O culto religioso de Fátima e o culto laico do futebol ainda movem, em Portugal, grandes massas de gente tomada pelos respectivos tipos de fervor. Como canalizar essa enorme energia para a transformação da sociedade? Como conseguir fertilizá-la através da consciência política? Por Passa Palavra

Foto de Ricardo Ferreira

Na longa vigência da ditadura salazarista do Estado Novo em Portugal (1926-1974), era recorrente, entre os oposicionistas, a referência a “os três FFF do F” – Fátima, Futebol e Fado enquanto instrumentos do outro F (Fascismo) para a alienação das grandes massas pelo regime.

Passemos rapidamente sobre a discutível associação entre os dois primeiros FF e o terceiro, uma vez que a imposição do género musical do fado (forma tradicional originária de alguns bairros de Lisboa) como “canção nacional” tinha a ver com a política cultural de clichés de tipicismo folclórico iniciada nos anos ‘40 pelo mais inteligente propagandista do regime, António Ferro, na música como na arquitectura, no desenho, no cinema ou na literatura. A popularização do fado não implicava movimentações de grandes massas populares. Um fenómeno diferente que, sendo culturalmente relevante, merece tratamento à parte.

Fátima e Futebol, sim, moviam – como ainda movem – grandes massas de gente tomada pelos respectivos tipos de fervor. Aqueles de nós que já presenciaram essas exaltantes concentrações de energia popular, seja religiosa, seja clubística, retiram dessa experiência vivida uma certeza e uma pergunta. A certeza é que os grandes movimentos de massas populares são a energia que faz mover a História. A pergunta é: como canalizar essa energia para a transformação da sociedade? Ou seja, como conseguir fertilizá-la através da consciência política?

A claque/torcida Máfia Vermelha, do Leixões S.C.

Uma das melhores sínteses deste tema foi conseguida, em Portugal, pelo grupo de teatro A Comuna, com o seu espectáculo Fogo!. Representada em 1975-76, em pleno processo revolucionário pós-25 de Abril de 1974, esta criação colectiva dirigida por João Mota constituiu desde logo um notável acto de coragem intelectual: uma visão radical, absolutamente contemporânea e implicitamente crítica do referido processo revolucionário, contra a corrente dominante à esquerda de que o povo estava na rua vitorioso, consciente e decidido a construir o socialismo, a fazer da revolta, revolução.

O espectáculo era feito por seis actores que incarnavam prisioneiros e mostravam três episódios de domingo no seio de famílias diferentes. No primeiro sketch, uma família pequeno-burguesa, num ambiente de silêncio opressivo e beato, vai à missa, pai, mãe e uma filha adolescente que, com a hóstia comungada ainda na boca (porque não a consegue engolir), reza desesperadamente por todos os desejos próprios da adolescência (um namorado, um corpo atraente) até que constata – ignorante, sozinha e aterrorizada – a sua primeira menstruação. A segunda cena apresenta a família tipicamente operária que vai ao futebol e que, no estádio, dá largas a uma incomensurável energia completamente alienada. No terceiro e último sketch, uma família lumpen e promíscua, recebe na sua barraca uma vizinha francesa de meia idade (charge ao turismo político da época) no meio de um paroxismo de ruídos, música e gritaria. Nos três sketches, está presente uma enorme violência (física, psíquica, emocional). E no final, os prisioneiros são fuzilados, numa alusão directa à execução, em Burgos, dos cinco militantes da ETA e da FRAP, que acabara de ocorrer em Setembro de 1975 e fora a causa de um colérico assalto da multidão à embaixada e ao consulado do Estado espanhol em Lisboa. Entre os sketches são ditos textos políticos sobre a opressão, a alienação e a luta, por um actor empunhando um pequeno archote. No fim da peça, colocado esse archote no centro da cena, os outros actores juntavam-lhe cada um o seu formando assim um archote enorme que iluminava actores e público, como fogo transformador, resultante da unidade das consciências.

A genialidade dos autores-actores de Fogo! consistiu em verem-sentirem, ao arrepio do triunfalismo vanguardista das esquerdas, que o projecto revolucionário por elas defendido era bem frágil porque, para além das palavras de ordem e dos clichés ideológicos, tudo assentava numa força das grandes massas de trabalhadores que, sendo gigantesca não era politicamente consciente nem autónoma. A ilusão então vivida e semeada por essa vanguarda pôde ser melhor compreendida 10 anos mais tarde, quando um dos mais argutos observadores marxistas do Portugal contemporâneo, Francisco Martins Rodrigues, teorizou pela primeira vez sobre a hegemonia da classe pequeno-burguesa na condução desse processo histórico português e sobre a consequente facilidade com que o impulso revolucionário vindo das bases foi reconvertido em aceitação da democracia formal de tipo social-democrata. Não faltou, todavia, em 75-76, quem acusasse A Comuna de apresentar nesse espectáculo uma visão “falseada”, “derrotista” e negadora do movimento social que estava na rua.

O que Fogo! conseguiu foi falar-nos dessa energia popular que serve de tema ao presente texto. Essa energia que, como os elementos naturais, tem de sair por algum lado e que só a consciência política pode transformar em revolução. Quando se discutiu, na altura, o título a dar a uma revista da FAPIR (Frente de Artistas Populares e Intelectuais Revolucionários, ligada à UDP pró-albanesa) havia duas hipóteses em confronto: “Resposta”, como símbolo de uma vanguarda condutora das massas com a sua linha justa (que foi a vencedora), e “Dínamo”, título defendido pelos minoritários com o argumento de que se tratava de “transformar o movimento em energia”, como num dínamo electromagnético. Mas os defensores desta segunda hipótese também não tínham razão. Porque, percebeu-se depois, o que estava a acontecer era exactamente o inverso, a transformação da energia – contida durante décadas nas barragens repressivas e opressivas do regime – em movimento. E só isso explicava cabalmente a explosão social despoletada, na própria hora, pelo golpe militar dos Capitães. Faltava uma consciência política de classe na base desse movimento para, então sim, ele se transformar numa nova energia de carácter histórico.

Esta força de que falamos –

Que força é essa que trazes nos braços
Que só te serve para obedecer
Que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que te põe de bem com outros e de mal contigo

– como canta Sérgio Godinho, é na realidade a mesmíssima força física que os braços assalariados gastam e reconstituem, lenta e sofridamente, no processo de produção capitalista. ”(…) Olha as tuas mãos cansadas. Olha as tuas mãos vazias. Olha as tuas mãos roubadas. Todos os dias.” – diziam os actores no fim de Fogo!, reunidos à volta do archote. Mas uma força física que pode tornar-se avassaladora, submergindo tudo e todos, nos processos revolucionários.tresfimg4

Não está dado – ainda – o salto qualitativo, no sentido que Marx refere de que “a quantidade altera a qualidade”. O salto qualitativo, pelo qual esta energia “natural” se torna uma energia transformadora da sociedade, está noutro passo: o da transformação de uma “classe em si” em “classe para si”. O passo da consciência de classe. E tudo dependerá de haver uma massa crítica de explorados que consigam dar esse passo. Como? Através da experiência das lutas, e sempre alternando – à boa maneira metódica e aparentemente caótica do metabolismo biológico, como nos fractais – entre a luta pelo que está perto e a luta pelo que já esteve mais longe.

Vale a pena a experiência de ir a um jogo de futebol entre rivais, ou de ir à Cova da Iria [Fátima] num 13 de Maio, para sentir toda aquela energia sob este prisma.

2 COMENTÁRIOS

  1. O tema é muito interessante. Acrescento que esse FFF: Fátima, Futebol e Fado, aqui no Brasil, AFS: Aparecida, Futebol e Samba, são três importantes facetas do espetáculo, que separando, dão a ilusão de coesão, que aglomerando dá a ilusão de união. “…. O espetáculo reúne o separado, mas reúne-o enquanto separado. …” Guy Debord

  2. Olha as tuas mão cansadas vazias e roubadas todos os dias… precisamos mobilização. nossa dimensão é continental. precisamos diminuir ou mudar a nossa forma de democracia, dando mais poder regional e facilitando a fiscalização de quem nos rouba todos os dias. será que morreremos sem presenciar tal consciência, será que veremos a causa de nossos males e conquistaremos passo a passo nossa merecida liberdade

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