Na visão de uma classe trabalhadora privada de estrutura interna, a incitação ao heroísmo nacional podia ser tão satisfatória para os sindicalistas revolucionários como a mobilização do dinamismo operárioPor João Bernardo

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Georges Sorel
Georges Sorel

Foi uma concepção bastante ingénua de violência, ou bastante arcaica, que presidiu às reflexões de Sorel. Como notou um historiador, era no mercado que Sorel localizava a violência exercida pelas classes, nos mecanismos da concorrência, e por isso as suas propostas económicas nunca deixaram de ser estritamente liberais, defendendo a concorrência pura e a propriedade privada e recusando as nacionalizações ou qualquer outro tipo de intervenção do Estado que mitigasse os efeitos da competição e os conflitos que lhe eram inerentes [1]. Igualmente Berth atribuiu uma raíz manchesteriana às teorias de Marx [2], assimilou a concorrência entre as indústrias a um «campo de batalha» [3] e considerou que não só o estatismo mas até a contratação colectiva, reconhecida na lei, representavam uma decadência da burguesia e uma abdicação dos trabalhadores [4]. Arturo Labriola, um dos principais dirigentes e pensadores do sindicalismo revolucionário italiano, formulou a partir destes mesmos postulados a sua análise crítica do marxismo, afirmando que o socialismo só poderia resultar de um desenvolvimento e de uma ampliação dos princípios económicos do capitalismo, pelo que tudo o que dificultasse o livre jogo de forças na economia prejudicava gravemente o processo revolucionário [5]. Na orientação reformista do socialismo oficial e na política de cedências patronal Sorel via apenas uma táctica para atenuar a rudeza dos confrontos sociais. Para ele, um tal procedimento revelaria a degenerescência da burguesia, que teria perdido o seu sentido de luta e que, ao afastar o proletariado da violência, o arrastaria numa igual degradação, comprometendo a própria civilização e condenando-a a um futuro de declínio [6].

A leitura de Les Illusions du Progrès revela que para Sorel a tendência para a mediocridade seria inerente à história. «O grande erro de Marx consistiu em não se ter dado conta do enorme poder da mediocridade na história» [7]. Identificada à democracia [8], a mediocridade poderia apenas ser contrariada por acções vigorosas. A apologia da elite leva necessariamente a uma teoria dos heróis. Depois de ter assimilado a noção de grandeza à de génio e a noção de decadência à de mediocridade, Sorel considerou que «a economia tende a confundir todas as obras individuais numa massa» e que, «portanto, não é na economia que se deverá procurar a aplicação directa das noções de grandeza e de decadência». Era na arte, na religião e na filosofia, classificadas como «actividades do espírito livre», que Sorel encontrava o terreno adequado às noções de grandeza e de decadência [9]. A sociedade burguesa seria uma sociedade de massas e caberia ao sindicalismo revolucionário restaurar a supremacia de indivíduos. Os numerosos anarquistas que se filiaram no sindicalismo revolucionário foram atraídos pela ideia de grandeza, pretendeu Sorel [10]. «No mês de Maio de 1899», recordou ele, «publiquei na Rivista Italiana di Sociologia um artigo sobre o marxismo e a ciência social; terminei-o com o voto de que o socialismo se convertesse numa filosofia dos costumes; esta transformação teria comunicado grandeza a um movimento que estava quase tão desprovido dela como a própria democracia» [11].

Intervencionismo Milão 2
Manifestação em Milão pela intervenção da Itália na guerra

Um notável historiador fascista, que foi também historiador do fascismo, observou que o sindicalismo revolucionário «confia no proletariado, mas considera indispensável o revigoramento da burguesia» [12]. Esta apologia da violência nas relações entre as classes e a crítica ao espírito conciliatório e liberal que a burguesia passara a manifestar não só se encontravam igualmente na obra de Vilfredo Pareto, com quem Sorel manteve uma correspondência regular [13], como não eram também inéditas no panorama do socialismo. No mais importante dos livros de Benoît Malon, publicado um ano antes da sua morte, podiam ler-se já alguns temas que as Réflexions sur la Violence haveriam de celebrizar. A tese de que o curso da história não é determinado apenas por factores económicos, mas ainda por forças morais, que devem sustentar o proletariado no seu combate, adquiriu um carácter operacional na teoria soreliana do mito. E a visão moral dos conflitos sociais, que levara Malon a situar o socialismo mais no contexto da civilização do que no da luta de classes, justificou do mesmo modo a obsessão de Sorel com os riscos de uma decadência civilizacional [14].

Teve grande audiência esta tese, premonitória do pessimismo cultural que haveria de se difundir nos meios conservadores durante as décadas que mediaram entre as duas guerras mundiais. Lucien Rebatet, que não sabia ainda soletrar quando foi publicada a primeira edição das Réflexions sur la Violence, escandalizou-se de que na França de 1939 as relações «entre os simples soldados e todo o tipo de oficiais subalternos» copiassem as existentes entre o proletariado e a burguesia, «já não de uma maneira autoritária e violentamente triunfante, mas à maneira do capitalismo democrático, operários reles, patrões cobardes […]» [15]. Afinal, apesar de ser um leitor atento de Marx e de em boa parte o ter entendido melhor do que os ortodoxos do seu tempo [16], Sorel manteve-se cego perante os mecanismos da mais-valia relativa, que geram a conciliação entre as classes, enquanto o recurso exclusivo à violência por parte dos patrões apenas serve de quadro à mais-valia absoluta, sendo por isso incapaz de estimular o progresso económico. Foi porque Sorel não concebeu os trabalhadores como uma classe dotada de organização interna e não lhes analisou a estrutura social que ele não percebeu que o único factor a incentivar a produtividade consiste na prática capitalista de recuperação das lutas. A que se reduzia então a autonomia de uma classe, se a sua organização interna não era concebida como autónoma?

Já que lhe fora retirado o fundamento social prático, a greve geral só poderia esperar-se da acção de uma vanguarda. A revolução foi substituída pela acção — qualquer acção. E a política, em vez de constituir uma estratégia de agudização das contradições, reduziu-se ao impulso voluntarioso de um número diminuto de iluminados. Considerar a classe trabalhadora como desprovida de organização própria é convertê-la numa massa e criar as condições ideológicas necessárias à promoção de uma elite. Sorel resumiu o enredo do drama social às manobras dos políticos profissionais e à actuação dos militantes do sindicalismo revolucionário. A leitura das Réflexions sur la Violence mostra que para Sorel a única organização possível da classe trabalhadora lhe era exterior e residia nos sindicatos [17].

Manifestação em Roma pela intervenção da Itália na guerra
Manifestação em Roma pela intervenção da Itália na guerra

Contudo, na primeira edição desta sua obra Sorel parece ter guardado certa lucidez e criticou o elitismo que surgia no próprio movimento revolucionário. «[…] o grande perigo que ameaça o sindicalismo são as tentativas de imitar a democracia. É preferível contentar-se durante algum tempo com organizações fracas e caóticas do que ficar sujeito ao domínio de sindicatos que copiem as formas políticas da burguesia» [18]. Aliás, este aspecto tumultuoso foi apresentado como o segredo da vitória. «[…] a greve geral […] é a manifestação mais patente da força individualista nas massas sublevadas» [19]. Um pouco antes a ideia fora melhor explicada. «[…] os grupos de operários que se entusiasmam com a greve geral […] concebem […] a revolução como uma imensa sublevação que pode ainda considerar-se individualista: cada um avançando com todo o ardor, agindo por conta própria, sem se preocupar em subordinar o seu procedimento a qualquer plano de conjunto, sabiamente preparado. Este carácter da greve geral proletária […] não deixa de atemorizar os políticos gananciosos, que compreendem perfeitamente que uma revolução conduzida deste modo lhes tiraria qualquer oportunidade de se apoderarem do governo» [20]. E de novo, num estilo mais conciso: «Este individualismo apaixonado jamais existiria entre classes operárias que tivessem sido educadas pela politicagem. Essas não seriam capazes senão de mudar de chefes» [21].

Numa edição posterior Sorel introduziu um capítulo suplementar e só aí atribuiu um papel decisivo aos propagandistas e organizadores da greve geral. «O catolicismo reservou sempre as funções de luta a instituições com um reduzido número de membros, severamente seleccionados através de provas destinadas a confirmar a sua vocação […] Foi com tropas de elite, perfeitamente treinadas graças à vida monástica, […] que o catolicismo pôde, até aos dias de hoje, triunfar dos seus inimigos. […] Para o proletariado seria extremamente perigoso não aplicar uma divisão de funções que teve tanto êxito com o catolicismo durante toda a sua longa história. Ele não seria mais do que uma massa inerte, destinada a cair, tal como a democracia, sob a direcção de políticos que vivem da subordinação dos seus eleitores. Os sindicatos não se devem preocupar tanto em possuir um grande número de aderentes como sobretudo em reunir elementos fortes. As greves revolucionárias são excelentes para operar uma selecção, afastando os timoratos que arruinariam as tropas de elite» [22]. E um pouco adiante: «Um grande número de organizações intervém mais ou menos de perto na vida económico-jurídica do conjunto da sociedade, de maneira que o grau de unidade necessário numa sociedade é produzido automaticamente. Outras, menos numerosas e bem seleccionadas, conduzem a luta de classe. São estas que empolgam o pensamento proletário, criando a unidade ideológica de que o proletariado necessita para levar a cabo a sua obra revolucionária […]» [23].

As novas ideias e a nova moral, que Sorel começara por apresentar no quadro de uma pedagogia da luta autónoma, passaram a ser enunciadas como feito e obra de elites seleccionadas. Isto pôde suceder porque já na primeira edição das Réflexions sur la Violence ele concebera a classe trabalhadora como uma massa dotada de enorme potencial de energia, mas desprovida da capacidade de canalizar a violência numa estratégia própria [24]. O proletariado, que os sindicalistas revolucionários enalteciam como o grande objecto da história, seria afinal inapto para se assumir como sujeito histórico. Não era o paradigma económico incorporado nas organizações de resistência dos trabalhadores que rasgava o futuro, mas só o dinamismo que os trabalhadores ousassem manifestar nos confrontos sociais. «A economia tende a confundir todas as obras individuais numa massa», escreveu Sorel, como citei há pouco, e acrescentou que «não é na economia que se deverá procurar a aplicação directa das noções de grandeza e de decadência» [25]. Ou ainda, numa formulação lapidar: «Pode dizer-se que, de maneira geral, o espírito revolucionário ganha terreno sempre que se enfraquece o sentimento da necessidade económica» [26].

Manifestação em Milão pela intervenção da Itália na guerra
Manifestação em Milão pela intervenção da Itália na guerra

Quando se prescinde da perspectiva económica, porém, o proletariado deixa de ser definido pelo lugar que ocupa no processo de produção da mais-valia e fica remetido a um plano estritamente político, passando a ser considerado um mero factor de violência, substituível por qualquer outro factor a que se atribua uma força semelhante. Nestes termos, a incitação ao heroísmo nacional podia ser tão satisfatória para os sindicalistas revolucionários como a mobilização do dinamismo operário. Não importa que a formulação explícita do elitismo sindicalista de Sorel tivesse sido tardia, porque o elitismo estava já contido na visão de uma classe trabalhadora privada de estrutura interna. Depois, a pressão das circunstâncias obrigou os pressupostos ideológicos a assumirem uma forma visível e revelou-os nas suas consequências práticas.

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No sindicalismo revolucionário cruzavam-se e entrechocavam-se ideias variadas e teses contraditórias, cada uma com o seu peso específico, consoante os casos individuais. Mas os rumos tomados pela história mostram que o discurso começou a reestruturar-se em torno das concepções elitistas, adquirindo então outro carácter. Não ocorreu aqui, como aliás nunca ocorre, uma evolução em bloco, mas transformações internas, e elas puderam efectuar-se porque no quadro de pensamento anterior existia já um ponto de articulação em redor do qual se desenvolveu o novo quadro ideológico, até que afinal o sindicalismo revolucionário se revelou como um dos factores decisivos no aparecimento do fascismo. Esta distância podemos hoje percorrê-la sem esforço porque a história se encarregou de a preencher primeiro. Não é difícil afirmar que existe uma continuidade quando, depois de tudo sucedido, vemos que a evolução se processou. Mas antes? Poder-se-ia saber em 1906 que os anseios de um fascismo em gestação eram a conclusão necessária e única de páginas tão brilhantes sobre a autonomia dos trabalhadores? É esta a trágica assimetria da história. Tudo o que vemos a posteriori é, por isso mesmo, razão suficiente. O que nos deixa sem saber com que razão perscrutar no a priori. Porque a questão fundamental não consiste em explicar o segredo da evolução de Sorel e, com ele, de um número tão considerável de sindicalistas revolucionários. O decisivo seria desvendar o mistério da evolução, a partir do dia de hoje, das experiências mais recentes de autonomia da classe trabalhadora.

Negando a originalidade ideológica do fascismo, um historiador soviético encontrou nele uma colagem confusa das ideias de Georges Sorel e de Joseph de Maistre [27]. Sem dúvida que o fascismo não foi coerente como sistema ideológico, ou não teve outra coerência senão a que a estética lhe deu. Mas a fusão de concepções que até então haviam sido antagónicas representou uma criação original, e foi o próprio Sorel quem, em Les Illusions du Progrès, encontrou um quadro de entendimento entre o seu sindicalismo e o pensamento tradicionalista avesso à filosofia racionalista das luzes, sem ser necessário esperar que outros o fizessem. O ambiente era propício. Em duas obras, de 1923 e de 1929, outro historiador soviético detectou o aparecimento do fascismo nos romances franceses de temática social publicados na primeira década do século XX, que juntavam a nostalgia do cesarismo e a preocupação em impor ordem à classe trabalhadora com os ataques à presumida debilidade governamental e a apologia das personalidades fortes, à maneira nietzscheana [28]. Tal como sucedia do outro lado dos Alpes, em França as posições de alguns sindicalistas revolucionários puderam evoluir porque ao mesmo tempo, e no mesmo sentido, evoluíam igualmente as posições das alas radicais da direita. Ultrapassando as fronteiras de classe e os limites convencionais das forças partidárias, era uma grande transformação na cultura política que se estava a gerar.

Cercle 1Depois de uma tentativa frustrada de juntar numa mesma revista os sindicalistas revolucionários e os nacionalistas da Action Française (Acção Francesa), Sorel repetiu a experiência e desde o começo de 1911 até aos meados de 1913 publicou L’Indépendance, parece que sem grande êxito [29]. Entretanto, com o apoio prudente e um pouco distante de Charles Maurras e sob a tutela de Sorel, foi fundado no final de 1911 o Cercle Proudhon (Associação Proudhon), que durante algum tempo serviu de lugar de encontro e debate para os sindicalistas antiliberais e os nacionalistas preocupados com a questão social. Na exacta ocasião em que Sorel se desiludia das possibilidades do sindicalismo revolucionário em França e em que Maurras receava o descontentamento que os ensaios de demagogia operária prosseguidos por Léon Daudet e por alguns outros membros da Action Française estavam a provocar entre os adeptos mais conservadores da organização [30], o Cercle Proudhon representou uma tentativa de criar um meio termo onde ambos os lados pudessem colaborar sem se comprometer demasiado [31].

É sugestivo que fosse evocada a memória de Proudhon, uma das figuras mais ambíguas do movimento operário, inspirador tanto de um ânimo libertário como de valores reaccionários. Aliás, desde a sua fundação a Action Française considerara Proudhon como um dos mestres [32] e, por seu lado, em 1908 Berth atribuíra ao sindicalismo revolucionário a dupla progenitura de Marx e de Proudhon [33]. Três décadas e meia mais tarde Lucien Rabatet, um dos hitlerianos de Paris, escreveria numa das obras cimeiras do colaboracionismo que «sem os judeus, teríamos feito entre nós, e com o mínimo de estragos, essa revolução do socialismo autoritário que se tornou a necessidade do nosso século e de que os velhos doutrinadores franceses, como Proudhon, têm a honra de ter sido os precursores» [34]. Uma tese semelhante seria defendida igualmente em França pelo fascista Pierre Drieu la Rochelle [35] e é conhecido o apreço que o jurista nazi Carl Schmitt viria a ter por Proudhon [36]. Também Wyndham Lewis, na sua fase mais claramente fascista, se interessaria por Proudhon [37]. O Cercle Proudhon pretendia-se simultaneamente revolucionário e contra-revolucionário [38], tal como o fascismo haveria de se proclamar alguns anos mais tarde. Juntando uma ou duas dezenas de pessoas [39], o Cercle era animado sobretudo por Édouard Berth e por Georges Valois.

Georges Valois
Georges Valois

De Berth conhecemos já o percurso. Por seu lado, entre as figuras relevantes da Action Française, quem podia manter relações mais estreitas, ou pelo menos mais sinceras, com o meio operário era Georges Valois, antigo anarquista, que havia sido secretário de L’Humanité Nouvelle, em cuja sala de redacção conhecera Sorel, nos últimos anos do século XIX. Valois aderiu à Action Française em 1906, e Victor Serge descreveu-o uns quatro ou cinco anos depois dando réplica aos jovens anarquistas que lhe perturbavam os comícios e não hesitando em discutir com eles «a sua doutrina sindicalista-monárquica» e em evocar «Nietzsche, Georges Sorel, o “mito social”, as corporações das comunas da Idade Média, o sentimento nacional» [40]. Mas o quadro da Action Française havia de se revelar demasiado estreito para acolher uma digressão tão ampla entre o «mito social» e o «sentimento nacional», e Valois romperia com Maurras em Outubro de 1925 para, no mês seguinte, ser um dos primeiros a criar fora da Itália um movimento mussoliniano, cujo nome traduzia à letra o do modelo originário — Faisceau. Com a amplitude de espectro característica do fascismo genuíno, o Faisceau (Fascio, ou seja, Liga) começou por atrair descontentes de ambos os lados, tanto gente que havia rompido com a Action Française como alguns dissidentes do Partido Comunista. Mas em breve esta convergência ficou frustrada na prática, e a organização extinguiu-se no início de 1928 devido aos desacordos internos e à falta de apoio dos financiadores. Entretanto Valois havia-se já distanciado da orientação proposta pelo Duce. «Ou nos enganamos muito», escrevera ele nos primeiros dias de 1928, «ou sob a pressão das forças financeiras estrangeiras o fascismo italiano está a evoluir no sentido reaccionário». Depois de ter percorrido todas as etapas que podiam levar de uma certa extrema-esquerda até à direita mais extrema, Valois tornou-se, sobretudo a partir de 1930, um crítico acerbo do regime italiano e dos outros tipos de fascismo. Ele procurou encontrar então um novo lugar na esquerda. Não o conseguiu através de uma sua efémera criação, o Partido Republicano Sindicalista, e também não eram os comunistas quem o acolheria, porque, embora fizesse a apologia dos planos quinquenais, ele criticava ao stalinismo a incapacidade de conjugar a elaboração das directivas económicas com a actividade de base dos trabalhadores. Nem era a ala moderada do socialismo que podia atrair Valois, pois decerto se afigurava sórdida a alguém que classificava o plano de acção elaborado pela Confédération Générale du Travail (CGT, Confederação Geral do Trabalho) em 1934 como um «plano operário em que a classe operária não desempenha qualquer papel». Patrocinado por Marceau Pivert, a principal figura da tendência esquerdista do socialismo francês, Valois pediu a integração na Section Française de l’Internationale Ouvrière (SFIO, Secção Francesa da Internacional Operária ou seja, na realidade, o Partido Socialista francês) em 1935, mas viu-se recusado pela direcção do partido. Na mesma ocasião o Comité de Vigilância Antifascista rejeitou igualmente a sua candidatura. Valois ficou suspenso no ar, nesta tentativa de perfazer em sentido inverso o seu caminho anterior, e assim o foi encontrar a ocupação alemã da França. Preso pela polícia de Vichy, mais tarde preso pelos nazis, ele morreu num campo de concentração, tal como sucedeu a outros partidários, ou antigos partidários, do fascismo populista [41].

Merry-Go-Round 1916 by Mark Gertler 1891-1939
Mark Gertler, «Carrossel», 1916

Foi como se algum feirante irónico instalasse um carrossel numa sala de espelhos, de modo que cada um dos personagens desta história rodasse alternadamente entre todas as posições, e em qualquer instante todos eles ilustrassem a teia que ligava os extremos. Enquanto Valois passa do anarquismo para a direita monárquica e radical, Berth e Lagardelle evoluem, no interior do socialismo, para posições de esquerda cada vez mais acentuadas. Em 1909, quando Berth adere à Action Française, e em 1911, quando se encontra com Valois na fundação do Cercle Proudhon, Lagardelle rompe com ele. Mas pouco depois Lagardelle transita para o socialismo reformista e para a democracia liberal, parecendo acomodar-se e apagar-se nas instituições da Terceira República, enquanto Berth se torna comunista em 1920. Cinco anos mais tarde, Berth afasta-se do Partido Comunista e regressa a um sindicalismo soreliano que já não existia senão na memória de alguns dos seus antigos participantes, precisamente quando Valois inaugura o fascismo francês, onde conta em breve com a adesão de Lagardelle. Mas é agora Valois quem depressa volta costas ao fascismo e busca no socialismo radical uma oportunidade que não encontra, porque não lha dão, exactamente durante os mesmos anos em que Lagardelle vai ocupando posições de destaque nos meios fascistas do seu país. E quando Lagardelle entra para o governo de Vichy é nas prisões desse governo que Valois se encontra detido, sendo depois preso pela Gestapo e enviado para Bergen-Belsen. Morreu um enquanto o outro havia atingido a glória. Que glória! Valeu-lhe, pior do que a morte, a prisão ignominiosa, sepultando-se afinal na história o último dos navegantes desta farândola grotesca. Mas enquanto o carrossel funcionou, rodaram os comparsas pontualmente entre as posições extremas. Uma relojoaria tão exacta não se deve explicar pelo espírito de aventura de uns, pela extravagância política de outros, nem pela inconstância de todos. A figura destes percursos não podia ser mais regular, e revela os vínculos que ligaram estas posições políticas nos embates da época.

Para quem, como nós, veja a história ao invés, o breve episódio do Cercle Proudhon parece conter a premonição dos desastres futuros. Mas na história os actores, ou autores, desconhecem o enredo em que participam, ou que julgam escrever.

Notas

[1] Z. Sternhell et al. (1994) 22-23, 43-46, 82-83, 101, 128-129. Todavia, G. Sorel (1947) 211-212 chamou a atenção para «estes aparentes paradoxos: que a legislação social, fabricada com o objectivo de acalmar o ardor dos socialistas, tenha muito frequentemente como resultado favorecer o socialismo; — que as concessões feitas pelos patrões na sequência de greves constituam geralmente um dos factores do progresso do sindicalismo revolucionário; — que, numa palavra, a paz social alimente quase sempre a luta de classe» (subs. orig.).

[2] No seu livro de 1908 Les Nouveaux Aspects du Socialisme em E. Berth (1923) 71.

[3] Id., ibid., 95. Édouard Berth assimilou tanto a concorrência como a luta entre as classes à guerra, invocando para isto a lição de Proudhon, como se vê nas págs. 94 e segs.

[4] Id., ibid., 60.

[5] Z. Sternhell et al. (1994) 101-103.

[6] «Afinal, a história, para Sorel, não era tanto a crónica de uma luta de classes como um combate incessante contra a decadência», observaram id., ibid., 38.

[7] G. Sorel (1947) 332.

[8] «Aquilo que neste estudo denominámos com o termo pejorativo de mediocridade», escreveu id., ibid., 333, «é o que os escritores de obras políticas chamam democracia».

[9] Id., ibid., 317-318. «O que preocupava Sorel», escreveram Z. Sternhell et al. (1994) 90-91, «era o destino da civilização, e não o do proletariado ou da nação. […] O anticapitalismo de Sorel limitava-se estritamente aos aspectos político, intelectual e moral do sistema burguês e liberal; ele nunca tentou pôr em causa os fundamentos, os princípios e os mecanismos competitivos da economia capitalista». Ver igualmente G. Guy-Grand (1911) 51.

[10] G. Sorel (1947) 335.

[11] Id., ibid., 335.

[12] G. Volpe (1941) 11.

[13] T. B. Bottomore (1967) 60; A. Lyttelton (1982) 30; Ch. S. Maier (1988) 39-40.

[14] As teses defendidas por Benoît Malon em Le Socialisme Intégral, livro publicado em 1892, encontram-se resumidas em D. Ligou (1962) 95-96. Por seu lado, Z. Sternhell (1978) 46 situou Malon entre aqueles que contribuíram para a difusão «de uma corrente nacionalista que se pretende social ou, mutatis mutandis, de um socialismo que se pretende nacionalista». Acerca da noção de decadência civilizacional que preocupava Sorel e os seus discípulos ver id., ibid., 394-395.

[15] L. Rebatet (1942) 284.

[16] Citando Maximilien Rubel, Z. Sternhell et al. (1994) 49 afirmaram que Sorel não possuía um conhecimento detalhado e erudito dos escritos de Marx. Não é isto, porém, que está em causa, mas a perspectiva geral em que ele concebeu e apresentou as teses marxistas. Zeev Sternhell, que assinalou a responsabilidade de Georges Sorel e do sindicalismo revolucionário no advento do fascismo, foi bastante menos arguto quando situou Sorel numa posição ideológica praticamente exterior ao quadro do marxismo. Se Sternhell não tivesse restringido a obra de Marx à tradição racionalista e iluminista e levasse em conta a pesada herança do romantismo alemão, já não precisaria de sair dos limites do marxismo para explicar a ruptura política de Sorel e a sua evolução posterior. A visão proposta por K. Mannheim (1986) passim parece-me mais equilibrada, detectando a originalidade de Marx na articulação da racionalidade jacobina com a crítica romântica e irracionalista à sociedade burguesa. E é precisamente nesta encruzilhada ideológica que se esclarece a evolução personificada por Sorel. O interesse trágico da sua obra provém do facto de representar uma série de mudanças processada não no exterior, mas a partir do interior do marxismo.

[17] G. Sorel (1936) 349 e segs.

[18] Id., ibid., 268.

[19] Id., ibid., 376.

[20] Id., ibid., 375.

[21] Id., ibid., 379.

[22] Id., ibid., 428-430.

[23] Id., ibid., 432.

[24] Z. Sternhell et al. (1994) 108 referiram «a teoria elitista, que considerava as massas como uma fonte de energia, mas lhes negava a capacidade de determinarem o rumo da evolução social […]».

[25] G. Sorel (1947) 318.

[26] Id., ibid., 211.

[27] D. Megherovsky referido por B. R. Lopukhov (1965) 249.

[28] G. Sandomirski referido por id., ibid., 239-241 e 251-252. Note-se que, se uma genealogia ideológica tão variada serviu a Guermann Sandomirski para considerar, e muito bem, que no fascismo convergiam interesses económicos e políticos distintos, ele concluiu daqui que o fascismo, sem possuir uma ideologia coerente, se caracterizaria apenas pela sua acção terrorista e repressiva e não passaria de um fenómeno histórico temporário.

[29] Y. Guchet (1965) 1122-1123 n. 32; id. (2001) 98-99; Z. Sternhell (1978) 390-391; E. Weber (1964) 132; id. (1965) 74.

[30] Y. Guchet (2001) 94-97.

[31] Id., ibid., 99-102; D. Guérin (1969) II 161-162; Z. Sternhell (1978) 372, 384, 391-392; id. et al. (1994) 87-88, 124-127; E. Weber (1964) 131-132.

[32] Z. Sternhell et al. (1994) 124.

[33] No seu livro Les Nouveaux Aspects du Socialisme em E. Berth (1923) 85 e 110, e repetiu a afirmação em 1923 em op. cit., 33.

[34] L. Rebatet (1942) 565.

[35] Como se lê na passagem citada em P. Sérant (1959) 69.

[36] G. Lukács (1980) 653.

[37] A. Munton (2010) 80. Ver igualmente Wyndham Lewis…, 352.

[38] Y. Guchet (2001) 101.

[39] Id., ibid., 99 n. 80 indicou que o Cercle Proudhon fora criado por oito pessoas e que na cerimónia comemorativa do primeiro aniversário da sua fundação estiveram presentes, além de seis dos membros originais, mais quinze pessoas.

[40] Esta passagem de Victor Serge nas Mémoires d’un Révolutionnaire, 1905-1941, encontra-se em J. Rière et al. (orgs. 2001) 526.

[41] Acerca de Georges Valois ver sobretudo Y. Guchet (1965) 1111 e segs. e id. (2001) passim. Consultar igualmente: P. Ory (1976) 269; E. Santarelli (1981) I 491 n. 1; Z. Sternhell (1978) 365, 384, 399; id. et al. (1994) 93-94, 96; E. Weber (1964) 132-133. Yves Guchet pretendeu em (1965) 1134 n. 70 que o Faisceau não teria contado com a simpatia de Mussolini, mas foi mais prudente em (2001) 240 n. 44, limitando-se a colocar a hipótese de que a organização de Valois deixasse céptico o Duce; do mesmo modo, em (2001) 242 n. 50, depois de relatar que, segundo diversas fontes, o Faisceau teria recebido subsídios italianos, Guchet duvidou de que isto fosse exacto, argumentando que nada se provou. Note-se que G. Volpe (1941) 228 evocou com apreço «o grupo de Georges Valois». A frase de crítica ao regime de Mussolini encontra-se citada em Y. Guchet (2001) 256 e a frase de crítica ao plano de acção da CGT está em id., ibid., 9.

Referências

Édouard BERTH (1923) Les Derniers Aspects du Socialisme. Édition Revue et Augmentée des «Nouveaux Aspects», Paris: Marcel Rivière.
T. B. BOTTOMORE (1967) Élites et Société, Paris: Stock.
Yves GUCHET (1965) «Georges Valois ou l’Illusion Fasciste», Revue Française de Science Politique, XV.
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O artigo Ainda não sabiam que eram fascistas será publicado em cinco partes:
1) Corradini e os sindicalistas revolucionários
2) Da autonomia dos trabalhadores ao fascismo
3) Do vanguardismo a uma teoria das elites
4) Da apologia da elite a uma teoria dos heróis
5) Mussolini, o mais improvável dos fascistas

4 COMENTÁRIOS

  1. Especificamente sobre Proudhon, deixo aqui um comentário e uma provocação.

    A caracterização desse autor como “uma das figuras mais ambíguas do movimento operário, inspirador tanto de um ânimo libertário como de valores reacionários”, me parece muito acertada, e dá panos para mangas. Por um lado, legou-nos ele um conjunto precioso de insights políticos (profundamente inspiradores de um “ânimo libertário”, como diz João Bernardo) e esboços ou antecipações de natureza teórica; suas reflexões sobre o “princípio federativo”, sua contribuição para as teorias da mais-valia e suas advertências a propósito do estatismo são alguns dos vários exemplos. Por outro lado, contudo, seus escritos não raro estão eivados de problemas, entre os quais o linguajar pouco claro é apenas o menor deles. Assim, ao mesmo tempo que é necessário continuamente resgatar Proudhon da caricatura traçada por Marx em seu “A miséria da Filosofia” (e é importante registrar que não apenas autores anarquistas, mas também não anarquistas como Georges Gurvitch e o próprio João Bernardo souberam reconhecer os méritos de Proudhon e certas flagrantes injustiças cometidas por Marx), faz-se necessário passar a examinar, com objetividade e senso histórico, aquelas facetas de Proudhon sobre as quais os libertários costumam calar-se (por desconhecerem ou, pior, por não aceitarem que se “macule” a memória de Proudhon), como o antissemitismo, a misoginia, as tiradas nacionalistas, as hesitações e oscilações políticas, o componenente ideológico “pequeno-burguês”…

    Parece-me, assim, que esse extraordinário personagem, brilhante e autodidata, a um só tempo sensível, arguto e problemático, está a esperar por um tratamento análogo àquele a que João Bernardo submeteu Marx em sua obra em três volumes “Marx crítico de Marx”. Porém, não creio que seja fácil encontrar candidatos. Seria ingenuidade esperar que uma empreitada séria e honesta a respeito da obra e das ideias de Proudhon partisse do campo marxista; só nos resta, assim, esperar que, entre os anarquistas, surja alguém que se entregue a essa tarefa, tão relevante quanto necessária. Qual seria, porém, a probabilidade de que algo assim ocorra? Não creio que seja muito grande. Temos aí o exemplo de Peter Marshall (“Demanding the Impossible”), que tentou legar-nos um quadro que estivesse à altura da complexidade e das contradições do autor em questão; mas a obra de Marshall, por seu escopo, termina sendo superficial (a respeito de Proudhon e a respeito de quase todo o resto). Infelizmente, enquanto o tratamento dispensado a Proudhon por parte dos libertários for, acima de tudo, de reverência – curiosa reverência, já que, pelo que observo há vinte e cinco anos, trata-se de um dos grandes nomes do anarquismo que os anarquistas contemporâneos menos leem -, faltará uma análise de fôlego que descortine não somente a mistura, mas eventualmente as interconexões entre grandeza e fraquezas na obra do grande pensador francês.

  2. Marcelo,

    acho que é uma boa dica para alguém, por exemplo, que quer fazer uma tese acadêmica teórica e se interessa por Proudhon. Mas não seria um trabalho fácil.
    Bem, de toda forma, acho que na prática, pelo menos em boa parte, Bakunin já é uma espécie de Proudhon crítico de Proudhon.

  3. Caro Leo:

    Seus comentários sempre são construtivos, e, uma vez que a perspectiva de (re)construção não se opõe à da genuína crítica – antes pelo contrário -, vale sempre a pena dialogar com você.

    No entanto, apesar do necessário fôlego a uma tal empreitada, o risco de ter algo assim feito no interior do meio acadêmico seria o de, por uma ou outra razão, as idéias fiquem circunscritas a esse meio – o que é quase o mesmo que esterilizá-las politicamente.

    Não quero, com isso, dizer que trabalhos acadêmicos não possam ter autêntico valor como inovação e crítica em matéria de análise social; meu ganha-pão como pesquisador e professor vem desse meio, e não meramente por isso (que seria uma justificativa casuística), mas por acreditar e por de vez em quando ver (mas só de vez em quando…) que do meio acadêmico brasileiro ainda brotam coisas interessantes e úteis, elaboradas por gente comprometida, é que não desqualifico e descarto antecipadamente. O meu ponto, portanto, é outro. Ocorre que há, pelo menos, três camadas sucessivas que levam o meio acadêmico à sua esterilidade política, talvez hoje mais forte que nunca: 1) a ausência de senso crítico, profundidade e originalidade; 2) a ausência de real compromisso com a práxis, mesmo em muitos casos em que há talento e senso crítico (ou seja, os trabalhos são livrescos, o autor não se envolve minimamente com movimentos e iniciativas concretos, e por aí vai); 3) as dificuldades para se retroalimentar as lutas com base em estudos elaborados para uma finalidade acadêmica (problemas de linguagem, de oportunidade etc.). Há exceções? Sim, e conheço, pessoalmente, algumas. Porém, uma andorinha só não faz verão, e nem algumas poucas.

    Daí a importância de que algo assim possa ser feito, claro, por gente estudiosa e preparada, mas verdadeiramente disposta a fazê-lo no contexto do diálogo e da interação com os ambientes em que ideias são discutidas independentemente do seu suposto valor no mercado intelectual. Se o trabalho assumir um formato acadêmico mas, depois, for devidamente adaptado (linguagem, tamanho, estrutura) para alimentar um debate político-intelectual, como ocorre no Passa Palavra, sem dúvida seria muito interessante. Já seria uma forma nobre de justificar uma bolsa de doutorado.

    Outra questão é que, acima de tudo, se faz necessária – e não somente por conta de Proudhon, obviamente – uma atitude de desprendimento, de não sectarismo, de não reverência cega. Infelizmente, como você sabe, isso é o mais comum hoje em dia. Se a atitude de veneração fosse apenas uma questão de estreiteza mental, já seria um problema e tanto. (Estreiteza mental, esclareça-se, derivada da ignorância de detalhes da vida e da obra de um pensador e da incapacidade de perceber que o espírito libertário exige o debate e a autossuperação, e que isso só é possível com autocrítica e sentido de renovação; basta olharmos, quanto a isso, os exemplo de um Kropotkin e de um Reclus, modelos citados e tão pouco seguidos…) Porém, não podemos ficar só nisso, pois não é só de estreiteza mental que se trata. Trata-se, algumas vezes, por trás da atitude zelosa de “guardiões da fé”, de uma luta por territórios e nichos; trata-se, enfim, de uma disputa de poder. (Deixo claro que, a meu ver, autocrítica e repúdio ao dogmatismo e ao sectarianismo nada tem a ver com o exibicionismo leviano que faz com que se busque “desconstruir mitos” acima de tudo pelo prazer de atacar reputações, como moleques travessos e narcisistas. Entre os jornalistas pátrios e alguns arremedos de filósofos e intelectuais encontramos vários desses moleques travessos atualmente, sequiosos por difamar tudo o que seja pensamento não conservador. O contrário da veneração típica dos “guardiões da fé” não deve ser, obviamente, confundido com isso. Apenas considero fundamental que, devidamente contextualizadas historicamente, as vidas e obras de Proudhon e de todos os demais que nos inspiram até hoje possam ser avaliadas sem preocupações de beatificação ou canonização, já que homens e mulheres falhos e falíveis foram todos eles – e sua grandeza reside não em sua “infalibilidade”, em sua “coerência sem fissuras”, mas naquilo que de imensamente positivo se pôde e ainda se pode extrair de seu legado, a despeito de problemas e contradições.)

    Quanto a Bakunin – bom, Bakunin é um capítulo à parte. Apesar de seu respeito por Proudhon, dele discordou, explícita ou implicitamente, várias vezes (e, no meu entendimento, fez bem). Porém, Bakunin teve as suas próprias contradições, seus próprios problemas, e não foram poucos. Mas isso fica para outra ocasião…

    Abraços!

  4. Marcelo,
    O que vou escrever corre o risco de desviar o assunto, precisamente num debate em que deveria ser eu o principal interessado na manutenção do rumo. Mas, apesar disso, não resisto a comentar esta sua afirmação de que uma das características do meio académico é a «ausência de real compromisso com a práxis». Ora, geralmente esquece-se que essa ausência de compromisso prático caracteriza a esquerda, não a direita. No Brasil e em Portugal, como em todo o mundo, os serviços de informação da polícia e os serviços de espionagem contam com a assessoria de um enorme número de académicos, seleccionados entre os melhores especialistas da área. O facto de o procedimento ser discreto e essas ligações não serem conhecidas não obsta a que esses professores tenham um «real compromisso com a práxis» capitalista. No caso dos serviços de informação da polícia, acresce que os professores universitários, pela sua própria profissão, podem proceder a inquéritos ou mandar os mestrandos e doutorandos proceder a inquéritos de campo sobre assuntos muito sensíveis, e aos quais os inquiridos respondem frequentemente com uma candura de pasmar. Em Janeiro deste ano o Passa Palavra publicou um Flagrante Delito que passou curiosamente despercebido. Mas parece que é demais pedir que os professores de esquerda revelem um grau de empenhamento prático equivalente ao dos seus colegas de direita.
    Não quero interromper mais, peço desculpa, regressemos ao Sorel e aos outros.

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