menos, mais bem educadas. A afirmação de que no último ano da república de Weimar as transferências de filiados entre o KPD e as SA chegaram a 80% do conjunto dos membros destas duas organizações encontra-se em Renzo DE FELICE, Explicar o Fascismo, Lisboa: Edições 70, 1978, pág. 283 e em Jean Pierre FAYE, Langages Totalitaires. Critique de la Raison — l’Économie — Narrative (ed. corr.), Paris: Hermann, 1980, pág. 485 n. A afirmação de Hitler aos seus comensais de que na época da pancadaria nas ruas 90% do NSDAP era composto por elementos de esquerda encontra-se em Hitler’s Table Talk, 1941-1944. His Private Conversations, Nova Iorque: Enigma, 2000, pág. 138. A afirmação de que no KPD, entre 1930 e 1932, os abandonos e as novas adesões chegaram a uma taxa superior a 50% dos membros encontra-se em Hermann WEBER, La Trasformazione del Comunismo Tedesco. La Stalinizzazione della KPD nella Repubblica di Weimar, Milão: Feltrinelli, 1979, pág. 31. Já agora, a citação de Pierre BROUÉ, feita num comentário posterior, encontra-se no seu livro The German Revolution, 1917-1923, Londres: The Merlin Press, 2006, pág. 911.

  17. O blogger que assina “João Bernardo” é que tece longos comentários que não têm significado histórico. Nos tempos da traulitada das ruas uns batiam hoje de um lado e amanhã batiam do outro…!? É isso? “Big fucking deal”… se mais houvessem do que comunistas e nazis à porrada nas ruas mais transferências dessas ocorreriam com os outros também. Do que você fala é da muita gente que apareceu para a política nesses dias de porrada e de depressão económica e que, portanto, dado o carácter informe dos primeiros momentos de acção política, é muito natural que houvesse falta de consistência política em muito desse pessoal.

    O facto relevante, o que você ou não sabia ou preferiu não mencionar, é que os nazis em 1928 tinham cerca de 2,5% e em 1933 chegaram a 43% (aumentaram cerca de 40%, repito 40%). Os comunistas em 1928 tinham 10% e em 1933 12%.

    Ou seja, quem colocou Hitler no poder não foram os votos dos comunistas mas em boa parte, embora não única, os dos sociais-democratas que de um período a outro passaram de cerca de 30% para cerca de 18% – uma perda de cerca de 40% da sua representatividade.

  18. Tenho a impressão de que tamanha pretensão pode não agradar muito os portugueses.

    Na minha reles opinião, para ser bem objectiva, penso que esse perigo está longe de ser real por aqui.
    Em Portugal, as pessoas são no geral – que fique claro que estou generalizando – um pouco mais criteriosas que no Brasil (sim, é verdade, e não vou agora falar dos defeitos prototípicos dos portugueses para me desculpar) e há décadas (há pelo menos quatro décadas) que em Portugal as pessoas sabem muito bem qual é o lado delas.

    Portugal não é essa confusão continental que é o nosso Brasil. É um país mais homogêneo, e os problemas, pelo menos depois de 1974, parecem ser quase sempre os mesmos, as crises parecem ser quase sempre as mesmas. A crise aqui são os cortes no Estado para salvar a economia. Estou errada?

    O que eu li de mais esclarecedor nos últimos tempos sobre como funciona Portugal, e me surpreendeu muito que fosse um artigo do Diário Económico, foi isso:

    http://economico.sapo.pt/noticias/vitor-gaspar-inventou-uma-maquina-que-transforma-o-sofrimento-em-dinheiro_168571.html

    (“Vítor Gaspar inventou uma máquina que transforma o sofrimento em dinheiro”)

    É de há umas semanas e me esclareceu também, muito indirectamente, sobre um movimento de uma “juventude de Direita” (não sei se eles gostariam dessa definição e não pretendo ofender) que se manifestou em São Paulo pela desestatização do transporte. A economia vira quase um jogo para essa gente. O que importam as pessoas? Eles nunca tiveram que pegar um ônibus, estão a anos luz de perceberem o que é precisar de escola ou hospital público. A fome, então, é uma realidade tão distante que nem sequer cogitam a idéia.

    Enfim, acho que os portugueses ficariam ofendidos com esse artigo, por serem comparados com aquela massa amorfa que se viu nas ruas por aí.

    Quanto a isso, entretanto, acho até que ficou algum saldo positivo das manifestações da massa amorfa e irresponsável que se proliferaram por todo o país (sem tirar o mérito ao MPL que trabalhou muito para que as suas manifestações tivessem a atenção que mereciam). Sem estar aí é difícil sentir exatamente como isso se vai dar, mas pelo que tenho visto de longe (principalmente pelo facebook, para dizer a verdade, e por uma ou outra mídia independente) tenho a impressão de que as pessoas não vão mais tolerar a bandalheira desavergonhada com que nos acostumámos nos últimos anos, e espero que não mesmo.

    Resta saber o que os portugueses acham desse suposto “perigo” da necessidade de revolução descambar em fascismo.

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