Uma tentativa de conceber um padrão comum em contextos nacionais diferentes e um horizonte estratégico que nos permita lutar contra a austeridade capitalista sem lutar pelo desenvolvimento capitalista. Por Campos

A periferia da zona euro está na ribalta desde 2010, quando o governo grego pediu um resgate conduzido pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Central Europeu e pela Comissão Europeia (a troika). É uma história bem conhecida, que acabou por ser também a da Irlanda, de Portugal e de Chipre, enquanto a Eslovénia talvez seja a próxima e tanto a Espanha como a Itália continuam numa situação difícil. Desde o começo que esta crise da dívida soberana tem sido apresentada como uma mera soma de diferentes desempenhos macroeconómicos nacionais, em que alguns países não seriam suficientemente competitivos (ou, numa expressão menos sofisticada, seriam «preguiçosos») e alguns governos não controlariam adequadamente o défice orçamental (ou, numa expressão menos sofisticada, seriam «perdulários»).

A narrativa predominante da economia política na zona euro não é ingénua nem exacta e cumpre uma deliberada função estratégica. É bastante óbvio que os contextos económicos e sociais específicos de cada país (incluindo a diferente intensidade dos conflitos sociais e das formas de resistência) explicam os diferentes ritmos das medidas de austeridade aplicadas e a capacidade de cada governo para negociar condições de crédito diferentes, mas não existem na zona euro contextos nacionais independentes, o que se verifica com cada vez maior clareza sempre que uma missão da troika desembarca do avião num país intervencionado. Os supostos objectivos das políticas impostas nestes países — o controlo da dívida pública mediante a reforma do Estado e o restabelecimento da competitividade externa de modo a diminuir o défice da balança comercial — estão agora mais longe de ser atingidos do que estavam antes dos resgates e o Banco Central Europeu está a estudar como poderá prolongar os «ajustamentos» nesses países para além do calendário previamente combinado, mesmo que tenham sido aplicadas todas as medidas de austeridade incluídas no arsenal recessivo.

Este aparente paradoxo esconde a existência de uma lógica mais ambiciosa por detrás dessas medidas e exige que abandonemos radicalmente a perspectiva nacional para atingirmos uma compreensão mais adequada do âmbito e da profundidade da integração europeia através do neoliberalismo subjacente [*]. Este processo data do final da década de 1980 e apenas foi acelerado pela crise financeira de 2008, que precipitou a crise da dívida soberana. A integração de Estados-nações com diferentes níveis de produtividade, de competitividade e de desenvolvimento económico numa zona monetária concebida de acordo com as exigências específicas das economias mais poderosas — nomeadamente, uma moeda forte e estável — deparou com limites logo que os credores internacionais se aperceberam de que havia riscos e ónus diferentes nas dívidas soberanas no interior da União Europeia. O preço da moeda foi ajustado de maneira a reflectir estas diferenças e a impor aos elos mais fracos uma disciplina de mercado que lhes assegure a competitividade externa e garanta o reembolso dos empréstimos anteriores. Por outras palavras, a interrupção do ciclo de crescimento pôs a nu várias ambiguidades ocultas sob a retórica do euro-optimismo, fazendo com que a sua resolução seja tanto necessária como possível através da imposição de ajustamentos estruturais a qualquer custo.

Era a oportunidade esperada há muito por sectores das burguesias locais na Grécia e em Portugal, que viam na crise a perfeita oportunidade para adaptar o quadro legal e institucional às suas necessidades específicas, reduzindo o sector público através de cortes orçamentais de maneira a possibilitar novas fontes de lucro em áreas como a educação, a saúde e os fundos de pensão, ao mesmo tempo que o desemprego maciço seria a perfeita oportunidade para tornar mais flexível o mercado de trabalho. No entanto, como estes sectores beneficiam principalmente das suas estreitas ligações ao Estado e da sua capacidade de influenciar as decisões políticas, também sentem as dificuldades do ajustamento — agora que são impensáveis grandes obras públicas e que o mercado interno está em rápida contracção — e começam a pô-lo em causa. Tal como sucede com muitos outros agentes políticos e sociais na periferia, não são capazes de lidar com a escala europeia em que os acontecimentos se processam, de apreender plenamente a dimensão da austeridade na zona euro como um novo paradigma que veio para ficar e não só um período breve de rápido ajustamento.

Estamos perante um processo de reestruturação de toda a zona euro, determinado pelo plano de a transformar num espaço dominante de acumulação capitalista, com um papel hegemónico no moderno sistema-mundo. A ascensão do euro enquanto principal moeda internacional é um dos seus principais objectivos, o que explica a rígida ortodoxia monetária prevalecente no Banco Central Europeu e determina a rigorosa política orçamental imposta em todos os países membros. Mas também não devemos esquecer a insistência com que diversos membros da elite tecnocrática da União Europeia têm defendido a necessidade de reindustrializar o continente mediante uma redução dos custos e o aumento da produtividade do trabalho.

É cada vez mais evidente que as políticas de austeridade aplicadas na periferia da União Europeia se integram numa experiência de engenharia social mais vasta e ambiciosa, uma espécie de laboratório neoliberal onde estão a ser testadas novas modalidades de governação antes de serem generalizadas no resto da zona euro. É óbvio que não se trata de uma profecia nem de um destino inevitável, pois depende de vários factores e é uma questão em aberto. Trata-se de uma tentativa de conceber um padrão comum em contextos nacionais diferentes, uma lógica por detrás das grandes decisões políticas e um horizonte estratégico que nos permita lutar contra a austeridade capitalista sem lutar pelo desenvolvimento capitalista.

As novas modalidades de governação que estão a tomar forma implicam a transferência de componentes fundamentais da soberania de governos eleitos nacionais para instituições internacionais, a mercantilização de aspectos da vida social que antes eram garantidos pelo Estado ou produzidos em comum, a transformação das opções políticas em imperativos técnicos cristalizados na lei e o reforço do aparelho repressivo. Essas novas modalidades de governação exigem a suspensão da democracia e do Estado de direito como condições para abater o que resta do Estado de bem-estar social e para estabelecer uma alta taxa de lucro para os investidores capitalistas. A dispersão das formas mais resistentes de militância da classe trabalhadora através da repressão às greves e aos piquetes sindicais, juntamente com o aumento da repressão daqueles que vivem nas margens da sociedade capitalista (imigrantes e não só) são facetas de um processo que inclui também o desenvolvimento generalizado de firmas de segurança privadas e a militarização da polícia civil, a multiplicação da vigilância por câmaras de vídeo em áreas urbanas e o reforço da penalização de pequenos crimes (tais como o roubo em lojas). Se acrescentarmos a tudo isto o fortalecimento da extrema-direita e a criminalização preventiva de ideias, métodos e organizações anarquistas e da esquerda radical, temos uma ideia clara do Estado de excepção que veio para ficar: uma economia de medo é fundamental para este regime de acumulação.

O tipo de liberalismo clássico desenvolvido na Europa desde o século XIX é inadequado para esta tarefa por ser ao mesmo tempo demasiado rígido e demasiado lento, garantindo demasiados direitos a demasiadas pessoas, limitando o grau de violência legítima permitido ao aparelho repressivo e compelindo os investidores a aplicarem princípios gerais de interesse social que frequentemente constituem um obstáculo aos seus interesses privados. O que está agora a desenvolver-se rompe com esta cultura e tradição política para implementar um estado de coisas permanentemente mutável e provisório no que diz respeito às liberdades cívicas e aos direitos e garantias, inspirado apenas por considerações estratégicas de tipo militar, com o objectivo de pacificar os recalcitrantes com a mínima despesa possível e tendo como alvo a gestão de correlações de forças locais e específicas. É a lógica de um exército invasor num país ocupado, combinada com o desejo de reformular as relações sociais consoante as necessidades da acumulação capitalista; é a linha de frente europeia de uma guerra civil global determinada pela luta de classes, mas que ultrapassa a maior parte das formas de luta de classes que nos são familiares. Num regime de acumulação biopolítico a reestruturação da produção é inevitavelmente a reestruturação da sociedade como um todo e é por isso que termos da novilíngua tais como flexibilidadeempresarialcompetição e branding surgem com tanta frequência nos debates políticos internos. É indispensável a plena mobilização de todas as qualidades subjectivas para convencer os «mercados internacionais» de que um país está plenamente empenhado no crescimento económico.

Uma vez que este processo esteja desenvolvido e amadurecido na periferia da zona euro — criando um reservatório de trabalho barato, constituído por corpos e mentes dóceis, obedientes e altamente produtivos, relações sociais plenamente mercantilizadas e uma sociedade existente para e pelo mercado, governada por instituições legais e políticas que permitam uma exploração intensiva dos recursos e um controlo indisputado do capital sobre o território e a população — a austeridade será a condição de vida natural para a maior parte das pessoas, incentivando-as a competir permanentemente para sobreviverem com um mínimo de conforto. Teremos então Estados com défices orçamentais baixos ou inexistentes, atravessados por uma desigualdade social maciça e por sistemas de controlo altamente sofisticados, que obterão níveis elevados de crescimento económico, tornando os ricos obscenamente ricos enquanto concedem às «classes médias» uma fatia adequada e algumas migalhas aos pobres. Será instaurada uma fachada de democracia representativa, depois de terem sido transferidas para outro lado as decisões fundamentais e a negociação terá de obedecer aos termos da austeridade. E então seguir-se-ão os países do centro. A reestruturação da periferia provocará uma pressão imediata sobre os salários e os benefícios sociais da classe trabalhadora europeia na sua totalidade, porque imporá taxas mais baixas e pedirá salários mais baixos de modo a atrair o capital e os investimentos estrangeiros, competindo com os outros países através do dumping [baixa artificial de preços das exportações] fiscal e da redução dos custos de trabalho. A integração europeia implicará então cada vez mais ajustamentos internos, um permanente movimento de optimização das taxas de lucro e a aceleração da reprodução alargada do capital, permitindo uma reindustrialização competitiva do continente. Nada existe aqui de especificamente europeu: o capitalismo está a ganhar e nós estamos a perder, os capitalistas detêm a iniciativa e nós estamos numa posição defensiva, os capitalistas pensam numa perspectiva global e nós temos uma enorme dificuldade em ultrapassar as fronteiras nacionais.

Esta perspectiva ajuda-nos a compreender melhor o que está em jogo em cada luta contra a austeridade, com todos os seus limites e fragilidades. Quando os professores em Portugal se recusam a ser submetidos a um exame profissional destinado a excluir a maior parte deles e a reduzir o âmbito da escola pública, quando médicos e enfermeiros entram maciçamente em greve contra cortes orçamentais e planos para privatizar o sistema nacional de saúde, quando os estivadores lutam contra a reestruturação dos portos e os investigadores científicos protestam contra os cortes nos fundos públicos, estão a encetar lutas isoladas e defensivas consoante uma gramática política feita de pedidos e concessões, de mobilizações colectivas para fins defensivos, cada um no seu contexto específico e separado, contando com elementos como os tribunais, a opinião pública e as instituições nacionais eleitas para travar uma ofensiva destinada precisamente a pôr fim a tais arcaísmos. A modalidade de governação que está aqui em desenvolvimento tornou inadequada esta gramática política porque falta aos governos nacionais o poder para recuar ou fazer concessões, o que condena aquelas lutas à impotência e à derrota. É por isso que temos de ver na soberania nacional, no keynesianismo e no bem-estar social não a nossa última linha de defesa mas campos de luta e oportunidades de conflito.

A nossa situação requer que consideremos a periferia da Europa como um laboratório político onde pode ser desenvolvida uma narrativa dos conflitos sociais diferente, que olhe para além da reivindicação de mais democracia e ponha em causa a totalidade do modo de produção capitalista. Contra a nação e para além da Europa, recusando qualquer forma de cooptação e integração como identidade radical, a condição principal para essa gramática política é apresentarmo-nos como uma prática constituinte que ultrapasse a situação presente, considerando a correlação de forças de um ponto de vista estratégico. A crescente mobilidade do trabalho, juntamente com as viagens de avião de baixo preço e todo o tipo de meios de comunicação fornecidos pela internet, podem ajudar-nos a forjar um novo internacionalismo. Numa situação de desemprego maciço e de precariedade, o desenvolvimento em curso de tácticas de luta de classes eficazes, como bloqueios, ocupações, greves espontâneas, sabotagens, expropriações e motins, pode aproveitar-se da vulnerabilidade do sistema para espalhar a ilegalidade, servindo de pólo para a reconstituição política da classe trabalhadora, ultrapassando a sua fragmentação e retirando a iniciativa à classe dominante. Temos de tornar visíveis e perceptíveis todos os aspectos da máquina capitalista, tanto a sua força como as suas fragilidades, para passarmos a ocupar uma melhor posição de luta na guerra civil global. A elaboração colectiva de tudo isto é apenas uma parte da invenção do comunismo, sem a qual o capitalismo continuará a ocupar todo o horizonte.

Nota

[*] O termo refere-se ao sistema institucional da zona euro, com o seu Banco Central independente e plenamente empenhado na estabilidade dos preços e numa política anti-inflacionária, e ainda com um vasto conjunto de regras e de legislação destinado a expandir o mercado como forma dominante de relacionamento social.

14 COMENTÁRIOS

  1. O tipo de liberalismo clássico desenvolvido na Europa desde o século XIX é inadequado para esta tarefa por ser ao mesmo tempo demasiado rígido e demasiado lento, garantindo demasiados direitos a demasiadas pessoas

    – A que direitos o autor se refere? Leva em conta os habitantes das colônias europeias à época?

    limitando o grau de violência legítima permitido ao aparelho repressivo

    – A que limitações o autor se refere? Leva em conta a atuação desses Estados europeus nas suas colônias?

    e compelindo os investidores a aplicarem princípios gerais de interesse social que frequentemente constituem um obstáculo aos seus interesses privados.

    – A que princípios o autor se refere? Os habitantes das colônias europeias estão incluídos nessa visão de interesse social?

  2. Digamos que o autor não deixa de levar em conta esses habitantes e que, se fez questão de introduzir uma localização geográfica precisa na frase, terá sido precisamente para assinalar os limites na aplicação desses direitos.
    Se bem entendi, o Gustavo censura o meu eurocentrismo num artigo dedicado à situação…europeia. A afirmação não inclui todos aqueles e aquelas que sofreram com o colonialismo, porque isso teria necessariamente que ser o objecto de um artigo acerca do… colonialismo. Ou, se preferir, da relação entre liberalismo e colonialismo, acerca da qual existe abundante e interessante material publicado.
    Mas fica a nota de que, a propósito de um texto que defende a existência de um processo de reformulação do Estado e da sua amplitude repressiva, aqui e agora, o Gustavo preferiu antes a questão, sempre fresca e actual, de saber quem foi mais reprimido desde o século XIX, se os europeus ou os africanos e asiáticos. E isto apesar da resposta a essa questão ser evidente para qualquer pessoa bem informada e absolutamente irrelevante para o que aqui está em discussão. Mas que não seja por isso, porque podemos sempre discutir até à exaustão quem foi mais reprimido, se os africanos ou os asiáticos. E dentro de cada continente, podemos ainda identificar áreas cada vez mais pequenas, situações cada vez mais específicas e casos cada vez mais particulares. E ainda nem sequer começámos a falar da estrutura patriarcal em cada contexto e da condição feminina e etc etc.
    Talvez fosse avisado julgar cada artigo mais pelo que diz acerca do seu tema, do que por aquilo que nunca se propôs dizer acerca de todos os temas.

  3. Atenhamo-nos ao que está escrito, não a hipotéticas entrelinhas (censura? como poderia estar a censurar se ainda não tinha as respostas às minhas perguntas? … Aliás ainda não as tenho), ou isto vira conversa de malucos, antes de se tornar monólogo.
    Vamos lá, nova tentativa: como falar do capitalismo europeu “desde o século XIX” sem considerar a imensa expropriação de riquezas e mais-valia realizadas nesses dois continentes até meados do século XX? E como atribuir um valor a esse capitalismo do ponto de vista do efeito dele sobre as pessoas (direitos, limitação da violência do Estado, princípios) sem considerar as daqueles continentes sob o jugo colonial?
    Quem tinha esses tais “mais direitos”? Os africanos? Os asiáticos?
    A quem os Estados dessa época limitavam o uso da violência? Aos africanos? Aos asiáticos?
    A quem eram aplicados aqueles tais “princípios”? Aos africanos? Aos asiáticos?
    Ou bem queremos pôr “em causa a totalidade do modo de produção capitalista“, ou não.
    Se queremos, não há como desconsiderar essas populações e o efeito sobre elas desse capitalismo europeu “desde o século XIX”
    Como pensar o colonialismo sem esse capitalismo europeu “desde o século XIX”, e vice-versa?

  4. Para ilustrar a necessidade da referência às populações coloniais como variável importante de análise do capitalismo europeu, trago esta citação da página 391 do volume VII da História Geral da África:
    Os salarios [dos africanos] eram mantidos em nivel incrivelmente baixo. Qualquer tendencia ao aumento era contra‑arrestada; o poder aquisitivo estava sempre em queda, em parte devido aos surtos periodicos de inflacao em parte porque os salarios eram comprimidos ou mantidos abaixo dos precos. Os colonos e outros residentes europeus, bem como os diretores de empresas estrangeiras, todos se entendiam para pagar o menos possivel aos trabalhadores e mante‑los em condicao semifeudal, gracas a introducao das carteiras de trabalho, as quais limitavam vergonhosamente a liberdade de mudar de empregador. Os empregadores opunham‑se a constituicao de organizacoes operarias capazes de obter uma alta dos salarios. O regime caduco do trabalho por tarefa ou por peca era a regra: os trabalhadores nao recebiam beneficio em caso de doenca, incapacidade, desemprego ou velhice. Alem disso, a mobilidade constante de uma população ativa quase que inteiramente composta por migrantes, a sua falta de qualificacao e o racismo generalizado eram outras tantas desvantagens que pesavam contra o trabalhador africano ao enfrentar os capitalistas para exigir salario melhor e condicoes de trabalho menos penosas.
    Este trecho refere-se a um momento em que o colonialismo europeu já tinha conseguido desestruturar as relações econômicas e sociais pré-capitalistas por quase todo o continente, forçando a subproletarização da maior parte da sua população. Estamos na década de 20 do século passado.

  5. Mas Gustavo, a sua preocupação, perfeitamente legítima e assente em factos relativamente aos quais estamos de acordo, radica num equívoco.
    É que eu falo de ‘liberalismo clássico desenvolvido na Europa desde o século XIX’, ou seja, uma cultura política e jurídica com determinadas implicações na esfera económica. E o Gustavo responde-me que é impossível falar no ‘capitalismo europeu desde o século XIX’ sem dar conta das suas incursões coloniais, o que, sendo verdade, não tem nada que ver com aquilo de que trata o texto. O liberalismo e o capitalismo não são sinónimos, mesmo que a relação entre os dois tenha sido muito íntima ao longo da história. Para esclarecer um pouco, eu estou sobretudo a pensar naquilo que Wallerstein desenvolveu recentemente no IV Volume da sua obra sobre a economia-mundo capitalista (http://www.ucpress.edu/book.php?isbn=9780520267619).
    As questões que me coloca, e que teriam necessariamente que ser respondidas no âmbito de outro artigo especificamente dedicado ao tema (e para o qual me falta justamente a disponibilidade neste momento) são justas e pertinentes, simplesmente não estão relacionadas com este texto.
    Mas adianto que a experiência colonial foi constitutiva do modo de produção capitalista desde a sua origem, pela escravatura, pelas diversas formas de acumulação primitiva, pela economia da plantação e pela exploração intensiva dos recursos naturais e da força de trabalho das populações do mundo inteiro pelo colonialismo europeu. E certas práticas de controlo, disciplinamento, reclusão, repressão, etc, foram experimentadas na periferia antes de serem importadas para o centro.
    Acabo por dizer que teria todo o gosto em ler um texto seu sobre esse assunto aqui mesmo no Passa Palavra.

  6. É verdade, fiz confusão, obrigado pelo esclarecimento e pela paciência.

    Na impossibilidade momentânea de adquirir e ler obra tão monumental, acha que este livro do Wallerstein, CAPITALISMO HISTORICO E CIVILIZAÇAO CAPITALISTA, pode servir de substituto para um melhor entendimento dessa perspectiva sobre a ideologia do liberalismo? De acordo com a descrição dele, pretende ser um resumo dessa obra que você recomendou…

  7. Penso que não. O livro sobre o liberalismo é o IV volume da obra, abarcando o século XIX. O livro que menciona corresponderá a um resumo dos dois primeiros volumes, sobre a formação do sistema-mundo moderno (esta tradução literal do termo original fica um bocado estranha)a partir do século XVI. Tratam da acumulação primitiva, enquanto o IV Volume abarca um período de consolidação da ordem capitalista por via da construção do Estado moderno na Europa e o seu impacto sucessivo no resto do planeta.

  8. Depois da leitura do trecho desse volume que está disponível no sítio indicado por você, destaco a definição de liberalismo enquanto ideologia (em oposição ao liberalismo enquanto filosofia política) – ou seja, enquanto programa político, enquanto estratégia, para dar conta das demandas de soberania popular. Nesse sentido, o liberalismo propunha a “necessidade de empreender reformas conscientes e inteligentes, de forma contínua“.
    De acordo com essa leitura, penso que é a partir deste liberalismo ideológico que uma Inglaterra aceita sem muita reclamação “perder” todas as colônias que havia conquistado até então em África e na Ásia (se não me engano, o maior Império colonial de todos), e que os Estados Unidos apoiam, por exemplo, movimentos de libertação das colônias portuguesas no início da década de 60, ao mesmo tempo que têm em Portugal um aliado (aliado de pouco peso, mas estratégico do ponto de vista geopolítico, como importante base operacional da OTAN).
    Já o Portugal salazarista (o regime que se volta, com força, à exploração das colônias africanas, até então esquecidas depois do fim da escravidão), de acordo com a a leitura de Wallerstein, estaria no campo da ideologia conservadora, na sua rejeição aos valores modernos, o que explica a enorme resistência que colocou à libertação das suas colônias em África – “Orgulhosamente sós! “.
    Enfim, isto para recolocar as questões que eu trouxe – e que de fato não têm nada a ver com o seu texto – sob a ótica de Wallerstein.

  9. Prezado Campos, gostei do seu artigo, considero-o fundamentado e elucidativo. Entretanto corroboro relativamente com o Gustavo, apesar de entender que seu artigo trata especificamente do atual estágio de desenvolvimento do capitalismo europeu, não do século XIX, como seu crítico tenta resgatar. Apesar disso fica minha ressalva sobre sua chave de leitura “sistema-mundo” do Wallerstain, que é uma visão do centro “imposta” à periferia, ou seja, a periferia é atrasada por não aceitar o “liberalismo avançado do centro”. Escrevo isso com profundo repúdio ao conceito “sistema mundo”. Hoje o centro não impõe um liberalismo mais avançado, nem reluta ao atraso da periferia, trata-se de outro viés. Em O Nascimento da Biopolítica, Foucault demonstrou que esse movimento é iniciado na década de 70 e é chamado NEOLIBERALISMO e que tem como pano de fundo a ampliação da concorrência em todos os níveis da vida humana, seja econômico, político ou social. Nesse sentido eu proponho que o centro capitalista, vinha perdendo competitividade produtiva diante a periferia, nos últimos 30 anos, então promove uma reação financeira que ampliará sua capacidade concorrencial diante a mesma periferia (arrocho salarial, reestruturação, financeirização extremada, etc.). Dessa forma, vejo que o sistema mundo, pouco tem de sistema, mas sim é neoliberal concorrencial, caso as periferias não invistam na sua capacidade concorrencial produtiva frente ao neoliberalismo avançado do centro, permanecermos subjulgados a ele. Isso envolve poder, luta de classes, desenvolvimento econômico e combate ao atraso tecno produtivo e financeiro (que o centro vem impondo) por parte da periferia. Ou seja, não se trata de periferia atrasada em todos os aspectos, mas, sobretudo no aspecto financeiro, no aparelhamento financeirista sobre o desenvolvimento produtivo. Já o liberalismo não passa de aparato ideológico, assim como o humanismo.

  10. Caro Paulo, não me parece que seja essa a visão de Wallerstein, a de que a periferia seria atrasada por não aceitar o liberalismo avançado do centro. Esses são termos seus.
    Precisamente, a obra de Foucault que cita demonstra que o neoliberalismo não é um retorno ao liberalismo clássico, mas uma refundação do mesmo no contexto do capitalismo tardio.
    Mas há muito mais bibliografia recente que vai nesse sentido e desenvolve as hipóteses desse livro. Eu tenho-me entretido com este, que está longe de esgotar o assunto, mas que recomendo vivamente. http://www.hup.harvard.edu/catalog.php?isbn=9780674033184
    Quanto à ideia de que as periferias devem investir na sua capacidade concorrecial produtiva face ao centro, parece-me uma afirmação de inspiração neoliberal. O neoliberalismo não é uma continuação do imperialismo por outros meios, mas algo muito mais complexo e refinado. Acabo de o identificar nas suas palavras, embora presuma que não seja essa a sua intenção.

  11. O texto é muito bom e descreve com total acerto o desafio que está em cima da mesa: «Numa situação de desemprego maciço e de precariedade, o desenvolvimento em curso de tácticas de luta de classes eficazes, como bloqueios, ocupações, greves espontâneas, sabotagens, expropriações e motins, pode aproveitar-se da vulnerabilidade do sistema para espalhar a ilegalidade, servindo de pólo para a reconstituição política da classe trabalhadora, ultrapassando a sua fragmentação e retirando a iniciativa à classe dominante».

    Enquanto este artigo tem a lucidez de lembrar que quem continua a deter a iniciativa no actual contexto europeu é a classe dominante, ainda há muita gente que se digna a dizer que o capitalismo estaria ligado à máquina, perto do colapso, etc. Existem fragilidades, como o artigo aponta, mas elas são, neste momento, mais resultado de algumas dificuldades e desavenças dos dominantes do que propriamente produto da acção das lutas sociais. E existem fragilidades mas também existem forças. E o facto de o capitalismo estar a conseguir impor um maciço programa de austeridade sem ter o seu poder em perigo, só demonstra que é a classe dominante que detém a iniciativa.

    E isto leva-me para outra questão que me parece ser pouco discutida à esquerda. Se grande parte da esquerda rejeita, e bem, o neoliberalismo, também é verdade que a crítica da esmagadora maioria da esquerda ao neoliberalismo é feita unicamente a partir de uma visão proteccionista, defensora da mais-valia absoluta e estatizante (e aqui não me refiro aos serviços públicos de saúde e educação mas à noção de que o Estado pode financiar défices indefinidamente com uma política monetária à la venezuelana, relançar o proteccionismo, etc.).

    É da minha opinião que o sucesso futuro das lutas sociais passará tanto pela derrota dos actuais dominantes como pela crítica das noções que de dentro da esquerda mais não são do que formas de fragmentação política e ideológica dos trabalhadores. Ora, se o futuro das lutas sociais terá de ir «contra a nação e para além da Europa» neoliberal, então a crítica terá de ser feita simultaneamente aos capitalistas e às organizações da esquerda que mais não farão do que levar a cabo formas de «cooptação e integração como identidade radical», onde o nacionalismo surge como o cimento ideológico que cola a rebeldia dos trabalhadores a intenções de reconstrução de modalidades capitalistas ainda mais miseráveis do que as neoliberais.

    Em suma, e aqui não me refiro necessariamente a este artigo mas a uma atitude geral de pessoas de esquerda que até se consideram simpáticas com um projecto supranacional, de que serve criticar apenas um dos lados da equação e deixar praticamente incólume o estatismo e o proteccionismo da maioria da esquerda. Concepções que tanto permeiam partidos herdeiros da linha soviética, trotsquistas de todos os matizes, sindicatos de todo o tipo, movimentos de indignados, movimentos sociais, mesmo alguns agrupamentos anarquistas, etc.

    Se porventura se alargarem as fragilidades do capitalismo neoliberal, temo que quem ganhará com isso será ou a extrema-direita ou a esquerda nacionalista em geral. A europa das nações livres e soberanas é o tema que une numa mesma teia nacionalismos de diferentes proveniências políticas. E se a soma de nações livres e soberanas é o internacionalismo da actual esquerda, em termos de concorrência política entre nacionalismos, dificilmente a esquerda que diz à boca cheia querer competir com a extrema-direita pelos temas da nação e do social (http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2014/01/depois-queixem-se.html) poderá pensar bater os fascistas no seu próprio terreno. Além de politicamente nacionalista, essa esquerda não apenas está a formar uma nova geração de activistas que mais não fazem do que reproduzir o esquema das nações proletárias contra as nações plutocráticas. Além disto, esta esquerda consegue ainda ser politicamente inconsciente se pensa que pode disputar a bandeira da nação. Essa é uma bandeira que rola sempre para situações como as dos trabalhadores britânicos que há uns anos queriam expulsar e bater em trabalhadores portugueses e italianos. Quando a esquerda quer que cada povo tome conta de si mesmo é também da multiplicação de situações como a que descrevi que estamos a falar. Se essa esquerda e/ou a extrema-direita tomassem o poder, a situação muito bem descrita no artigo de que «a crescente mobilidade do trabalho, juntamente com as viagens de avião de baixo preço e todo o tipo de meios de comunicação fornecidos pela internet, podem ajudar-nos a forjar um novo internacionalismo» seria de todo impossível. Seja em que forma for, a vitória do nacionalismo só impediria que os actuais rudimentos de internacionalismo existentes se esfumassem e ficassem numa situação objectiva muito mais complicada de se poder desenvolver. Este nacionalismo expandirá exponencialmente a «economia do medo» descrita no artigo.

    Em suma, quando se fala de neoliberalismo e das alternativas mais sonantes na maioria da esquerda, é de todo um mesmo paradigma que estamos a falar, de pólos de um mesmo campo, e não de projectos políticos antagónicos. Termino, por isso, com a questão que iniciei esta discussão, porque a esquerda apenas oferece um projecto tão ou mais tenebroso do que a miséria na qual vivemos hoje?

  12. Uma análise social-democrata isolada do contexto histórico e mundial: a) a crise geral do modo de produção capitalista que na sua fase monopolista e imperialista deixa para trás o bem estar das pessoas e tudo faz pela acumulação dos lucros, mais fácil nos movimentos financeiros especulativos e na baixa dos rendimentos do factor trabalho (prestações sociais incluidas); b) emergência de zonas de desenvolvimento económico concorrentes com o ocidente e dispostas a politicamente não se submeterem ao “ocidente” e a pensarem as relações sociais dum modo não-capitalista;c)a “nova ordem” estadunidense começa a ser uma velha ordem que países com a maioria da população e do pib mundial não estão dispostas a aceitar. O capitalismo tem uma última hipótese de ajustamento antes de ter de se transformar radicalmente passando a um modo de produção humano e a favor de todos os cidadãos.
    O cenário europeu é o campo p/ onde os eeuu exportaram a sua guerra contra paises desenvolvidos e com estados em estádio superior ao seu, para porem a europa sem capacidade política (como se viu e vê no caso da ucrânia) e com um desenvolvimento económico que washington sempre vigiará.
    Mas sempre se tem de referir a crise capitalista actual que os estados burgueses fazem pagar aos cidadãos, como reflexo da sua actuação dictatorial em defesa do capital transnacional monopolista, bárbaro e profundamente não-humanista e contra a natureza.

  13. Kapital&Estado são a doença. O resto é pretexto para lucrar, vendendo pseudo-soluções para falsos problemas e remédios que matam o doente…

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